Um muro condenado
Enfrentando toda espécie de obstrução criada para que não se pronunciasse sobre o tema, a Corte Internacional de Justiça condenou vigorosamente o projeto israelense de confinamento dos palestinos, abrindo caminho jurídico para por fim a essa construção ilegalWilly Jackson
O projeto israelense de confinamento dos palestinos por meio de um muro foi objeto de uma condenação vigorosa pela Corte Internacional de Justiça no dia 9 de julho de 2004. Mas, apesar desta desaprovação, o governo de Ariel Sharon prossegue com esta construção num clima de violência acelerada, especialmente em Gaza.
A Corte, órgão judiciário principal das Nações Unidas, havia sido encarregada no dia 10 de dezembro de 2003, pelo Secretário Geral da ONU, de colher o parecer consultivo que emanava da Assembléia Geral sobre a seguinte questão: “Quais são, em termos de direito, as conseqüências da edificação do muro que Israel, potência ocupante, está construindo no território palestino ocupado, inclusive no interior e nas adjacências de Jerusalém Leste, segundo o que está exposto no relatório do Secretário Geral, levando-se em conta regras e princípios do direito internacional, especialmente a quarta convenção de Genebra, de 1949, e as resoluções consagradas à questão pelo Conselho de Segurança e pela Assembléia Geral?”.
A força e a clareza do parecer pronunciado contrastam pesadamente com as atitudes ambíguas de vários países ocidentais. A Corte precisou refutar múltiplos argumentos, especialmente provenientes dos Estados Europeus, que tendiam a convencê-la a não se pronunciar. O parecer consultivo que ela finalmente entregou se mostra de uma importância capital, pois leva ao terreno do direito a busca de uma solução para o dramático conflito palestino-israelense. Ainda mais com o fracasso da via militar, há muito tempo consumado e com os tropeços das tentativas recentes de resolução política e diplomática1.
Tentativas de obstrução
A construção do muro, que tem incidência sobre a paz e sobre a segurança internacionais, não diz respeito unicamente às relações entre Israel e a Palestina; ela interessa diretamente à ONU
As nações democráticas construídas sobre a primazia do direito nas relações internacionais poderiam se felicitar com o apelo à Corte, garantia judiciária para a resolução de uma situação que se tornara caótica. No entanto, nada disso aconteceu. E, como não havia conseguido sucesso ao se opor a esta herança, certos Estados fizeram de tudo para complicar o debate sob múltiplos pretextos.
Assim, o argumento da incompetência foi levantado, pois a Assembléia Geral, que estava na origem do pedido de parecer, não tinha competência para deliberar sobre uma questão tomada pelo Conselho de Segurança. Se este último, como admitiu a Corte, está investido da responsabilidade principal da manutenção da paz, ele não o exerce a título exclusivo. Ele compartilha esta responsabilidade com a Assembléia Geral, que estava então perfeitamente dentro de suas funções ao se preocupar em fazer valer o direito sobre uma situação tão preocupante para a paz.
Outro argumento apresentado: a Assembléia Geral não podia se reunir em sessão extraordinária com base na resolução 377 A (V) 2 ? que autoriza este tipo de reunião em caso de carências do Conselho de Segurança – pois, ao aprovar o compromisso de paz, este último teria cumprido sua função. De fato, um projeto de resolução condenando a construção do muro havia sido rejeitado no dia 14 de outubro de 2003 pelo Conselho de Segurança em razão do voto negativo de um de seus membros permanentes. Desde então, quando há um fracasso do Conselho de Segurança, a Assembléia Geral é acionada.
Segurança internacional
A Corte não caiu em nenhuma das várias armadilhas que lhe foram armadas. Ela caminhou de maneira a chegar ao essencial: as conseqüências, em direito, da edificação do muro
A Corte também teve que refutar o argumento que se baseava no caráter supostamente não-jurídico da questão colocada e sua natureza pretensamente política. Ela lembrou que os aspectos políticos e jurídicos de uma questão internacional estão estreitamente ligados, o que não a priva de sua competência.
