Um novo olhar
Vivemos, talvez, um momento de transição do padrão civilizatório. Um tempo de perplexidades. A ameaça de desastres climáticos, pandemias e conflitos étnico-religiosos inspira cenários apocalípticos de morte e destruição. Enquanto isso, o processo científico-tecnológico, a criação de uma rede mundial de comunicação, a interação sem precedentes das mais diversas matrizes culturais abrem perspectivas inéditas para o desenvolvimento humano. Como pano de fundo, vemos prolongarem-se assimetrias nas relações entre os países, escandalosas desigualdades no acesso aos bens materiais e culturais pelas diferentes classes, manipulações das consciências pelas grandes corporações da mídia e do entretenimento.
Mais do que nunca, precisamos de reflexões aprofundadas que instaurem, entre nós, espaços de lucidez. Até porque, os discursos fáceis e as fórmulas simplistas, à direita e à esquerda, foram reprovados no teste da prática, evidenciando sua inconsistência. Com o fim da bipolaridade e a obsolescência dos grandes modelos teóricos herdados do século XIX, a intelectualidade encontra-se livre de opressivas camisas-de-força ideológicas – livre para construir novos paradigmas capazes de responder aos desafios do presente, como tem sido apontado pelas sucessivas reuniões do Fórum Social Mundial.
Tal constatação, por si só, justificaria o lançamento de Le Monde Diplomatique Brasil – edição brasileira impressa do periódico francês Le Monde Diplomatique. Pois, nascido, em 1954, como suplemento do prestigioso cotidiano Le Monde, este se tornou, ao longo dos anos, uma permanente referência para quem busca inteirar-se do cenário mundial e dos grandes temas políticos, sociais, econômicos, culturais e filosóficos da atualidade. Com 36 edições mensais impressas, somando uma tiragem total de mais de 1,5 milhão de exemplares, e 33 edições eletrônicas, Le Monde Diplomatique é hoje publicado em quatro continentes (Europa, América, Ásia e África) e 26 idiomas. A edição brasileira é herdeira desse sólido legado. Sem pretender medir forças com outros órgãos da imprensa nacional, esperamos ocupar um espaço muitas vezes negligenciado, contribuindo para a crítica ao pensamento único. Não temos, no Brasil, a tradição de olhar de forma abrangente a conjuntura global. Menos ainda se consolidou entre nós uma visão alternativa ao enfoque da grande mídia norte-americana, cuja credibilidade, se havia, ficou seriamente abalada com a cobertura da Guerra do Iraque. O espectro do noticiário internacional veiculado no país dificilmente ultrapassa os limites das Américas e da Europa Ocidental. A China chegou timidamente às páginas da imprensa por força de seu espetacular ritmo de crescimento econômico. Mas a Índia, com sua cultura várias vezes milenar, sua população de 1,1 bilhão de habitantes, sua taxa anual de expansão do PIB superior a 9%, continua notavelmente ignorada. O que dizer dos países africanos, se até o Oriente Médio ainda é muitas vezes encarado como uma esfinge indecifrável? A visão multilateral da cena planetária, em contradição com o foco estreito ditado pelos centros hegemônicos do poder, é um traço característico de Le Monde Diplomatique, do qual se beneficiará a edição brasileira.
Porém nossa pauta não se esgota na temática internacional. Também é necessário desvelar a lógica subjacente aos assuntos ambientais, econômicos, sociais, políticos e culturais em discussão no Brasil. Trata-se de politizar o debate no sentido profundo da palavra, sem partidarismos reducionistas e ocultamentos de interesses espúrios. Do ponto de vista de uma democracia ampliada, capaz de acolher as múltiplas e contraditórias reivindicações da sociedade e abrir espaço para a efetiva construção e exercício da cidadania, o que significam as várias iniciativas em curso? Precisamos estabelecer sólidos compromissos com a democratização da democracia, com a efetividade dos direitos e com a construção de uma sociedade plural e inclusiva. Por isso, e para isso, acolhemos em nossas páginas um numeroso corpo de colaboradores, conjugando diferentes pontos de vista. Amostra disso é a própria composição do Conselho Editorial. Reunindo nomes respeitáveis da cena intelectual, artística, científica e política brasileira, ele é, em si mesmo, a expressão de um princípio de complementaridade.
Le Monde Diplomatique Brasil constitui, finalmente, uma porta aberta ao novo. Novos comportamentos, novas formas de intervenção cultural, novas proposições artísticas. A extraordinária mobilidade de pessoas e informações talvez seja o traço mais marcante desta época. O intercâmbio, talvez caótico, mas extremamente vigoroso, que daí resulta, oferece à humanidade uma oportunidade única. Queremos ser os olhos e os ouvidos deste tempo. E também os seus protagonistas.
José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.