Um remédio que mata
O resultado da receita do FMI é inequívoco: a desigualdade de rendimentos duplicou em 40 anos, enquanto o abismo entre países ricos e pobres triplicou. Mas, para o Fundo, trata-se de um remédio amargo, que a longo prazo, vai curar o doenteIsabelle Grunberg
A política é a arte de decidir “quem obtém o quê, quando e como”. Sob uma aparência tecnocrática, o Fundo Monetário Internacional (FMI) “faz política”, e não pouca, nos países sobre os quais exerce sua influência. E quem lucra com essas políticas, na maioria das vezes, são ricos, e não pobres. No que se refere ao FMI pode-se mesmo falar de uma verdadeira redistribuição em favor dos ricos, tanto a nível nacional quanto mundial.
Receita básica
No plano nacional esta redistribuição às avessas é a conseqüência direta dos programas econômicos que constituem o invariável “núcleo duro” das condições impostas:
as políticas de oferta, que visam atrair investidores, ainda que seja em detrimento dos direitos dos trabalhadores e do meio ambiente; a redução ao mínimo possível dos serviços e programas sociais, a transformação da saúde e da educação em serviços pagos e a supressão dos subsídios aos alimentos e outros produtos de primeira necessidade; a insistência sobre a estabilidade da moeda, que favorece os detentores de capitais e prejudica os mais desfavorecidos, vítimas das medidas de austeridade (desfavoráveis ao emprego) e sobre o rigor orçamentário; as políticas monetárias restritivas (altas taxas de juros) que beneficiam muito mais os ricos que os pobres, posto que os primeiros dispõem de ativos enquanto os pobres estão endividados; a ênfase sobre a constituição de reservas de câmbio, que leva igualmente a frear o consumo e as importações para conseguir excedentes comerciais; a liberalização dos movimentos de capitais, o que provoca crises financeiras na medida em que implica em medidas de ajuste, cujo peso é prioritariamente suportado pelos mais pobres; as privatizações em setores não submetidos à concorrência, criadoras de rendas em detrimento dos usuários;
reformas fiscais que privilegiam a “expansão da faixa da população contribuinte” (com reflexo nos mais pobres).
Resultado da receita: a desigualdade de rendimentos duplicou no mundo a partir de 1960, enquanto o abismo entre países ricos e países pobres triplicou. [1]
Só a China cresceu (sem FMI)
Entretanto, segundo o FMI, trata-se apenas de um remédio amargo que, a longo prazo, vai curar o doente. Além do que um pouco de desigualdade não é assim tão ruim, pois permite encontrar recursos na forma de capitais para investir. Ora, tomando uma distância no tempo, percebe-se que, mesmo por critérios puramente econômicos e mesmo a longo prazo, essa terapêutica fracassou em quase toda a parte. Constatou-se isso inicialmente com a “década perdida” da África dos anos 80, e em seguida, nos anos 90, com o “grande salto para trás” dos países do Leste europeu. Para coroar tudo isto, viu-se como, nos fins dos anos 90, a crise financeira do Sudeste asiático apagou, de um dia para o outro, décadas de progresso social na região. E eis que agora o Banco Mundial reconhece que a América Latina não se comporta melhor do que há vinte anos. [2]
A única região do mundo que conheceu um crescimento forte e ininterrupto no decorrer dos últimos vinte anos foi também um dos raros países a conduzir sua política de maneira independente, a China. [3]
Democracia de fachada
A redistribuição às avessas atinge seu nível máximo quando os dirigentes de um país pura e simplesmente se apropriam do dinheiro emprestado pelo FMI, cabendo ao resto da população a sua devolução. Na verdade, cidadãos de países em vias de desenvolvimento contraem regularmente bilhões de dólares de dívidas sem serem consultados. Nos casos de utilização fraudulenta (graves suspeitas pesaram recentemente sobre os bancos centrais da Rússia e da Ucrânia), o Fundo não somente é cúmplice, mas gestor de um vasto sistema de levantamento monetário que financia diretamente o consumo de poucos. Como disse William Goetzman, diretor do New International Center for Finance, da Universidade de Yale, “os empréstimos estrangeiros concedidos a governos não democráticos deveriam ser reconhecidos como eles são: exploração realizada em parceria”. [4]
As instituições democráticas, as eleições e os Parlamentos não passam de mera decoração se as decisões que marcam a vida de uma nação são tomadas no exterior. A elaboração do orçamento, por exemplo, é um exercício eminentemente redistributivo, assim como a grande maioria das decisões governamentais, mesmo quando se trata de assuntos aparentemente anódinos, como normas industriais e outras regulamentações. Ora, por meio das condições estabelecidas, elaboradas fora do país em questão, o FMI intervém em praticamente todos os setores da atividade pública. E não presta contas a ninguém.