Grandes países tentaram ainda convencer a Corte que seria inoportuno para ela dar prosseguimento ao pedido de parecer. Mas se ela dispõe de um poder discricionário na matéria, são necessárias razões decisivas para recusar a se pronunciar. A objeção israelense segundo a qual o Corte não podia resolver suas desavenças com a Palestina se Israel se opusesse não foi mantida: a construção do muro, que tem uma incidência sobre a paz e sobre a segurança internacionais, não diz respeito unicamente às relações bilaterais entre Israel e a Palestina; ela interessa diretamente à Organização das Nações Unidas que assume em relação à Palestina uma responsabilidade permanente nascida do mandato e da resolução relativa ao plano de partilha da Palestina (29 de novembro de 1974).
Além dos argumentos de obstrução não aceitos, foi também sustentado que um parecer consultivo seria inapropriado porque interferiria com os esforços de negociação política em curso e aniquilaria o processo encarado como roteiro de paz. Ou ainda que a Corte não dispunha de dados pertinentes relativos à situação no local e devia renunciar a se pronunciar. A Corte fez valer que as diferentes relações das Nações Unidas e as informações de outras fontes constituíam elementos de apreciação confiáveis sobre a construção de um muro e sobre suas conseqüências humanitárias e sócio-econômicas sobre a população palestina.
Armadilhas desarmadas
As violações dos direitos devidos à edificação do muro e ao regime que lhe é associado estão neste aspecto condenadas
Outro argumento: a inutilidade do parecer solicitado, já que a Assembléia Geral havia declarado o muro ilegal. A Corte fez saber que não lhe cabia decidir se a Assembléia Geral realmente tinha necessidade do parecer solicitado. Este órgão é o único habilitado a decidi-lo no âmbito de suas próprias necessidades.
Último argumento, sustentado por Israel: a Palestina, responsável pelos ataques violentos que originam o muro, não iria pedir à Corte que se pronunciasse sobre uma situação para cuja criação ela mesma havia contribuído. Mas, como respondeu a Corte, foi a Assembléia Geral quem solicitou este parecer – e não um Estado ou outra entidade. É à Assembléia Geral que ele será dirigido.
Desse modo, a Corte não caiu em nenhuma das várias armadilhas que lhe foram armadas. Ela caminhou de maneira a chegar ao essencial: as conseqüências, em direito, da edificação do muro. Isto a conduziu a retraçar os caminhos dolorosos e tortuosos da história de sua região. Se destacam assim, em sobreposição, o florescimento do império otomano3, o estatuto de território sob mandato reconhecido à Palestina em 1922, as numerosas crises e guerras que, de 1947 a 1967 e além, constituem a trama política do Oriente Médio.
Território sob ocupação militar
As violências das quais Israel é vítima não são imputáveis a um Estado estrangeiro. Elas ocorrem no interior de um território sob seu controle
Deste conjunto de elementos, sobressai que o território no interior do qual se encontra o muro contestado é um território sob ocupação militar no aspecto do direito internacional, que aí se aplicam conseqüentemente todos os instrumentos jurídicos internacionais que regem conflitos armados. Também o respeito do direito internacional humanitário, envolvido pelo regulamento de Haia de 1907 e pela quarta convenção de Genebra de 1949, impõe-se a Israel sem restrição.
No mesmo sentido, as convenções internacionais relativas aos direitos da pessoa – reconhecidas por Israel – foram declaradas aplicáveis sobre o território palestino ocupado. E, no entanto, Tel-Aviv pretendia, com desprezo ao valor universal dos direitos humanos, que estes textos eram aplicáveis apenas em tempos de paz, sendo que em situação de guerra eram afastados em benefício apenas do direito humanitário. A Corte deslegitima esta tese perigosa e confirma que a proteção garantida por estas convenções não cessa em tempos de conflito armado. Com isto, as numerosas violações dos direitos devidos à edificação do muro e ao regime que lhe é associado estão neste aspecto condenadas: invasão territorial, transferência da população civil israelense para o território ocupado (implantação das colônias), destruições e requisições de propriedades, entrave à liberdade de circulação e deterioração de condições sócio-econômicas da população palestina, etc.
