Um novo arranjo territorial periférico e metropolitano à vista?
Efeitos que a faixa 1 do Programa Casa Verde e Amarela (PCVA) lançado pelo governo federal em 25 de agosto de 2020 ano podem vir a produzir no arranjo territorial que se configurou nos territórios periféricos nos últimos vinte anos
Parece haver um certo consenso entre pesquisadores, militantes e moradores de que os territórios periféricos da metrópole de São Paulo já não são mais aqueles da época de seu aparecimento na cidade e que deram origem aos conhecidos movimentos sociais urbanos entre as décadas de 1970 e 1980. Sejam as pesquisas, sejam as práticas políticas, sejam as estratégias familiares, cada uma a seu modo vem precisando lidar com tais transformações. Podemos incluir muitos elementos que fazem parte dessas transformações: o crescimento vegetativo da população, diversificando o perfil de seus moradores (primeira, segunda, terceira e quarta gerações convivendo nesses territórios); a contínua chegada de novos migrantes, mesmo que em taxas negativas desde a década de 1980; a conversão de católicos ao neopentecostalismo e a proliferação de igrejas evangélicos; o tráfico de drogas e, por conseguinte, o aparecimento do crime organizado, notadamente o Primeiro Comando da Capital (PCC); o acesso ao crédito, levando ao incremento do consumo de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos, contrastadas com a precariedade habitacional; a verticalização das moradias autoconstruídas localizadas em loteamentos ou favelas; a expansão do aluguel como modalidade de moradia; a entrada de estudantes periféricos no ensino superior, amiúde o primeiro ou primeira da família a acessar a universidade; a emergência do chamado discurso identitário, criticando de modo agudo as violências de gênero e de raça presentes nas relações sociais; dentre outros aspectos mais propriamente cotidianos. Dentre esses estudos é importante mencionar aqueles dedicados a investigar a relação entre Estado e sociedade civil desde a abertura democrática, denunciando a reiterada violação dos direitos humanos a que essa população se encontra submetida; a seletividade da violência policial, levando ao genocídio da população jovem e negra ou ainda ao seu encarceramento massivo, até intervenções mais recentes ligadas à pandemia da Covid-19 e o tratamento desigual do poder público em seu combate1. Nossa contribuição buscará discutir os efeitos que a faixa 1 do Programa Casa Verde e Amarela (PCVA) lançado pelo Governo Federal em 25 de agosto deste ano podem vir a produzir no arranjo territorial que se configurou nesses territórios periféricos ao longo dos últimos vinte anos. Para tal discutiremos a relação que se estabeleceu nesse período entre uma ampla monetarização das relações sociais internamente aos territórios periféricos e a emergência de um mercado imobiliário periférico amiúde operado pelas suas próprias famílias moradoras, a partir dos resultados de nossas pesquisas2, de modo a apontarmos as razões da constituição de um arranjo territorial que poderá ser desafiado em razão do PCVA. Para tal se faz necessário um recuo histórico.
Precedentes
A formação dos territórios periféricos de São Paulo se configurou como a expansão da fronteira urbana nos arrabaldes da cidade no contexto de sua industrialização e metropolização. A mediação do dinheiro decorrente da imposição do assalariamento aos migrantes chegados em São Paulo a partir da década de 1950 foi responsável por uma inaudita quebra dos monopólios fundiários que caracterizavam os arredores da cidade. Isto é, o parcelamento de propriedades fundiárias decorrentes das mais diversas formas de apropriação territorial pregressas: implantação de núcleos coloniais no século XIX; especulação fundiária feita por bancos; propriedades familiares em conluio com imobiliárias clandestinas; grilagens etc. Ou seja, uma quebra do monopólio fundiário (prenhe de irregularidades) desencadeado a partir das estratégias de reprodução dos trabalhadores num contexto de superexploração de suas forças de trabalho, mas de oferta relativamente abundante de terra nos arrabaldes da cidade (porque desprovidos de infraestrutura e legalmente rurais). Estratégias que não envolviam interesses estritamente econômicos, mas também o desejo de um projeto familiar apartado de experiências coletivas de moradia como o cortiço, ou ainda a dispendiosa e nada promissora moradia de aluguel nas áreas centrais da cidade. O processo de metropolização decorrente dessa estratégia significou que uma parte do salário desses trabalhadores e suas famílias serviram à amortização da renda absoluta da terra apropriada por seus antigos proprietários3.
