Uma abertura democrática
Um plebiscito — que aprovou uma nova Constituição — foi acompanhado pela libertação de todos os presos políticos, pelo direito de retorno dos exilados, pela abolição das leis de exceção e por uma inacreditável ampliação da liberdade de expressãoDavid Hirst
“Querem uma democracia? Pois então, adotem um rei!” escrevia a publicação trimestral Middle East Quarterly, apontando de maneira espirituosa uma característica curiosa do cenário político árabe contemporâneo. Em uma região refratária à tendência mundial ao “poder popular”, os regimes hereditários, muito mais do que as repúblicas, indicam esse caminho, especialmente na região menos provável, o Golfo. Depois de avanços constitucionais em Omã e Catar, e mesmo de regimes mais conservadores como o da Arábia Saudita, o Bahrein carrega hoje a bandeira da reforma.
Com a morte de seu pai, em março de 1999, o xeque Hamad Ben Issa El Khalifa, tornou-se o novo emir, descendente de uma dinastia que se mantém no poder do pequeno Estado insular desde 1783. Depois de um início pouco promissor ele superou as esperanças que o seu povo tinha com relação aos avanços democráticos. “É quase uma revolução”, diz um militante pelos direitos humanos. “De um dia para o outro, saímos de um período de pessimismo para um de otimismo em relação ao futuro.” O clímax foi o plebiscito que, em fevereiro, apontou 98,4 % dos votos em favor de uma nova Constituição nacional. Um advogado da oposição relata: “Foi uma manifestação autêntica, e não uma manifestação fabricada, no estilo de Assad, Saddam ou Mubarak.”
Consciência sócio-política
Francamente tradicionalista, e até retrógrada, a Constituição autoriza o emir a converter-se em um monarca de fato. Por outro lado, progressista, ela está sujeita a um sistema parlamentar bicameral com a restauração da antiga Assembléia Nacional — eleita paralelamente à Choura (Conselho consultivo), recentemente criada. O plebiscito foi acompanhado pela libertação de todos os presos políticos, pelo direito de retorno dos exilados políticos, pela abolição das leis draconianas de exceção e por uma inacreditável expansão da liberdade de expressão. O xeque Hamad e seu filho Salman, educado em Cambridge, conquistaram imediatamente a popularidade e, carregados por multidões entusiasmadas, aventuram-se a locais onde somente a polícia anti-motim ousava chegar: o foco da contestação.
O xeque Hamad e seu filho Salman, educado em Cambridge, conquistaram imediatamente a popularidade e são carregados por multidões entusiasmadas
Foi uma democracia decretada. Mas também foi uma resposta à vontade popular. “Foi o resultado de uma luta obstinada e de grandes sacrifícios”, assinalava Abd al-Nabi al-Akri após seu retorno triunfal de um exílio de vinte e sete anos. E — poderia acrescentar-se — de uma longa tradição de ativismo popular. Por diversas razões os nativos do Bahrein sempre foram mais avançados que os cidadãos de outros países do Golfo na construção de uma consciência sócio-política moderna. A partir da década de 20, foram constantes as reivindicações de soberania popular, por uma ordem constitucional e por governos representativos, contra uma autoridade hereditária, patriarcal, que se recusava a ser substituída. Em 2000, a situação havia se tornado tão prejudicial no plano político, social e econômico que não poderia continuar por muito mais tempo sem o risco de eliminar a própria dinastia Khalifa.
Influência da revolução iraniana
Em 1973, após a independência arrancada à Grã-Bretanha, os Khalifa promulgaram uma Constituição cujo principal dispositivo era uma Assembléia Nacional composta por trinta membros eleitos e quatorze ministros. Porém, em 1975, o emir dissolveu a assembléia recém-constituída, apavorado com a possibilidade de que ela pedisse justificativas sobre os escassos rendimentos petrolíferos ou sobre os terrenos públicos, ou ainda que pudesse manifestar sua hostilidade a uma lei de segurança do Estado que autorizava a prisão, sem julgamento, de qualquer cidadão por um período de três anos, renovável. Seguiram-se vinte e cinco anos de crescente descontentamento popular contra os desgastes de uma lei anticonstitucional.
