Um “New Deal” para a escola
Pesquisa entre professores expõe os mecanismos da segregação escolar e da geração de racismos nos bairros e colégios pobres. Proposta: para fazer valer os valores da escola única, seria preciso estimular a diversidade de soluções organizativasFrancis Kern, Tom Amadou
Tão orgulhosa de pregar valores universais e progresso social, sempre disposta a “dar lições”, a França oferece a imagem de um país dividido, tanto do ponto de vista social quanto econômico e étnico. Esta situação não surpreende: ela é fruto de um processo de guetização que ocorre há uns vinte anos. O fato de os jovens rebeldes atacarem alvos como as escolas é sintomático do sentimento de desesperança e de abandono sentido por muitos habitantes destes subúrbios relegados — em particular os mais jovens. É uma espécie de “apartheid escolar” que atinge a escola.
Numa região escolar como Bordeaux (com pouca imigração), 10% dos colégios concentram 40% de alunos vindos do Magreb, da África negra ou da Turquia1 . São números consideráveis, pelo fato desses estabelecimentos abrigarem também uma proporção muito grande de alunos da população desfavorecida ou com atraso escolar. Daí um acúmulo das desigualdades prejudiciais à escolaridade: independentemente da vontade dos professores, aprende-se menos nestes estabelecimentos, que são verdadeiros guetos.
A ausência de integração social e étnica tem efeitos negativos em termos de aprendizado e produz fracasso escolar. Quando se sabe da importância dos diplomas, para ter acesso a um emprego, pode-se concluir que esta segregação produz e reforça a exclusão econômica e social dos mais desfavorecidos. E pregar as escolhas de aprendizado profissional precoces, a partir dos 14 anos, só reforçará o sentimento destes jovens: eles são excluídos da escola da mesma forma que são excluídos do trabalho, do lazer, da cidade e, em resumo, da sociedade. O círculo está fechado.
Um perfil do apartheid escolar
A escolha de escola é feita em essência sobre a base de sua localização urbana e da composição étnica de seu público
O apartheid escolar é, antes de tudo, fruto de uma cidade cada vez mais separada social e etnicamente. O desejo de se fechar em si, principalmente das classes superiores e médias, marginaliza bairros inteiros, deixados aos mais desfavorecidos, e pesa no universo escolar. As próprias famílias participam amplamente desta segregação, quando “evitam” certos colégios, tidos como maus porque abrigam uma população desfavorecida e também (é preciso dizer claramente), “não branca”.
No conjunto das escolas, 10% dos alunos se beneficiam a cada ano de uma derrogação, isto é, uma autorização para matricular uma criança em outra escola. É pouco. Mas nos colégios considerados guetos, a “fuga” das famílias das classes médias é mais considerável. A conseqüência direta é a duplicação do percentual de alunos filhos de imigrantes. Muitos estabelecimentos de nossa pesquisa tiveram que acolher cerca de 25% de alunos imigrantes ou filhos de imigrantes, a julgar pelo seu setor de recrutamento. Eles acolhem, de fato, mais de 50% pois as crianças “brancas” estão inscritas em outros estabelecimentos públicos ou privados. Desta maneira, para aqueles que não podem escolher seus locais de residência, ou para quem o boletim escolar se mostra desfavorável, evitar o colégio da região aparece como a única solução possível.
A escolha do estabelecimento se faz essencialmente com base em sua localização urbana e na composição étnica de seu público. Não há espaço para dúvida nestas estratégias, como testemunham os pais entrevistados: “São as crianças do conjunto habitacional du Viaduc que vão ao colégio Barbusse, onde há muitos árabes. Ele tem má reputação. Se há motivos ou não, isto não sei, pois não coloquei minha filha lá”. O desafio é tal que os pais mostram-se extremamente sensíveis à imagem dos estabelecimentos e principalmente em relação a quem os “freqüenta”. “Como desejar que seu filho, que está num colégio onde há uma ralé, se sinta seguro?” pergunta um pai: “Ela vai viver de maneira distinta, pois só tem quatorze anos, mas eu me preocupo. Não posso impedi-la de freqüentar certos meninos, que talvez sejam muito bons, mas têm origem em famílias de origem duvidosa”. A derrogação é então entendida como um meio para que “a criança não viva as violências do bairro” e corresponde, em particular pelas famílias populares, a um desejo de ascensão social na qual a escola é o motor.