Essa forma de metropolização de São Paulo, por expansão de periferias, criou uma situação particular na qual, mesmo superexplorados pelas unidades produtivas que os empregavam, a autoconstrução permitiu a um grande número de trabalhadores e suas famílias constituírem-se, no longo prazo, em pequenos posseiros e proprietários imobiliários nesses territórios. Ou seja, os salários recebidos correspondentes a uma parte de seus tempos de trabalho vendidos ao capital, divididos entre a amortização da renda fundiária do lote recém-adquirido e os materiais de construção, permitiram a essas famílias acumularem um fundo de trabalho na forma de terra e moradia, mais ou menos precárias, mais ou menos irregulares, mais ou menos ilegais. Aqueles projetos familiares corporificados na autoconstrução de moradias nos arredores de São Paulo foram adquirindo concretude na forma de um incalculável e heterogêneo ambiente autoconstruído, caracterizado por centenas de milhares de posses e propriedades imobiliárias.
A progressiva consolidação desses imóveis foi coetânea a importantes transformações nas dinâmicas familiares e no mundo do trabalho, os quais repercutiram sobre os possíveis usos desse extenso ambiente autoconstruído. Do ponto de vista familiar temos o envelhecimento ou mesmo a morte dos pais e simultâneo crescimento dos filhos/filhas, criando as condições para novos usos dos imóveis autoconstruídos (o qual pode envolver a locação para abertura de “microempreendimentos” e/ou uma nova moradia). Nessa mudança geracional as novas gerações se veem relativamente liberadas da autoconstrução da moradia, podendo se valer desse parco patrimônio para arquitetar suas estratégias de trabalho e reprodução, não sem conflitos inter geracionais, é claro. Já do ponto de vista do trabalho, as novas gerações de trabalhadores (paulistanos ou migrantes) experimentaram na pele o incontornável colapso da modernização brasileira 4 e a entrada do país na rota do tráfico internacional de entorpecentes, precisamente quando uma parcela da população comemorava a abertura democrática. Não é sem mais que os Racionais MC’s caracterizaram aquele período como um inferno e eles como seus sobreviventes, que contrariaram as estatísticas. Em outras palavras, houve uma incontornável crise no mundo do trabalho decorrente da revolução microeletrônica ocorrida nos países centrais em fins da década de 1970, que se manifestou no Brasil como a crise do projeto nacional-desenvolvimentista na década de 1990, nas palavras de Roberto Schwarz, e o surgimento do desemprego estrutural na experiência laboral5. Tal asserção pareceria um puro contrassenso se tomássemos os treze anos de “neo-desenvolvimentismo” a partir de 2003 estritamente pela sua aparência e não pelos fundamentos que inflaram a bolha que fragilmente o sustentou 6. Não obstante o caráter fictício do neo-desenvolvimentismo brasileiro, esse capital-monetário sem valor foi o que “sustentou” as políticas redistributivas durante esse período, efetivamente ampliando o poder aquisitivo das diferentes gerações de trabalhadores periféricos, de maneiras diversas: aumento da parcela dos juros pagos aos trabalhadores na forma de salário; aumento das aposentadorias; acesso ao crédito consignado (o qual, num contexto de formalização das relações de trabalho teve significativa importância); ampliação do crédito para consumo; transferência de renda direta; ampliação do microcrédito etc.
O aumento do poder aquisitivo da população trabalhadora, comemorado por uma parte dos ideólogos do lulismo como a emergência de uma “nova classe média”, desencadeou uma inaudita monetarização das relações cotidianas internamente aos territórios periféricos7 e fomentou a ampliação do chamado empreendedorismo popular. Ou seja, apesar das políticas modernizadoras terem levado o país a experimentar uma conjuntura próxima ao pleno emprego, sobretudo no ano de 2014, essa situação não desencadeou um definhamento das atividades mercantis nos territórios periféricos. Pelo contrário, parece tê-las fomentado, determinado por um crescente poder aquisitivo conjugado à superfluidade do trabalho e consolidação das posses e propriedades imobiliárias periféricas. Em outras palavras, parece ter havido uma confluência entre essas duas determinações, pois a heterogeneidade legal que define os territórios de precariedade e suas moradias tornou-se um óbice à sua “financeirização”, sobretudo para os proprietários e posseiros periféricos, a despeito da extraordinária precificação experimentada em razão da bolha imobiliária ocorrida em São Paulo entre 2009 e 2014. Isto é, em razão das particularidades da formação dos territórios periféricos e da condição legal dos imóveis ali presentes, as famílias moradoras não poderiam se apresentar legalmente no mercado como proprietários de imóveis e tampouco como trabalhadores demandantes de imóveis por meio de financiamento, a não ser nos meandros irregulares daquele mercado territorialmente circunscrito. E isso mesmo num contexto de ampliação do crédito, dos rendimentos do trabalho e da crescente formalização das relações de trabalho.
