Uma advertência chamada Honduras
Contrariamente ao que alegou o usurpador Roberto Micheletti, a deposição de Manuel Zelaya e sua expulsão para a Costa Rica não tem nada a ver com alguma tentativa de organizar um referendo ilegal. O fato é que teve início uma nova fase da batalha pelo controle da América Latina e os países começam a se movimentar
Um exército de trabalhadores miseráveis de facão na mão; gigantescas plantações; vias férreas que correm em direção a três portos – Cortes, Tela, La Ceiba – de onde parte, para o exterior, a banana, riqueza número um de Honduras. Fevereiro de 1974: a companhia americana Standard Fruit demite 700 trabalhadores em represália à criação de um imposto de US$ 1 sobre a caixa de 18 kg do produto para exportação. Abril: a taxa é reduzida para US$ 0,5, depois para US$ 0,25. Dia 22 de abril de 1975: o chefe de Estado, general Oswaldo López Arellano, é destituído. Ele havia recebido US$ 1,25 milhão de outra multinacional, a United Brands – novo nome da tristemente célebre United Fruit Company1 –, para reduzir o imposto.
Outros tempos. Outros hábitos? Em dezembro de 2008, o presidente Manuel Zelaya aumentou o salário mínimo de US$ 180 para US$ 289. Organizou-se uma verdadeira operação de guerra contra a medida no conselho administrativo da firma Chiquita – ex-United Brands. A companhia produz cerca de 8 milhões de caixas de abacaxi e 22 milhões de caixas de banana por ano. A empresa mexeu seus pauzinhos em Washington, através do Covington and Burling – poderoso escritório jurídico que dá consultoria para multinacionais2 –, e se juntou ao Conselho Hondurenho da Empresa Privada (Cohep), também muito descontente.
Em outubro de 2006, conta Rafael Murillo Selva – conselheiro de Zelaya e atual embaixador de Honduras no Equador –, um primeiro confronto já havia ocorrido: o governo questionou publicamente o monopólio que exerciam as companhias Chevron, Exxon Mobil, Shell e a empresa local Dippsa sobre a venda e distribuição dos combustíveis, e lançou uma concorrência sobre o setor. “Habituadas a que ninguém interfira em seus privilégios, as transnacionais declararam que, ‘com essa licitação, as regras do jogo tinham sido modificadas’. Uma aliança formada por um setor do empresariado hondurenho, a Corte Suprema de Justiça e o embaixador dos Estados Unidos, Charles Ford, conseguiu em parte que essa iniciativa, que respeitava as regras do livre mercado, não atingisse seus objetivos”, afirma Selva. Razão pela qual Zelaya acabou se voltando para Caracas e integrando o acordo Petrocaribe, que permitiu que seu país recebesse petróleo venezuelano em condições financeiras vantajosas.
O que é insuportável para a banana ou o petróleo também o é para a saúde. Quando Tegucigalpa assinou com o governo cubano um acordo para o fornecimento de medicamentos genéricos a baixo custo, as empresas hondurenhas importadoras e as multinacionais do setor juntaram-se ao front da recusa. Sabendo, claro, que a mais importante das firmas locais, Laboratórios Finlay, “pertence à família Canahuati Larach, proprietária de dois grandes jornais de circulação nacional, El Heraldo e La Prensa”, esclarece Selva.
Ou seja: contrariamente ao que alegou o presidente usurpador, Roberto Micheletti, a deposição de Zelaya e sua expulsão manu militari para a Costa Rica, no dia 28 de junho, não tem nada a ver com alguma tentativa de organizar um referendo ilegal que lhe permitisse se reeleger em novembro. A consulta, sem caráter obrigatório, que ele pretendia organizar para a possível convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte,3 apoiava-se na Lei de Participação Cidadã de 27 de janeiro de 2006 que, em seu artigo 2, garante “o direito de os cidadãos proporem e decidirem sobre assuntos públicos”.
