Um olhar africano
A opinião pública mundial é dominada pela informação procedente do hemisfério Norte. Longe de ser inocente ou neutra, ela serve de álibi para que os países ricos imponham o sistema de segurança da globalização liberalJean-Marc Éla
“A partir daquele trágico 11 de setembro”, escreveu um jovem camaronês no jornal Regard Nouveau1, “os Estados Unidos da América transformaram sua embaixada em Yaoundé numa verdadeira casamata. A rua que desce acompanhando o Centro Cultural norte-americano, assim como as duas outras artérias que levam ao trevo de Abbia, foram completamente obstruídas, com sua passagem bloqueada pelo Tio Sam, paralisando simultaneamente a atividade comercial nesse importante setor da capital, onde os motoristas são obrigados a fazer enormes desvios para contornar o no man?s land norte-americano. Seria difícil imaginar que a arrogância norte-americana permitisse a qualquer país criar um mini-Estado no coração de Washington…” Essa reação traduz – apesar dos fascinantes mitos que propaga um cinema medíocre nas favelas que se agigantam – o grau de intolerância a que chegou a população da República dos Camarões, sempre considerada uma “África em miniatura”.
Diante da arrogância com que os Estados Unidos tentam impor seu poder, são compreensíveis as “lágrimas de crocodilo” dos camaroneses
Diante da arrogância com que os Estados Unidos tentam impor seu poder, inclusive nas relações que estabelecem em territórios estrangeiros, são compreensíveis as “lágrimas de crocodilo” dos camaroneses: embora não escondessem sua indignação com a terrível tragédia do 11 de setembro, viram nela “um castigo de Deus” e quiseram saber se os próprios norte-americanos se preocupam “quando ocorrem genocídios na África2“. Tanto na rua quanto nos escritórios, os atentados de Nova York e Washington foram entendidos e vinculados à lembrança dos horrores a que a potência norte-americana submeteu inúmeros povos: “Os norte-americanos e seus aliados”, diziam, “jamais questionam, em nome da democracia e da liberdade, quando populações civis são atingidas durante bombardeios punitivos…”
A humilhação dos ditadores
É verdade que os atentados atingiram o ponto vital da “civilização ocidental”: os Estados Unidos. Mas, passados os bombardeios norte-americanos no Afeganistão, talvez agora seja a hora de reencontrar “a honra de pensar”. A opinião pública mundial é dominada pelo ponto de vista do hemisfério Norte. Longe de ser inocente, este serve de álibi para que os países ricos imponham um sistema de segurança da globalização liberal. É fundamental, no entanto, inverter esse ponto de vista, colocando-se do lado dos “condenados da terra” para que se possam repensar as relações internacionais.
Num momento em que o mundo ocidental se americaniza3, é fundamental questionar se essa apropriação não seria a da cultura de cow-boy que se reacende no país do Tio Sam desde que Bush se envolveu na “primeira guerra do século XXI”, transportando para os dias de hoje o espírito de faroeste em sua perseguição às forças do Mal “onde quer que elas se encontrem4“.
As políticas de segurança elaboradas sob a tutela de Washington não permitem qualquer dissidência, sob o pretexto de combaterem o terrorismo. Para agradar aos Estados Unidos e receber uma ajuda econômica, os ditadores africanos não hesitam em humilhar-se, fingindo descobrir “células da Al-Qaida” após terem “Bin Ladenizado” os movimentos rebeldes de seus países e procurando, dessa maneira, fugir às críticas das organizações de proteção aos direitos humanos.
A fragilidade norte-americana
É fundamental inverter a tendência atual, colocando-se do lado dos “condenados da terra” para que se possam repensar as relações internacionais
Para além do continente negro, esse desafio coloca a questão do Estado de direito numa era de conquista de recursos estratégicos em que as potências hegemônicas – sedentas de petróleo – fazem a lei. Rompendo com a lógica das referências à “nebulosa islâmica”, que seria receptiva a todo tipo de alianças suscetíveis de despertar velhos reflexos da história das cruzadas, também é necessário resistir a avaliar os atentados em seu contexto para compreender seu sentido e sua mensagem.
Na realidade, o que cabe à história guardar dos atentados de Nova York e Washington é que o mito da inviolabilidade dos Estados Unidos, já abalado em fevereiro de 1993 com o atentado de Oklahoma City, foi para o espaço. Assim como foi profundamente abalada a crença num imperium norte-americano abrangendo o mundo inteiro. Com o fim da guerra fria, os norte-americanos habituaram-se a pensar que seriam “o último império”. Após o 11 de setembro, “as pessoas aprendem a conviver com a dúvida e o medo5“.
Após terem destruído vidas humanas em números impensáveis; terem disseminado o terror nos países em que, com a ajuda da CIA, apoiaram, armaram e colocaram no poder regimes militares e ditaduras sangrentas; terem humilhado os povos de países inteiros; e terem aniquilado, pela violência, movimentos que lutavam pela liberdade e pela democracia6, os Estados Unidos são hoje tão frágeis como qualquer outro povo da terra.