O racismo popular nutre-se de um sentimento de queda e de exclusão social. A escola pode reforçar este sentimento. Os estabelecimentos freqüentados por inúmeras crianças vindas de famílias de imigrantes são às vezes vividos como um local de verdadeira desqualificação: ao estigma de viver em um subúrbio-gueto acrescenta-se o de não ter podido evitar um estabelecimento considerado como uma “escola de imigrantes».
Desenvolve-se então, para algumas famílias, a sensação de uma “residência obrigatória”. A impossibilidade de escolher sua escola ou seu colégio determina o fim de uma esperança de mobilidade em potencial. “Acho isso inadmissível, pois não nos permite escolher onde queremos colocar nossos filhos. Quando recusaram a derrogação para nossos filhos, ficamos muito enraivecidos. Isso é segregação”.
O racismo francês e o anti-francês
Como reação, os alunos originários da imigração exageram seu pertencimento étnico. No limite, vêem a cultura escolar como símbolo da dominação
Nestas condições, o racismo torna-se expressão privilegiada da frustração e de um sentimento de impotência em relação a seu destino. Os jovens vindos de famílias de imigrantes são acusados de invadir os estabelecimentos escolares, como se invadissem a França. Os pais dos alunos dão o testemunho: “Aqui não há só isso”, ou “eu, na próxima oportunidade votarei na Frente Nacional: há estrangeiros demais na França, é a catástrofe. São em maior número que nós — e nós, pobres franceses, não dizemos nada!”
Em contraponto, desenvolvem-se uma certa lógica comunitária e um racismo antifrancês. Os trabalhos do sociólogo americano John Ogbu2 sobre as “minorias involuntárias” negras nos Estados Unidos permitem, por analogia, compreender este fenômeno. Os filhos de imigrantes e particularmente os do Magreb têm – tinham? — uma profunda vontade de ascensão social. Mas eles começam a acreditar, como os negros norte-americanos, que as barreiras sociais, muito fortes no mundo das empresas, não lhes permitirão abandonar seu território e aceder a posições honrosas. Tendo integrado os valores culturais e de igualdade da sociedade francesa, eles suportam muito mal as desigualdades escolares, que profetizam seu futuro fracasso social.
Sua confiança nas instituições desaparece, particularmente no que diz respeito à escola, na qual eles tinham depositado sua maior esperança. É o que testemunha este professor: “Tenho um aluno magrebino para quem há duas categorias de pessoas: as que se enganam e as que enganam os outros. Ele tinha decidido estar na segunda categoria, ao contrário de seus pais, que estavam na primeira. Para ele, que era do tipo exploradores-explorados, não havia categorias intermediárias. O derrotismo conjuga-se muitas vezes com o problema da discriminação.”
Assistimos a uma verdadeira inversão de valores, à formação de um tipo de contra-cultura escolar étnica: como reação, os alunos de famílias imigrantes investem em sua conformação étnica, e, no limite, a cultura escolar torna-se o símbolo da dominação, como demonstra esta história relatada pelo educador: “Tenho problemas com Mustafá. Ele chegou, uma vez (…) em estado de alta voltagem, olho brilhante, agitado (…). Cada vez que eu abria a boca, ele encontrava motivo para discussão. E se aproveitava do fato de eu estar de costas, para escrever no quadro negro, para dizer o que queria. Coisas do tipo: “o inglês nunca nos interessou, é nulo. Por que não estudamos árabe?”. Então eu, como boa mãe, respondo: “Tanto o árabe como o inglês exigem um esforço e um esforço ainda mais duro, porque é mais difícil”. “O que ela diz é loucura”. Tento acalmar o jogo, continuo escrevendo e então ele dá um grande soco na mesa e me diz: “De qualquer forma, os muçulmanos são os mais fortes”.