Nessas circunstâncias, parece ter sido o incremento dos salários e das aposentadorias que ofereceram as condições para uma “capitalização” territorialmente circunscrita daquele imobiliário periférico. Ao se ampliarem os negócios com terras e imóveis associados à expansão de microempreendimentos entabulados por diferentes gerações de moradores, salários e aposentadorias alimentaram importantes fluxos monetários internamente àqueles territórios. A situação irregular das terras e imóveis não é de pouca importância e a conjuntura econômica do período lulista, ao precificar os imóveis autoconstruídos, desencadeou uma metamorfose de membros de famílias que vinham experimentando uma contínua expropriação de suas condições como trabalhadores, em microrrentistas. Em outras palavras, se quando da formação daquelas periferias o salário proveniente da venda da força de trabalho era o que presidia a autoconstrução, a consolidação desses imóveis num contexto de crise do trabalho, parece estar paulatinamente invertendo os fundamentos da relação entre produção e reprodução, alçando a moradia autoconstruída, à revelia de seus moradores, a um potencial ativo, todavia impossibilitado de assim circular no mercado financeiro. A confluência entre terra e trabalho aqui salientada importa reter porque se aquelas posses e propriedades se encontravam impossibilitadas de “finaceirizarem-se”, exigindo liquidez para que fossem negociadas, não se pode dizer o mesmo de todos os outros bens de consumo adquiridos pelas famílias moradoras nas grandes redes de hipermercados e shopping centers, mas igualmente em estabelecimentos comerciais locais que rapidamente adquiriram as tais “maquininhas” para venda em débito e crédito. Estamos aqui chamando a atenção para o fato de que essa configuração particular fomentou um mercado imobiliário periférico que veio e vem modificando radicalmente as modalidades de moradia8, vinculado a uma progressiva proliferação de microempreendimentos populares e modalidades de “viração”. Essa chamada economia popular que veio adquirindo cada vez mais importância internamente aos territórios periféricos, reconfigurando as relações sociais e vicinais, também trouxe consigo a crescente necessidade de formas de regulação das trocas mercantis aí reproduzidas. Dito de outro modo, como se regularia um possível litígio entre locador e inquilino, caso o segundo esteja em grande dificuldade financeira? Ou então, como resolver uma dívida no mercadinho ou açougue? As mortes pelo tráfico vivenciadas durante a década de 1990 e narradas pelos Racionais MC’s têm uma parte de suas razões no mesmo problema, aquele da dívida de usuários com traficantes
Não devemos esquecer, no entanto, que a dimensão cotidiana se faz fundamental, e o conhecimento mútuo, as indicações dos vizinhos, os acordos tácitos, são de grande importância para a reprodução dessas relações mercantis. No entanto, como dissemos no início deste texto, a periferia se transformou muito e, tanto o crescimento demográfico, quanto os deslocamentos internos na metrópole (amiúde forçados em razão de operações urbanas de todo o tipo), foram produzindo uma experiência cotidiana crescentemente marcada pelo anonimato e indiferença. Um morador antigo do bairro que pesquisei comentou comigo em 2015 que quando entrava na única linha de ônibus que atendia o loteamento, no Terminal João Dias, ele se deparava com passageiros desconhecidos que, no entanto, seguiam para o mesmo destino que ele. Algo semelhante também escutei de garotos entre 18 e 19 anos que gostavam de ficar na rua até mais tarde, temerosos de motoqueiros desconhecidos que circulavam pelo bairro, além da polícia, é claro. O ponto aqui é ressaltar o adensamento de “contratos” que estão sempre por um fio em razão das crises econômicas, num contexto de gradativo aumento do anonimato, diante do qual as relações cotidianas não parecem ter o mesmo poder garantidor que já tiveram. É nesse contexto que, de nosso ponto de vista, emergem os mais diversos dispositivos de “gestão das ilegalidades” que vão progressivamente se separando das relações cotidianas e tomando forma em instituições tal como o PCC. Tomemos, por exemplo, os “debates” instituídos por essa organização para dirimir conflitos entre moradores, impedir assaltos e/ou furtos em “suas quebradas”. A expansão do PCC pelas periferias de São Paulo, ocorrida sobretudo a partir de 2002 segundo Gabriel Feltran, pareceria estar colocando em prática um tipo sui generis de violência de fronteira a regular essa monetarização das relações cotidianas, ou seja, fazendo governo, como afirma o autor. No entanto, o debate sobre o PCC, com o qual tenho maior familiaridade, parece estar dedicado fundamentalmente à polêmica de reconhecê-lo ou não como um cartel9, quando nos parece que a reivindicação do monopólio da violência que fundamenta a existência dessa organização talvez seja o dado mais fundamental a ser discutido, já que o consentimento dos moradores a seu poder moderador não se deu, senão, à sombra do poder das armas.