“Foi o resultado de uma luta obstinada e de grandes sacrifícios”, disse Abd al-Nabi al-Akri após o retorno triunfal de um exílio de vinte e sete anos
Uma parte da oposição era constituída por um movimento modernizador, não confessional, geralmente próximo dos nacionalistas pan-árabes e dos socialistas que, nas décadas de 60 e 70, haviam conduzido a luta pela instauração de um governo representativo. Tal como os próprios Khalifa, seus membros eram principalmente muçulmanos sunitas que, ainda que representassem uma minoria de menos de 40%, eram tradicionalmente dominantes. A outra parte, mais recente, era xiita, dirigida por uma nova facção de ulemás (teólogos) influenciados pelo ativismo político-religioso da revolução iraniana. Os xiitas eram maciçamente ligados ao meio rural, mais pobres e menos instruídos que os sunitas. Eram também vítimas da discriminação oficial de inspiração confessional. Apesar de seus objetivos muitas vezes divergentes, as duas alas do movimento convergiram para reivindicar conjuntamente a restauração da vida parlamentar. Na última fase, os fundamentalistas xiitas, com base mais ampla e mais militante, trouxeram a contribuição decisiva para a campanha reformista que as forças não confessionais sunitas haviam iniciado.
Discriminação anti-xiita
A campanha tomou novo vigor com o início da Guerra do Golfo (1990-1991) e com o abalo que esta provocou, na região, sobre o prestígio de sistemas baseados na hereditariedade. Os reformistas recorreram ao método consagrado: abaixo-assinados ao emir. Um deles chegou a reunir o impressionante número de 25 mil assinaturas. O emir, no entanto, as desprezou e instalou um Conselho Consultivo sem poder. A oposição ampliou-se, então, assumindo a proporção de uma Intifada,1 ainda que desarmada e essencialmente não-violenta. O regime livrou-se dela pelos métodos da força bruta e da vigilância total. Vinte e cinco mil pessoas — em uma população de quatrocentas mil — passaram pelas instituições penais. Trinta manifestantes morreram em confrontos de rua. Entre uma meia-dúzia de mortos sob tortura, um deles, Said Iskafi, de dezesseis anos, foi seqüestrado de sua casa, na aldeia xiita de Sanabis, e seu corpo devolvido à família alguns dias depois. Cerca de duzentos dirigentes da oposição foram obrigados a se exilar.
O regime intensificou seu caráter confessional de maneira evidente. Ainda que o movimento para os abaixo-assinados tivesse sido inspirado por sunitas e xiitas, a repressão recaiu sobre os últimos, acentuando a discriminação em relação a estes pela total exclusão das Forças Armadas, das Forças de Segurança e de outras instituições “delicadas”. Nem mesmo a Universidade nomeou ou promoveu xiitas, desde 1995, apesar de suas qualificações.
Abuso de poder e corrupção
Após a guerra do Golfo, a oposição ampliou-se, assumindo a proporção de uma Intifada, ainda que desarmada e essencialmente não-violenta
Essa política reforçou a consciência e a militância xiitas e permitiu, mais facilmente, ao regime apresentar a revolta como especificamente xiita, fundamentalista, de inspiração iraniana e como uma ameaça à ordem regional dominante sunita e aos poderes externos que a apoiavam.
O regime recrutou mercenários estrangeiros. Podiam ser árabes, ou não, podiam vir do Sudão, do Iêmen, da Jordânia, da Síria ou do Paquistão, porém eram sempre sunitas. O objetivo era restaurar o “equilíbrio demográfico”. Como estrangeiros, nada os fazia recuar diante da brutalidade com relação à população local, saqueando e roubando as casas que invadiam. Um grupo importante — beduínos rudes, muitas vezes analfabetos, originários do norte da Síria — adquiriu uma reputação particularmente má e os autóctones, tanto xiitas quanto sunitas, lhes atribuíam todo o tipo de desgraças. O governo chegou a conferir-lhes cidadania, bem como às suas famílias, fornecendo-lhes habitação barata.
A este abuso de poder a família reinante somava a corrupção. O Bahrein havia sido, em outros tempos, uma das sociedades mais íntegras do Golfo. O avô do novo emir havia proibido os membros da família de terem negócios. Ele entendia que isso comprometeria seu status e suas vantagens tribais. “Hoje”, admite um homem de negócios, “meus amigos estrangeiros dizem que estamos no mesmo patamar da Nigéria.”
A sede por dinheiro
Com pelo menos três mil membros, os Khalifa ultrapassam de longe, proporcionalmente à população, a grande dinastia dos Saud. Todos eles recebem remunerações do nascimento até a morte. Além disso, através de seus relacionamentos, eles aproveitam-se das ocasiões comerciais mais vantajosas. O tio do emir, primeiro-ministro xeque Khalifa Ben Salman dirige o emaranhado de estruturas que vincula os negócios públicos aos lucros privados. No poder desde 1961, ele lotou a administração com seus protegidos, colocou oito Khalifa no gabinete e muitos mais em outros lugares. “Ele dirige o governo como se fosse uma empresa”, diz um economista da oposição.
A terra tem um papel importante nesta sede por dinheiro. Os mais altos membros da família real competem uns com os outros para conseguir parcelas de terras devolutas que, normalmente, pertenceriam ao Estado. Já se apropriaram de algumas das ilhas menores do arquipélago. Ganham terra no mar e depois as vendem aos cidadãos, que também devem quitar sua dívida para com o Estado.