Este “pertencer ao mundo muçulmano” reinventado encontra apoio no fato da França não poder e nem querer oferecer a integração econômica e social, que ocorreria em paralelo à integração cultural. Não nos enganemos: os distanciamentos comunitários, agitados como um espantalho, resultam muitas vezes no confinamento da deportação e do fracasso. Os desafios são, portanto, muito fortes. A escola atravessa tal crise de confiança que o fato de não constituir mais um espaço de convivência deve alarmar.
Em favor do ensino único, reinventar a diversidade
Uma escolha precoce da formação profissional resultaria em mais segregação e tornaria ainda mais distante o projeto do colégio único
O peso do urbano é preponderante e exige políticas sobre desagregação. Entretanto, o fenômeno escolar deve ser considerado em si. Por suscitar esperança ou, ao contrário, desespero, ela tem uma grande carga simbólica. A ascensão social deve poder ser viável, e é somente recuperando confiança nas virtudes “meritocráticas” que poderemos criar ainda o laço social e a integração.
Neste sentido, uma diversificação muito precoce do percurso escolar conduziria a uma maior segregação, sem assegurar a estes jovens uma melhor inserção no mundo do trabalho. Pelo contrário, a escola sofre por nunca ter conseguido criar este colégio único tão elogiado. Na verdade, de única ela só tem o nome, tantas são as condições de escolaridade que se diversificam. Ao mesmo tempo, parece não ter sentido apelar de maneira mágica á miscigenação social e étnica. As fraturas que atravessam a sociedade são tais, principalmente em matéria de moradia, que não podemos decretar, de repente, num golpe de varinha mágica, o restabelecimento da integração social.
O sociólogo da cidade Jacques Donzelot3 demonstrou muito bem: as forças centrífugas são muito intensas. As classes médias e as mais favorecidas não querem morar nos bairros estigmatizados, a menos… que se expulse os pobres e os estrangeiros! Ou, a rigor, que as escolas de uns e dos outros sejam distintas e bem separadas. Desta forma, os desfavorecidos não dispõem de nenhum recurso para deixar o cerco em que estão mantidos.
O «mercado» escolar produz mais segregação que integração. Um New Deal na escola postula uma política voluntarista. Agora, ela não pode mais resolver os problemas sociais exibindo uma “indiferença aos diferentes” que, como gostava de lembrar Pierre Bourdieu, volta muitas vezes a confirmar as desigualdades de fato entre grupos e indivíduos. Em termos concretos, é preciso agir sobre os indivíduos e sobre os estabelecimentos.
Do ponto de vista dos indivíduos, a atribuição de bolsas não basta. É preciso permitir aos alunos das famílias mais desfavorecidas, e sobre a base do voluntariado, “deixar o gueto” e estudar em um outro estabelecimento de sua escolha.
Do ponto de vista dos estabelecimentos, algumas experiências foram postas em prática, muitas vezes de forma conclusiva, como no colégio Clisthène em Bordeaux. Um de seus princípios é o de repensar o papel de cada um dos atores, sempre visando o mesmo objetivo: dar a todos os alunos a formação comum e o nível escolar indispensáveis a uma integração social e econômica. O estabelecimento dispõe de suficiente autonomia para que o diretor recrute os educadores na base do voluntariado. Ele pode, desta forma, constituir uma equipe e fazer variar a carga horária dos professores — que têm menos horas em sala de aula e mais horas de presença no estabelecimento, o que muda radicalmente as relações entre os alunos e eles.
Este colégio é apenas um exemplo. Outras inovações são necessárias. O importante é compreender que é preciso diversificar a organização dos estabelecimentos para salvaguardar os objetivos e os valores do colégio único. É este o preço a pagar para que a escola possa jogar um papel de instituição onde o “viver junto” tem ainda um sentido, mesmo nos colégios considerados guetos.
(Trad.: Celeste Marcondes)