Nesse sentido, nossa hipótese é que em São Paulo o PCC é (ou talvez tenha sido) parte de um arranjo territorial periférico no qual a reivindicação e o exercício do monopólio da força guardaram uma relação intrínseca com esse processo de monetarização das relações cotidianas. Isto é, operando como um dispositivo de regulação que não apenas pôde mediar conflitos para os quais a ação do Estado fosse talvez inconveniente (do ponto de vista dos próprios moradores, inclusive) ou mesmo insuficiente (em razão de sua própria crise como instância reguladora). Mas além de produzirem governo, os irmãos do PCC adquiriram cada vez mais proeminência como agentes financeiros fortemente capitalizados. A venda de drogas nos territórios periféricos, ao “gozar” do monopólio que a ilegalidade lhe confere, parece ter sido dos poucos empreendimentos periféricos que alcançaram níveis de capitalização inauditos e inalcançáveis para os demais microempreendimentos que com ele coexistem nos territórios periféricos. Cogitamos em nossas pesquisas a hipótese de que os irmãos do PCC, diante da bolha imobiliária e da situação irregular dos imóveis periféricos, possam ter adquirido proeminência como compradores prioritários desse mercado em expansão. As razões são simples: fortíssima capitalização e alta liquidez, liquidez esta que nenhuma outra família moradora teria, o que poderia se configurar como um oligopsônio no mercado imobiliário periférico10, hipótese que exige aprofundamento e pesquisa. Encontramos em nossos trabalhos de campo incorporadores que demoliram antigas casas autoconstruídas e construíram em lotes de 250 m2 pequenos prédios com apartamentos destinados à locação11 e nada nos desautoriza a considerar que tal movimento expansionista não envolva irmãos do PCC. Em suma, parece possível afirmar que os dispositivos de “gestão das ilegalidades” em São Paulo, dos quais o PCC faz parte, não apenas gerem populações (governando condutas) e regulam relações mercantis, mas seus irmãos podem se tornar agentes financeiros no setor imobiliário, no comércio de carros roubados, aluguel de armas, dentre outros. Não nos parece mera coincidência que a pacificação proporcionada em São Paulo pelo PCC tenha sido simultânea à monetarização das relações cotidianas que se manifestou, de um lado, na proliferação de microempreendimentos estabelecidos naqueles imóveis autoconstruídos que, por sua vez, também experimentaram uma inaudita precificação em razão da bolha imobiliária. Se a hipótese procede, uma pergunta se faz premente: o que significaria para esses arranjos territoriais de administração da crise o recém-lançado programa habitacional federal intitulado “Programa Casa Verde e Amarela”?
À guisa se conclusão
Nós nos deteremos na parte do programa concebido para a chamada faixa 1, destinada a trabalhadores com renda mensal de até R$ 2 mil, pois é ele que poderá incidir de maneira profunda na reprodução das famílias moradoras mais pobres e no arranjo territorial brevemente descrito. O que essa faixa do programa intenciona guarda muitas semelhanças com as propostas apresentadas por Hernando de Soto em Lima no Peru na década de 1990, a saber: tornar as famílias periféricas legalmente proprietárias dos imóveis nos quais moram, por meio de uma “grande anistia”. Caso o programa seja colocado em prática ele formalizará uma condição da maioria das famílias moradoras desses territórios periféricos, com todas as precariedades habitacionais que caracterizam esses imóveis, já que a regularização fundiária prescindirá da necessidade de urbanização, em razão da lei de REURB 13.465/2017, que desvincula a regularização fundiária do aprovisionamento de infraestrutura.