Em seguida, apesar da condenação unânime da “comunidade internacional”, da expulsão de Honduras da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da resistência popular interna que cresce a cada dia, a despeito da repressão, Zelaya não pôde voltar a Honduras. Suas duas tentativas – por via aérea, em Tegucigalpa, no dia 5 de julho, e pela fronteira da Nicarágua, no dia 25 do mesmo mês – fracassaram. Elas chegaram a provocar críticas do porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Robert Wood: “Essa iniciativa coloca em perigo os esforços de mediação dirigidos pelo [presidente costarriquenho Oscar] Arias”. A secretária de Estado Hillary Clinton limitou-se essencialmente a pedir ao presidente venezuelano Hugo Chávez que não interviesse nos assuntos de Honduras.
Obama or not Obama? Essa não é a questão. Pode-se muito bem ocupar a sala oval e não controlar totalmente as dependências, menos ainda a cocheira. Essa crise coloca em evidência não apenas as diferenças entre republicanos e democratas, mas entre os próprios democratas. Barack Obama tomou inicialmente uma posição clara em favor de Zelaya. Mas, em seguida, uma iniciativa de Hillary Clinton fez passar a gestão da crise para a discreta sala de Oscar Arias. Dos conchavos conduzidos por este sairá uma proposta que trará a vantagem de se alinhar à condenação geral do golpe de Estado, mas de modo que Zelaya só retorne à presidência em um governo de reconciliação nacional, com prerrogativas limitadas.
Nos encontros de San José (Costa Rica), realizados sob a égide de Arias, no dia 9 de julho, a delegação de Micheletti pôde contar com a assistência de dois conselheiros americanos: Bennet Ratcliff – a quem se atribui a redação das propostas do governo ilegítimo –, especialista em relações públicas, que trabalhou para o presidente Bill Clinton (1993-2001); e Lanny J. Davis, conselheiro de Clinton de 1996 a 1998, que foi seu porta-voz durante a investigação sobre o financiamento de sua campanha e o processo de impeachment ligado ao caso Monica Lewinsky e que, depois, esteve no coração da máquina de guerra eleitoral de Hillary Clinton para derrubar Obama durante as primárias.4
Enquanto os escritórios de relações públicas – Orrick, Herrington & Sutcliffe LLP, Vision Americas, Cormac Group – trabalham com afinco para popularizar, junto ao Congresso americano, o Conselho de Segurança Nacional e outras estruturas de decisão, as posições das “elites” hondurenhas operam nos bastidores, em conjunto com redes saídas das administrações Reagan, Bush pai e Bush filho, com Motto Reich e Roger Noriega.5 Já o Departamento de Estado declarou, no dia 6 de agosto, em entrevista coletiva: “Legalmente, não podemos dizer que se trata de um golpe de Estado militar. Isso ainda está sendo analisado”.Daí a ausência de sanções realmente duras contra Tegucigalpa.
No dia 5 de agosto, diante das câmeras do Canal 5 da televisão hondurenha, o comandante-em-chefe do Exército, general Miguel Angel García, sem mencionar o presidente Chávez, decl
arou: “Honduras e suas Forças Armadas interromperam o plano expansionista de um líder sul-americano para impor, até no coração dos Estados Unidos (sic!), um socialismo camuflado de democracia”6. Estaríamos assistindo a uma guerra preventiva?
Um dos grandes pecados de Zelaya foi aderir, em 26 de agosto de 2008, à Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), fazendo ressurgir o fantasma de um Chávez que estende seus tentáculos para impor um projeto totalitário no tradicional quintal dos Estados Unidos.7 Junta-se a esse cenário o retorno dos sandinistas à Nicarágua em novembro de 2006, e a eleição de Mauricio Funes, em El Salvador, em 2009, sob as cores da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) – ex-guerrilha dos anos 1980. A mensagem é clara: uma política que vire “demais para a esquerda” poderia revelar-se perigosa.
Incontestavelmente, começou uma nova fase da batalha para o controle da América Latina. Entre as nações que dão apoio ativo a Zelaya, os membros da Alba – particularmente Cuba, Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela – mostram-se os mais determinados. É preciso, portanto, fazê-los recuar por todos os flancos possíveis. E não apenas nesse ponto.