“Velha guarda” contra reformas
Com o reforço da consciência e militância xiitas, ficou mais fácil para o regime apresentar a revolta como fundamentalista, de inspiração iraniana
Além disso há as rendas oriundas dos “vistos livres”. Os Khalifa, ou seus amigos, “financiam” a importação de trabalhadores estrangeiros. Deduzem do pagamento de cada imigrante um “imposto obrigatório” anual que pode chegar a mil e quinhentos dólares. São duzentos mil trabalhadores estrangeiros, a metade deles, indianos, e representam 70% da força de trabalho total. Competem diretamente com os nativos que — de maneira pouco comum nos ricos países produtores de petróleo do Golfo, consentem em desempenhar um trabalho manual. A taxa de desemprego é, portanto, alta. Em torno de 30 %, e maior ainda entre os xiitas. Algumas aldeias xiitas, diz um economista “lembram aquilo que se pode ver em Bangladesh”.
Durante esse período a classe média endividou-se. Sofreu com a decadência geral, com a debandada das empresas estrangeiras e do capital de investimentos que os anos de turbulência política infligiram a uma economia baseada em serviços.
Esses são, pois, os abusos de poder que a Assembléia Nacional restaurada deverá enfrentar. Mas permanece em aberto a dúvida sobre que tipo de instituição é essa, uma vez que enfatiza em grande medida a vontade individual. O xeque Hamad — todo mundo concorda — foi muito mais longe do que se poderia esperar. “Ele mostrou coragem”, reconhece al-Akri, “mas ainda deve enfrentar a construção de um Estado realmente democrático.” É provável que ele se sinta dividido, ao tentá-lo fazer, entre as antigas inclinações tribais e patriarcais e as novas, democráticas, que descobriu entre a continuidade da dependência a um aparato fiel e a necessidade de atingir o conjunto da sociedade. O conflito não é apenas um conflito interno do soberano, mas pode resultar no enfrentamento entre ele e o príncipe herdeiro, de um lado, e a “velha guarda”, liderada pelo primeiro-ministro, que dirige, na retaguarda, uma luta surda contra as reformas.
O confronto e a correlação de forças
A este abuso de poder, a família reinante somava a corrupção. O emirado havia sido, em outros tempos, uma das sociedades mais íntegras do Golfo
Pelo projeto original, a Carta nacional gozava de uma autoridade superior à da Constituição e os poderes legislativos não só eram atribuídos à Assembléia eleita, como ao novo Conselho Consultivo. Só depois de agitadas negociações que antecederam o plebiscito, e para conseguir o aval da oposição, é que o emir aceitou a supremacia da Constituição e o direito exclusivo da Assembléia legislar. Além disso, os dirigentes da oposição interpretaram como um mau presságio que o Comitê encarregado das emendas à Constituição fosse constituído por homens do primeiro-ministro. “É evidente”, explica um deles, “que ele busca nos derrotar com uma Assembléia com menos poder do que aquela de há vinte e cinco anos. Como podemos conseguir reformas sem nos livrarmos daqueles que são os responsáveis pelo que se está querendo reformar?”
Ainda que o xeque Hamad, em seu novo papel populista, perceba a necessidade desse expurgo, ele está, evidentemente, muito preocupado. Preservar a dignidade e a coesão da família real continua sendo uma preocupação pesada para este emir — que se tornará rei. Até o presente momento, ele limitou-se a uma guerra de desgaste, sutil, e à participação do príncipe herdeiro nas reuniões de gabinete, ao lado do primeiro-ministro.
Sem alternativas ao emir
Com pelo menos três mil membros, todos os membros da dinastia Khalifa recebem remunerações, por parte do Estado, do nascimento até a morte
Ainda que um confronto seja previsível, ele considera que a atual correlação de forças não lhe permite correr riscos. Um confronto poderia acabar em contra-golpe da velha guarda, que continua a controlar a base do poder institucional. Pois, a velha guarda tem medo. “Uma vez que forem abertos os arquivos sobre os direitos humanos e a corrupção”, diz um militante, “quem sabe até onde nos levarão? Aqui também temos os nossos Milosevic e Pinochet e alguns entre nós querem ser ressarcidos.”
No momento, contudo, são as forças da moderação que predominam nas fileiras da oposição. E elas serão reforçadas à medida em que virem sua confiança no emir justificada, se ele honrar sua parte no acordo. Em última análise, explica a oposição, não há uma solução alternativa. É certo que foi o emir que propôs as reformas, mas foi a Intifada do povo que o forçou a isso. Em caso de decepção, será qu