Ao promover a “grande anistia” o programa aponta para a criação das condições legais para que as posses e propriedades imobiliárias periféricas possam vir a se “financeirizar” de modo a alcançar a “securitização dos ativos imobiliários populares”, seja na forma de dívidas de mutuários, seja na forma de papéis vinculados às propriedade12. No entanto, esse processo, que pode vir a se conformar como uma expropriação das propriedades imobiliárias e do trabalho acumulado pelas famílias moradoras dos territórios periféricos ao longo de algumas décadas, deve ser inserido num contexto mais amplo12. Em outras palavras, já houve muitas anistias nesses territórios periféricos ao longo do século XX, mas a particularidade dessa promovida pela faixa 1 do PCVA não reside estritamente nas características intrínsecas ao próprio programa, mas em determinantes externos a ele. Vejamos.
De um lado há a proeminência do capital fictício a reorganizar fundamentalmente os termos da acumulação do capital. Este último já perdeu seu lastro fundamental com a exploração (ou superexploração) do trabalho no sentido de que não é mais esse o elo que garante as cifras astronômicas de “lucros” e dívidas registradas pelas contabilidades e jornais diários, mas a especulação com ativos de todos os tipos, inclusive a terra. Não é nada banal que o PCVA fará “o milagre da multiplicação sem recursos”, conforme artigo de Isadora Guerreiro. De outro lado, há uma massa de trabalhadores e trabalhadoras, com suas famílias, que diariamente experimentam a imparável obsolescência e perecimento da única mercadoria que têm para oferecer, suas forças de trabalho, enquanto suas parcas e precárias habitações podem se precificar de forma inaudita. Ambos os lados da equação determinados pelo contínuo desenvolvimento tecnológico, de um lado engrossando as fileiras do desemprego estrutural13 e, de outro, a ficcionalização do capital. Nesse particular, devemos considerar a possibilidade de que, nesse contexto, a “financeirização” das propriedades imobiliárias periféricas possa vir a desencadear uma nova bolha imobiliária em território nacional, ainda que estejamos experimentando a ressaca do estouro da bolha que sustentou o chamado lulismo. Voltemos à escala local.
A mencionada ficcionalização do capital corresponde a um processo extraordinário de centralização dos capitais, responsável pela formação de enormes conglomerados e players no capitalismo de cassino. Nesse sentido, todas as condições para a “entrada” desses capitais no mercado imobiliário periférico estarão dadas, pois a grande anistia, somada aos instrumentos financeiros do PCVA e o desemprego estrutural, poderá ampliar de forma exponencial a oferta da terras e imóveis passíveis de “financeirização”, inclusive negociadas por seus “novos proprietários”. Considerando, no entanto, que essas propriedades se encontram cativas dos mais diversos tipos de irregularidades e dispositivos de gestão, nos parece válida a pergunta se o processo de “liberação” desencadeado pelo PCVA venha a se chocar com tais dispositivos. Isto é, ao se criar as condições para uma mobilização do imobiliário pautado pela regulação estatal e financeira, esses agentes ilegais se encontrarão diante da iminência de serem expropriados de suas possíveis fontes monetárias e de tributos, produzindo tensionamentos nada desprezíveis. Por outro lado, não custa lembrar que os grupos e/ou sujeitos que se valem da força para exercer seus domínios e respectivos negócios podem vir a ser agentes da centralização possivelmente desencadeada pelo processo de anistia, por meio dos mais diversos mecanismos de falsificação de títulos de propriedade, dentre outros… Isto é, ao contrário do que acabamos de afirmar, poderá haver convergência dos interesses econômicos traduzidos politicamente entre o PCVA e os agentes ilegais de gestão.