A Corte mantém ainda os argumentos de segurança e de legítima defesa para justificar a construção do muro. Certamente, ela reconhece a Israel o direito e mesmo o dever de se proteger contra os atos de violência assassina. Mas as medidas tomadas devem estar em conformidade com o direito internacional e Israel iria tirar partido das disposições relativas ao direito natural de legítima defesa4, sendo este operatório apenas em caso de agressão armada por um Estado contra um outro. Ora, as violências das quais Israel é vítima não são imputáveis a um Estado estrangeiro. Israel é remetido a sua própria responsabilidade na situação pois é lembrado de que estas violências acontecem no interior de um território sob seu controle.
Construção ilegal
Há urgência pois é preciso parar, no local, o ciclo sem fim da violência cega e contrariar as estratégias de anestesia política cujo fim é impedir a criação de um Estado palestino vivo
É igualmente rejeitado o argumento de “estado de necessidade” que permite ao Estado citado derrogar os direitos garantidos se não dispõe de outros meios de se proteger. Aos olhos da Corte, a construção do muro não constitui o único meio de proteção à disposição de Israel.
Enfim, e isto é essencial, a Corte coloca no centro de sua opinião o direito dos povos de se dispor deles mesmos e faz da aplicação deste princípio no conflito palestino-israelense a condição de uma paz justa e durável na região. Todos os Estados são convidados a se conformarem estritamente a isso e a facilitar sua realização. Como não notar que a Corte permitiu que a Palestina se expressasse, já que, nos termos do seu estatuto, só os Estados e as organizações internacionais podem fazê-lo. É ainda mais notável que as posições em favor da causa palestina tenham sentido tendência a se restringirem ao longo do processo5.
No total, a construção por Israel de um muro no território palestino ocupado é declarada ilegal. O Estado tem a obrigação de destruir esta obra, de ab-rogar todos os atos legislativos e regulamentares e de reparar, em virtude de sua responsabilidade jurídica, todos os danos causados6. Os Estados membros estão na obrigação de não reconhecer a situação ilícita assim criada.
Foram conseguidos os votos quase unânimes de quinze juízes em favor deste parecer. Uma voz apenas viu defeito no essencial do texto e dois votos negativos foram registrados a respeito das obrigações dos Estados membros. Mesmo que os pareceres da Corte não tenham um caráter deliberativo, o direito foi dito e a Assembléia Geral, assim como a comunidade internacional, dispõem agora de elementos suscetíveis de orientar sua ação futura. Há urgência pois é preciso parar, no local, o ciclo sem fim da violência cega e contrarirar as estratégias de anestesia política cujo fim é impedir a criação de um Estado palestino vivo em boa vizinhança com Israel7. O tempo do direito não é o da política, mas nosso dever é fazer com que o primeiro alcance o segundo.
(Trad.: Fabio de Castro)
1 – A assinalar a iniciativa dita “negociação de paz” adotada no dia 19 de novembro de 2003 pela resolução 1515 (2003) do Conselho de Sgurança e sustentada pelo Quatuor Estados Unidos da América, União Européia, Federação Russa, Organização das Nações Unidas; Acordo de Genebra para o qual se lerá Qadoura Fares, “O acordo de Genebra, uma janela aberta sobre a esperança”, Le Monde diplomatique, dezembro de 2003; Monique Chemillier-Gendreau, “Israel-Palestina, ma paz fundada no direito”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2004.
2 – Intitulado “A União para a manutenção da paz”.
3 – Ler Henry Laurens, “Como o império otomano foi despedaçado”, Le Monde diplomatique, junho 2003.
4 – Em particular o artigo 51 da Carta das Nações Unidas.
5 – A reso