Um persistente déficit democrático
O que é apontado como grande avanço democrático no Tratado Constitucional não passa de dispositivos formais, anulados pelo modelo econômico ultraliberalBernard Cassen
Os partidários do “sim” invocam progressos democráticos, dos quais seriam uma prova as disposições contidas na terceira parte do Tratado Constitucional Europeu (TCE). Citam as novas modalidades de cálculo da maioria qualificada (55% do número de Estados que representam pelo menos 65% da população da UE) que são certamente mais simples – porém apenas num pequeno grau – que aquelas do tratado de Nice atualmente em vigor1. Eles se apegam igualmente a duas criações: a de um posto de presidente do Conselho Europeu eleito por dois anos e meio, e do qual se espera que crie, no exterior, um “rosto” para a União Européia, bem como a de um ministro dos Negócios Estrangeiros.
Além de a delimitação (ou a confusão?) de responsabilidades entre essas duas personalidades, e entre elas e o presidente da Comissão, ter rendido boas discussões, não se vê como a existência de uma função de representação suscitaria milagrosamente o consenso em relação a uma política comum aos “Vinte e cinco”. O que poderia ter dito um ministro dos negócios estrangeiros da UE quando do desencadeamento da invasão anglo-americana no Iraque, considerando as posições contraditórias existentes?
Progressos pífios
O modelo econômico ultraliberal está inscrito na maior parte dos 332 artigos da terceira parte de um TCE que compreende o total de 448
Outros cinco “progressos” democráticos do tratado são pontualmente colocados:
o direito de “alerta precoce”: um terço dos parlamentos nacionais (ou 9 em 25), podem, em nome do princípio de subsidiariedade, obrigar a Comissão a reexaminar uma das suas propostas já apresentada ao Conselho, ou ao Conselho e ao Parlamento (protocolo n° 1 anexado ao TCE). O que é menos enfatizado é que a Comissão, instituição não eleita, conserva a última palavra: pode manter, alterar ou retirar sua proposta. Os parlamentos nacionais, mesmo se chegarem a se coligar, permanecerão em sua posição muito subalterna;
o direito de iniciativa: um milhão de cidadãos da Europa pode convidar a Comissão a apresentar uma proposta de ato jurídico (artigo I-47). Aí, também, apesar do seu interesse simbólico, esse “direito” é mais que limitado: primeiro, a proposta deve entrar no âmbito da Constituição, o que remete ao conteúdo liberal desta última; em seguida, a Comissão, se ela der seqüência, não tem nenhuma obrigação de retomar o conteúdo do convite que lhe é dirigido. Ela permanece sendo o filtro discricionário entre os requerentes e as instituições originadas direta ou indiretamente do sufrágio universal que são o Parlamento e o Conselho;
o aumento (de 29 a 35, de acordo com o método utilizado para o desconto) do número de domínios dependentes da co-decisão entre o Parlamento e o Conselho – apesar de o Conselho decidir sozinho em 21 domínios, os mais importantes, como por exemplo, o sistema fiscal e o essencial da política social;
a divulgação das sessões do Conselho (artigo I-24) quando se delibera sobre uma proposta legislativa. Contudo, essa disposição corre o risco de ser bastante formal porque a maior parte das decisões são elaboradas, quando não tomadas oficiosamente, acima das reuniões do Conselho pelo Comitê dos Representantes Permanentes (Coreper) dos Estados que, este, não sedia publicamente;
a nova possibilidade de um Estado se retirar da UE (artigo I-60).
Uma vez adicionados, todos esses pontos preenchem realmente o “déficit democrático” do funcionamento da UE? Em especial, aquele que induziria a “constitucionalização” do modelo econômico ultraliberal inscrito na maior parte dos 332 artigos da terceira parte de um TCE que compreende o total de 448.
(Trad.: Marcelo de Valécio)
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.