Um país em erupção
Dificilmente o golpe de Estado que levou o vice-presidente Noboa ao poder conseguirá calar a revolta popular. A crise econômica é profunda é o descontentamento se alastraJosé Maria Tortosa
Ao dolarizar a economia e deixar a conta da crise econômica para os menos favorecidos, o presidente equatoriano Jamil Mahuad provocou um golpe de Estado, dirigido por várias dezenas de oficiais progressistas, pelo poderoso movimento indígena e por alguns políticos de oposição. Destituído em 21 de janeiro último, ele foi em seguida substituído no poder por seu vice-presidente, Gustavo Noboa, que pretende adotar… a mesma política. Por trás desse surpreendente epílogo e do afastamento da Junta de Salvação Nacional formada durante a sublevação, estão o alto comando do Exército e a forte pressão dos Estados Unidos.
O Equador, país de 12 milhões de habitantes, traz esse nome desde 1830 graças a uma expedição científica franco-espanhola que, alguns anos antes, havia estabelecido sobre esse território a linha equinocial. Ao escolher esse nome evitavam-se as suspeitas das cidades de Guayaquil e Cuenca, que não viam com bons a opção pelo nome de Quito. As “Corporações e Pais de Família de Quito”, que evidentemente não incluíam os índios, designaram assim o país em nome da unidade nacional, decisão que já assinalava os problemas que o Equador enfrentaria posteriormente.
Os vulcões se agitam. O povo também
Dois acontecimentos totalmente diferentes projetaram o Equador nas primeiras páginas da imprensa internacional no final de 1999 e no começo do ano 2000. Em primeiro lugar, as erupções do vulcão Guagua Pichincha, que deixaram a capital Quito na iminência de um estado de alerta e do Tungurahua, responsáveis pela evacuação da cidade turística de Baños. O que mais chamou atenção sobre o Equador, no entanto, foram os acontecimentos de janeiro de 2000: dolarização da economia e tentativa de golpe de Estado com um fugaz triunvirato formado por um militar, um indios e um políticos. Finalmente, a substituição do presidente Jamil Mahuad por seu vice Gustavo Noboa.
A metáfora dos vulcões pode ser útil: assim como eles devem ser entendidos como resultado de placas tectônicas que entram em colisão, as erupções sociais devem ser vistas como placas que se chocam na sociedade equatoriana. De fato, essas “erupções” são cada vez mais freqüentes, pelo menos desde a restauração da democracia em 1979. Para citar apenas as mais recentes: em 1992, sob a presidência de Rodrigo Borja, houve um “levante” indígena, que se repetiu em 1994. [1]
Fevereiro de 1997 marcou a queda e o exílio do presidente Abdalá Bucaram, conseqüência de mobilizações populares que levaram à presidência interina de Fabián Alarcón. No ano passado também proliferaram as mobilizações: em março, foi a greve dos transportes, que paralisou o país; em julho, essa greve se repetiu, acompanhada da “tomada de Quito” pelos índios e de um dia de greve geral. Janeiro de 2000 teria sido a data da segunda “tomada de Quito”, da qual participou a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), apoiada por certos militares e partidos políticos de oposição. As sombras do peruano Fujimori e principalmente do venezuelano Hugo Chávez [2] pairaram sobre essas revoltas sociais.
Sem negar o papel nefasto da “política de marionetes” e suas manobras, a origem dos problemas se encontra na situação econômica. [3] A dívida externa atinge 14 bilhões de dólares, o equivalente ao produto interno bruto (PIB) do país. Para pagar a dívida, o Estado deve destinar a ela 40 % de seu orçamento, enquanto 13% dele são atribuídos à educação e 3% à saúde. O governo deve também dobrar-se às “terapias” prescritas pelo FMI. A inflação atingiu 60% em 1999, enquanto a economia teve uma queda de 7%. Entre agosto de 1998 e janeiro de 2000, o sucre, moeda local, perdeu 4/5 de seu valor frente ao dólar. A dolarização consagrou esta queda.
Da crise da dívida à dolarização
Sem voltar à situação econômica dos tempos coloniais, pode-se localizar o início dessa crise no período (início dos anos 70) que sintomaticamente se chama, no Equador, de “o boom do petróleo” e, na Europa, “crise do petróleo”. O país, na época ainda sob ditadura militar, mergulhou numa dinâmica de endividamento. Com ela foram coniventes os bancos, que esbanjavam liquidez devido aos petrodólares. A crise estalaria já sob o regime democrático.
Ela, não passa, na verdade, da contração de novos débitos, com o objetivo de quitar os antigos, e se traduz pela imposição de medidas de “regulamentação” que prejudicam os menos favorecidos enquanto protegem os bancos — principalmente os estrangeiros. A rolagem dessas dívidas se beneficiou de várias moratórias, até a chegada do presidente Jamil Mahuad ao poder, em 1998. Sob seu governo, a crise das finanças públicas chegou a extremos. A queda dos preços do petróleo, em 1997 e 1998, desferiu um golpe fatal às rendas do Estado, que provêm, em mais da metade, das exportações do produto. Essas perdas não foram no entanto compensadas pelo imposto de renda, já que a população hesitava em pagá-lo. 4 Para atingir um novo equilíbrio nas finanças públicas, o governo cortou as subvenções, restringiu os serviços sociais — mantendo ainda um “auxílio pobreza” simbólico — e, principalmente, criou novos impostos para os mais pobres, em particular para todos os pequenos vendedores do setor “informal”. Finalmente, aumentou o preço da gasolina em 174% (!) em março de 1999.