Do ponto de vista da reprodução da população moradora é preciso recordar que os territórios periféricos têm se caracterizado pela presença de microempreendimentos entabulados por seus moradores. Distintas modalidades de uso do espaço têm sido agenciadas pelas diferentes gerações de moradores dos territórios periféricos como parte das estratégias de reprodução num contexto de ampla monetarização proporcionada pela bolha de commodities e a superfluidade do trabalho. Diante de um cenário no qual as condições de inserção no mundo do trabalho se mostram cada vez mais precárias, a possibilidade de regularização e financeirização que se avizinha pode parecer a essas famílias e seus membros como a chance de alcançar rendimentos que possam lhes desafogar das pressões mais imediatas com seus imóveis recém-regularizados, mesmo que isso envolva a contração de dívidas. Caso as estratégias reprodutivas das famílias periféricas incluam a negociação de suas propriedades recém-regularizadas, não é pequena a chance de que testemunhemos uma assombrosa expropriação de moradia e trabalho, marcada por forte endividamento, que comprometerá os rendimentos futuros dessa população. Em outras palavras uma mobilização do imobiliário e remobilização do trabalho em massa que nenhuma operação urbana ainda foi capaz de produzir e que poderá dar ensejo a novos arranjos territoriais, doravante destinados à gestão dessa massa de refugiados metropolitanos expulsos de seus territórios.
Daniel Manzione Giavarotti é pós-doutorando pela USP com doutorado em geografia humana.
1 Cf. César Simoni, “A geografia, o governo das massas e a curva da Covid-19”, Le Monde Diplomatique Brasil, 25 de junho de 2020.
2 O argumento apresentado neste texto tem como parâmetro as descobertas de campo de nossos estudos pregressos formalizados na dissertação “O Jardim Ibirapuera, da imposição à crise do trabalho” (2012) e nossa tese “Eles não usam macacão: crise do trabalho e reprodução do colapso da modernização a partir da periferia da metrópole de São Paulo” (2018).
3 Não estamos aqui nos referindo aos processos de ocupação, organizados ou não, nos quais a mediação do dinheiro é desafiada.
4 Em 1997 o então presidente FHC não hesitou em afirmar, de modo cínico, que “o processo global de desenvolvimento econômico cria pessoas dispensáveis no processo produtivo, que são crescentemente inempregáveis” (Folha de S. Paulo, 8 abr. 1997).
5 De nosso ponto de vista a viração, o chamado trabalho sem forma, a precarização, o trabalho temporário, a alta rotatividade, são todas as formas empíricas e legais da superfluidade do trabalho do ponto de vista do capital.
6 Conferir o artigo “O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho – bolha das commodities, capital fictício e crítica do valor-dissociação” (Pitta, 2020).
7 Gabriel Feltran reconheceu isso em seu artigo “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo” (2014) a despeito de ver ali fundamentalmente uma estratégia política de mediação de conflitos latentes entre “alteridades radicais”, destituindo o dinheiro de sua determinação fundamental, em sua relação com o capital e como forma de dominação social.
8 Conferir artigo de Isadora Guerreiro “Aluguel informal e divisão da classe” na qual a autora sistematizou alguns dos debates ocorridos no seminário “Moradias de aluguel” organizado pelo LabCidade.
9 Vide o livro “Irmãos – uma história do PCC” de Gabriel Feltran, empenhado em demonstrar como o funcionamento da organização se assemelharia a uma irmandade ou maçonaria do crime.
10 De acordo com matéria de Allan de Abreu publicada na Revista Piauí, uma investigação realizada pela Polícia Federal identificou uma participação crescente de integrantes do PCC entre 1992 e 2020 no mercado imobiliário, e que segundo a PF estariam funcionando como um método de lavagem de dinheiro. A investigação da PF se valeu das cifras declaradas nas escrituras dos imóveis, o que certamente restringe o escopo de observação dos negócios imobiliários movimentados por irmãos do PCC. Por outro lado, a ver pelas cifras declaradas e o poder financeiro alcançado pelo PCC, vale nos perguntar sobre as vantagens financeiras que o PCC teria com os negócios imobiliários periféricos.
11 Conferir artigo de Isadora Guerreiro, op.cit, na no qual a autora apresenta alguns dados sobre a “inquilinização” dos territórios periféricos, e segundo dados ali apresentados já é possível identificar processos incipientes de centralização de propriedades imobiliárias nas periferias.
12 Renato Balbim no artigo “Os tons de cinza do Casa Verde e Amarela” sugere algo nessa linha, mas ao fazer coincidir o processo em curso com aquilo que Kowarick analisou num contexto de industrialização nacional, perde de vista uma transformação fundamental na forma da acumulação do capital.