Um porrema para Adorno
Resenha do livro Porremas, de Diego Barboza, Manuela Oiticica e Rafael Maieiro (orgs.), Rio de Janeiro, Mórula
Se há dúvidas a respeito da verdadeira autoria da frase “Escreva bêbado, edite sóbrio”, frequentemente atribuída a Ernest Hemingway, ninguém questiona que o escritor tenha afirmado que a bebida é “o único alívio mecânico” para “a opressão mecânica” da vida moderna. O livro Porremas se apresenta como inspirado no primeiro conselho, mas, ao mesmo tempo, desvela por completo o sentido da sentença crítica.
A proposta é clara: escrever (muito) bêbado, editar de ressaca. O tempo em que se acreditou que criatividade e técnica eram pares passou. Otimismo da razão? Hoje? Os diferentes poemas reunidos dizem que não: na irracionalidade do sistema (capitalista?), o fim – o amor e o sexo, a solidariedade, a felicidade e a satisfação das necessidades – está subordinada aos meios. “A pior nostalgia”, avisa Aldir Blanc, o oráculo mas também um dos porretas do livro, “é a do peru Sadia: já vem (ou já vai) temperado”.
Nos Porremas, o mundo é um bem exterior, violento e impessoal. Uma mercadoria que impõe a objetividade das coisas sobre mulheres e homens livres: “Um fantasma sob sua carcaça”, diria Alexandre Guarnieri. Ironicamente, nós a criamos para nos satisfazer, mas, tornando-se um fim em si mesmo, ela se autonomiza, se distancia e reprime. “Consumir tudo pra se tornar escuro?”, pergunta Leo Haua. Esse mundo das coisas esvazia o sentido das relações. Na sociologia, se fala em jaula de aço; nos porremas, Mariana Blanc mostra que “num gesto simples,/ele fechou as cortinas”.
Desde as primeiras páginas, já sabemos que o fetichismo destrói a potência, mas também infiltra a esterilidade do sempre igual, até chegar ao declínio da própria liberdade. Manuela Oiticica a define: “Estéril, o gesto é mecânico [na alma/sem fome. Que tem à beça/E aí não têm mais”. Na vida dos porremas, como na nossa, essa igualdade é falsa ou, segundo Zeh Gustavo, é “a verdade” “mentida”. Pois há, conforme as palavras repetidas de Rafael Maieiro, sempre alguém que “paga a porra do mercado”.
Os porretas não são românticos. Nem o botequim nem a bebida são valores de um passado que escapam ao aprisionamento do nosso sistema. A cerveja também se paga. O bar não é idílico. Apesar disso, todas e todos os porretas concordam que ele pode interromper a dor de cabeça. Coitado dos sóbrios!
O bar não é refúgio. É onde se pode ver aquilo que não se vê. O “cheiro dos balcões engordurados”, de André Rodrigues, expõe a “vida engordurada”, escancarada por Daniel Brazil. O bar é um instante de suspensão das práticas cotidianas dos membros da sociedade burguesa, quando seu caráter insaciável, frenético e efervescente se depara com o que oculta: os limites, a melancolia, a tristeza, o desespero e a miséria (também da filosofia).
Por isso, para Diego Barboza, “decidir tomar um porre sozinho vai além da solidão é um ato de coragem”. Quem sabe ele lhe estende o copo. Com Aldir Blanc aconteceu. E é justamente dessa contradição entre esterilidade e vida que o bar pode se tornar não apenas alívio, mas gozo. “Cada filha da puta merece ao menos um bar [e uma casa”, reivindica Barboza. Com otimismo (da vontade) o bar pode ser o espaço da ação: “fazendo verso/comprando briga/vencemos a chuva/a ordem/a polícia” (Bruno Borja); “vem minha cachaça e convulsiona tudo” (Vinicius ‘Maru’ Pitangui); “vidro do balcão é palco de subversão” (Jhone Carlos). Nessa altura do campeonato, não interessa se alcoólica ou não.
Quando da sociedade emancipada, Adorno indicou: “o delicado seria assim o mais grosseiro: que ninguém passe fome”. Será que não é sede? Pergunte aos porretas.
*Guilherme Leite Gonçalves é professor de Sociologia do Direito da Uerj.