A cólera social está se manifestando agora, enquanto o sistema financeiro afunda pouco a pouco no caos. O Estado, preocupado em obedecer as orientações liberais do FMI, corre em socorro dos bancos em dificuldade (o que não impedirá que seis deles fechem as portas). Num mesmo momento o governo decreta (março de 1999) o bloqueio parcial dos bens bancários dos cidadãos e anuncia (em setembro) que não pagará uma parte (50 milhões de dólares) de sua dívida. Em meio a essa confusão, o presidente Mahuad recorre à dolarização como última esperança para salvar aquilo que ainda pode ser salvo, em detrimento dos mais pobres. A economia já estava dolarizada: em 5 de janeiro de 2000, 45 % da dívida interna já estava em dólares americanos. O economista americano Paul Krugman acredita que a dolarização serve de cobaia para as próximas crises financeiras. [4]
Em resumo: a economia equatoriana foi devastada pela gestão mesquinha dos governos militares e da classe política; foi deteriorada por uma “tutela” exterior menos preocupada com o país que com a estabilidade dos bancos norte-americanos; possui uma classe dirigente que considera o Equador como uma hacienda e pensa ter direitos de propriedade sobre ela, e uma oposição (incluindo a Conaie) com tendência à verbalização de grandes objetivos, mas com uma visão reduzida ao curto prazo e às ações imediatistas. Tudo isso apressou a polarização que já germinava.
Acentuada e acelerada pelas políticas neoliberais que diminuíram a intervenção do Estado, a pauperização do Equador é reconhecida pelo próprio Banco Mundial: 46% dos habitantes não dipõem nem mesmo do famigerado dólar por pessoa por dia que, segundo essa instituição, marca a diferença entre o pobre e o não pobre. Porém, se ao invés de recorrer a esse indicador duvidoso, nos basearmos na insatisfação das necessidades vitais de alimentação, habitação digna, vestuário decente e segurança humana, o número de pobres poderia atingir 80%.
Com os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, é possível compreender que a classe média — que não para de diminuir — se comporte como uma classe angustiada e conseqüentemente manipulável, e que os pobres, particularmente os índios, cheguem a níveis de desespero extremo.
Os índios contra o “Reich de 500 anos”
Infelizmente, há mais camadas sociais do que parece. Agem com lógicas independentes, e mantêm um distanciamento entre si, os índios e os criollos (oligarquia nativa). No meio dessas duas categorias estão os mestiços, que desempenham um complicado papel. [5] Os antecedentes coloniais desse distanciamento são conhecidos, mas a situação dos índios praticamente não mudou desde a independência: eles permaneceram, devido ao sistema do huasipungo, como a camada mais baixa da sociedade, a ponto de as fazendas serem vendidas com eles dentro. Isso é um fato raro, mas ainda acontece. Os índios receberam o direito de voto apenas na segunda metade do século XX.
Maltratados fisicamente, afastados da educação, explorados economicamente, desacreditados etnicamente durante o “Reich que durou 500 anos” como disse Noam Chomsky, os índios começaram aos poucos a tomar consciência de sua condição. Essa tomada de consciência não foi alheia à Igreja católica, e se concretizou por meio de organizações como a Conaie. Inclui a participação direta em partidos políticos como o Pachakutik, ao qual está filiada uma deputada índia, Nina Pacari. Durante o governo de Jamil Mahuad, ela chegou ao posto de vice-presidente do Congresso.
Uma outra ruptura antiga, também de origem colonial, vem à tona periodicamente: a cisão entre a Sierra (parte central do país, situada a mais de 2 mil metros de altitude) e a Costa do Pacífico. Esta última, que já foi várias vezes objeto de divergências entre Santa Fé (Bogotá) e Lima, é hoje o centro da atividade industrial, da colheita de banana e da produção de camarão, produtos-chave da exportação equatoriana. Outro produto-chave da exportação é o petróleo, presente numa terceira região, a Amazônia. A região costeira acusa a Sierra de concentrar o poder militar, administrativo e eclesiástico, e de não responder a suas demandas legítimas. De fato, enquanto o país estava sob choque, em 23 de janeiro último, foi realizado em Guayas (região da Costa), apesar de tudo, um plebiscito sobre a autonomia da província — aprovada apesar de uma grande abstenção. [6]
Os militares constituem um grupo bastante particular. Não são mais de origem aristocrática, e os mestiços já integram suas fileiras. São fundamentalmente serranos e conseguiram um poder econômico que inclui empresas, hotéis e universidades. Além disso, a guerra entre Peru e Equador, terminada em 1998 e cujo acordo de paz foi ratificado em 1999 pelos presidentes Fujimori e Mahuad, lhes restituiu antigas glórias. O Estado Maior não teria perdoado o presidente Mahuad pelas reduções do orçamento militar, conseqüências no entanto normais do “retorno à paz”. [7]
Os poderes do “vice-rei” americano
O Equador continua submisso à forte influência dos Estados Unidos, que se expressa pela atitude da “Embaixada”, sede do novo “vice-rei”, à disposição de quem está colocada a base militar da Manta. [8] O país que está à mercê das multinacionais da banana e do petróleo. Se as classes dirigentes podem apelar às forças paramilitares (no ano passado correram rumores a respeito de um eventual campo de treinamento, nas províncias Pichincha-Sierra e Esmeraldas-Costa, do “esquadrão da morte” ou do seu equivalente em Guayaquil), as classes pobres e frustradas podem recorrer à guerrilha ou a novas mobilizações, como anunciou Antonio Vargas, dirigente da Conaie, depois do fracasso de janeiro de 2000.
É possível enganar os índios muitas vezes, mas não indefinidamente. Pode-se reprimir os pobres até que isso não s