Governar pelo medo
As políticas de segurança elaboradas sob a tutela de Washington não permitem qualquer dissidência sob o pretexto de combaterem o terrorismo
Quando o gigante treme e o herói se comporta como vítima, não estaria, então, todo o mundo ocidental vivendo no medo? Diante de um inimigo invisível e sem território, estaria o futuro no fechamento das fronteiras? Num mundo de desigualdades e de guerras, em que o fluxo de imigrantes e de refugiados parece inesgotável, a quem servirá o Muro de Berlim que estão reconstruindo no interior do Ocidente? Diante desse desafio, parece necessário repensar a relação com o Outro – no caso, o africano ou o árabe – pondo fim aos mitos e preconceitos que, como demonstra Edward Saïd, os esvaziaram de sua humanidade no contexto da expansão colonial7. Além disso, uma outra questão se impõe: as potências políticas e econômicas, que gastam bilhões de dólares em armamento, irão resistir ao estado de guerra quando se conscientizarem do medo de ver ruírem as próprias bases de sua hegemonia?
Abalados, os Estados Unidos – que alimentam a pretensão de serem a polícia do planeta – correm o risco de sucumbir a uma paranóia contagiosa, com a criação de perímetros de segurança destinados a manter os Bárbaros restritos ao seu território. Examinando as leis draconianas que foram adotadas na luta contra o Eixo do Mal, é justa a preocupação com as conseqüências nefastas que essas medidas podem vir a ter para os próprios países do hemisfério Norte. Basta salientar a tendência a governar pelo medo, alimentando um imaginário de ameaças por meio de mecanismos de segurança que violam as liberdades fundamentais. Lembrem-se também os poderes exorbitantes que foram concedidos à polícia. Caminha-se rumo a um Estado repressivo que se permite irromper na vida privada, justificando o controle do correio postal e eletrônico em nome da luta contra o terrorismo.
Questionar a atitude dos ricos
O que cabe à história guardar dos atentados de Nova York e Washington é que o mito da inviolabilidade dos Estados Unidos foi para o espaço
Estrangeiros correm o risco de se verem espancados por policiais que agem com impunidade total e se comportam como se estivessem acima da lei, desde que se trate de defender a ordem do mercado. O Outro, originário do hemisfério Sul, é o principal alvo desse arsenal repressivo criado pelos governos – que vincula crime e imigração. Para os Cérberos, guardiães da porta do Templo, é obrigatória a suspeita sobre qualquer indígena que desembarque num aeroporto europeu ou norte-americano: o uso do turbante, do boubou ou da djellaba8 tornou-se um risco considerável. É como se uma pessoa originária do outro lado do Mediterrâneo fosse sinônimo de vínculo com uma rede terrorista. Seria o caso de se pensar se a Barbárie estaria voltando ao Ocidente.
Ao invés de velhos clichês já gastos, as relações entre o mundo ocidental e os povos do hemisfério Sul deveriam colocar-se em termos de povos antigos e povos jovens cuja irrupção na história se faz por meio de um movimento irreversível e numa era de novos movimentos migratórios. Nessa direção, nenhum país, por mais poderoso que seja, escapa à necessidade de olhar para si próprio para exorcizar os monstros que nele residem. A verdadeira réplica aos atentados de 11 de setembro está em voltar a questionar a atitude dos países ricos em relação aos humilhados da terra.
Uma outra maneira de viver
Caminha-se para um Estado repressivo que invade a vida privada, justificando o controle do correio postal e eletrônico em nome da luta contra o terrorismo
Vale mencionar o tédio com que os países ricos respondem ao clamor dos pobres. Apesar dos gritos de alerta sobre a expansão da Aids, o destino dos países marginalizados do mundo continua não passando de uma urgência esquecida. “O terrorismo em primeiro lugar, depois a pobreza”, foi o que decidiu a reunião do G 20 dos dias 26 e 27 de junho de 2002, em Ottawa. Em Calgary, o projeto que visava a que os países ricos concedessem à África mais da metade de seus atuais orçamentos de ajuda esbarrou na intransigência norte-americana. Ocorre, no entanto, que qualquer aliança contra o terrorismo carece de sentido se não tentar reduzir o imenso adubo de que ele se alimenta. Um adubo que consiste de pobreza e injustiça. É impossível continuar conduzindo a humanidade rumo a tamanhas desigualdades.
Se a força não se limita ao poder de poluir e destruir, de matar e conquistar, de confiscar e subjugar, não deveria o Ocidente inventar outra maneira de viver, participando da recuperação de povos crucificados durante tanto tempo? Não se trata de transformá-los em alvos da assistência mundial, mas de partilhar as riquezas do planeta, conscientizando-se de que os “condenados da terra” não irão aceitar eternamente a condição de “sem nada”. A partir de então, a segurança deixaria de ser um caso de polícia. Decorreria da justiça. E isso exige uma mudança de modelo e a busca do desejo de ter sentido nas sociedades bem alimentadas.
(Trad.: b