Stiglitz saiu da linha
Tudo isso deveria conduzir à tomada de algumas medidas simples e práticas, imediatamente aplicáveis. Primeiramente, para limitar o caráter antidemocrático de seus efeitos, os empréstimos do Fundo deveriam ser autorizados pelos Parlamentos dos países “beneficiários”. Atualmente, na maioria dos casos, somente alguns aspectos do “pacote de condições impostas ” são submetidos aos parlamentares, mas nunca o empréstimo propriamente dito. Desta forma, os Parlamentos são colocados diante de um fato consumado, de um acordo já negociado e aprovado pelo executivo. Para auxiliar os parlamentares a avaliar os custos e vantagens destes empréstimos, uma assessoria técnica deveria ser-lhes oferecida na forma de pesquisas, projeções e análises de impacto, efetuadas por especialistas realmente independentes.
O conteúdo dos programas que acompanham os empréstimos do FMI deve ser revisto de ponta a ponta de modo a favorecer o emprego e promover um crescimento durável, beneficiando assim os mais pobres. Depois da crise asiática, chegou-se a perceber o surgimento de novas idéias dentro do próprio FMI, mas a reação veio logo para abafar o debate que se iniciava. O ex-vice-presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, não teve alternativa senão renunciar, para não avalizar políticas que, não somente não refletiam o resultado de um debate democrático no interior do país em questão, mas se colocavam acima do debate científico entre economistas. [5]
Os “ajustes disfuncionais”
O que se constata em âmbito nacional ocorre também em nível internacional, nas relações entre Estados: violação dos princípios democráticos, redistribuição de rendas dos pobres para os ricos.
Um dos papéis fundamentais do FMI, segundo sua própria terminologia, é “evitar os ajustes disfuncionais” quando a balança de pagamento de um país é deficitária, ou seja, quando aquele país não dispõe de reservas de divisas suficientes para comerciar com o resto do mundo de acordo com as taxas de câmbio vigentes. Esse tipo de ajuste é considerado prejudicial para o resto do mundo porque resulta quase sempre em desvalorizações, restrições ao comércio ou aplicação de um controle de câmbio (a Malásia do pós-crise, único país a recusar os conselhos do FMI, é exemplo disto). Chega-se, portanto, a uma situação perturbadora: os países do Sul, submetidos às políticas resultantes das condições impostas, são intimados a “internalizar” seus ajustes (com medidas de austeridade), em vez de tomar medidas que afetariam “o resto do mundo”, ou seja, o Norte!
Um Fundo regional
As condições exigidas pelo FMI garantem desta forma que o peso de qualquer ruptura da balança comercial (ainda que provocada por fatores exógenos, como a queda de preço de matérias-primas ou crises financeiras internacionais) seja suportada pelos países mais pobres e, dentro deles, pelas camadas mais desfavorecidas.
No plano macropolítico, o FMI abandonou qualquer pretensão de neutralidade. Nada de surpreendente nisso quando se ouve o presidente da Comissão de Assuntos Estrangeiros do Senado norte-americano, Jess Helms, em visita ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, em janeiro de 2000, intimar a Organização “a ser um instrumento da política estrangeira dos Estados Unidos, senão…”
Eis quem cria problemas quando uma instituição multilateral defende sistematicamente os interesses de um único país em detrimento do resto do mundo. [6] Foi isso que ocorreu durante e após a crise asiática de 1997, quando o Departamento do Tesouro norte-americano sabotou repetidas vezes a proposta de criação de um Fundo Monetário Regional para a Ásia, financiado pelo Japão, e que teria facilitado a saída da crise do continente. Os diretores executivos (representantes dos países) no FMI reconhecem abertamente que suas decisões de empréstimos seguem estritamente as recomendações de Washington. A outorga (ou ameaça de recusa) desses empréstimos é tradicionalmente utilizada para reforçar as alianças militares dos Estados Unidos ou para obter concessões, principalmente comerciais. Para abrir os mercados exteriores, por exemplo, os Estados Unidos podem se dar ao luxo de não oferecer concessões recíprocas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Um “contra-poder” no FMI
O caráter abertamente partidário do FMI permite que se possa, sem dúvida, acusá-lo de ser um “capitalismo da patota” (crony capitalism), tão utilizado contra os governos do Extremo Oriente por ocasião da crise de 1997-1999. Portanto, é conveniente modificar suas estruturas de decisão para lhes dar uma base mais ampla. A Comissão provisória do Conselho dos Governantes — o chamado Grupo dos 24, por reunir 24 ministros de Finanças ou presidentes de Bancos Centrais — deveria ser o órgão de decisão político supremo, deixando de ter um mero caráter consultivo junto ao Conselho de governantes. Os programas de ajuste estrutural — e outros — deveriam ser avaliados pela Assembléia Geral das Nações Unidas, ou pelo seu Conselho Econômico e Social, se não antes, pelo menos após a decisão.
A União Européia, que vem há alguns anos ensaiando a constituição de um “contra-poder” ao