Em 1983, na época em que os contrarrevolucionários espalhavam a morte pela Nicarágua sandinista a partir de Honduras, os Estados Unidos abriram o Centro Regional de Estudos Militares (Crem), na cidade de Puerto Castilla. Lá os contras receberam armas e provisões, e soldados hondurenhos foram treinados junto com 2.400 homens das unidades de elite salvadorenhas. Depois, os Estados Unidos mantiveram uma base em Palmerola – a Soto Cano Air Force Base – onde operam 600 homens.8 Antes de ser deposto, Zelaya havia anunciado que esse aeroporto começaria em breve a receber voos comerciais, uma afronta aos americanos. Isso enquanto, no Equador, o presidente Rafael Correa não renovou a concessão do Posto de Operação Avançada – Forward Operating Location – de Manta, fechado em julho.
Macartismo midiático
O Pentágono redistribuiu as cartas. Um acordo em vias de ser finalizado concede aos Estados Unidos a utilização de sete bases militares na Colômbia: Laranda e Apiay (leste do país), Tolemaida e Palenquero (centro), Malambo e Cartagena (litoral caribenho), Málaga (Pacífico). Uma iniciativa ao menos curiosa, já que a notícia espalhada por Bogotá é a do enfraquecimento e desarticulação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Talvez Álvaro Uribe esteja mentindo sobre esse ponto. Talvez o objetivo americano-colombiano seja bem mais amplo – as duas hipóteses, aliás, completam-se perfeitamente.
Quem define o terrorista? O narcotraficante? Por enquanto, Washington e Bogotá revezam-se em um macartismo midiático que favorece a globalização das trocas e a explosão dos interesses cruzados entre grupos econômicos e empresas de comunicação.9 Um relatório do Congresso americano “ao qual teve acesso” o El País (16 de julho de 2009) descreve a Venezuela como um novo “narco-Estado”. Trecho escolhido: “As agências de segurança norte-americanas detectaram, em 2007, 178 voos provenientes de aeroportos da Venezuela, que se suspeita [é admirável a pertinência da prova], tenham transportado drogas…”.
Um novo escândalo surgiu em agosto, quando o governo colombiano denunciou que três lança-mísseis pertencentes ao exército venezuelano foram encontrados nas mãos das Farc. Chávez e o narcoterrorismo: é o mesmo combate! Na verdade, esse material pertence a um lote de AT4, vendidos em 1988 a Caracas pela firma sueca Saab Bofors Dynamics, cinco dos quais foram roubados por um grupo de guerrilha colombiano durante o ataque ao posto militar fronteiriço venezuelano de Carabobo, no rio Meta, em fevereiro de 1995, três anos antes da chegada de Chávez ao poder. Informação que Bogotá conhece perfeitamente.
Ao mesmo tempo, os “computadores mágicos” de Raúl Reyes10 continuam a destilar revelações: as Farc teriam financiado a campanha eleitoral do atual chefe de Estado equatoriano, Rafael Correa (El País, 2 de agosto), com US$ 400 mil. O The Wall Street Journal, por sua vez, teria “em seu poder” documentos que provam os laços entre as Farc e os guerrilheiros do hondurenho Zelaya.
Esse fluxo permanente de “informações” desacredita, a cada dia, os governos da Alba aos olhos da “opinião internacional”. Em caso de tentativa de golpe de Estado ou desestabilização que os afete (Venezuela, abril e dezembro de 2002; Bolívia, setembro de 2008), será tanto mais confortável colocar agressores e vítimas lado a lado. E até justificar a deposição dos presidentes que incomodam.
Enquanto isso e por trás dessa cortina de fumaça, os vizinhos da Colômbia – nem todos radicais – inquietam-se com a presença de bases estrangeiras destinadas a lutar “contra o narcotráfico, terrorismo e outros delitos de caráter transnacional [grifo nosso]”.
Na cúpula da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), no dia 10 de agosto, em Quito (Equador), Chávez, apoiado por Correa e pelo chefe de Estado boliviano, Evo Morales, afirmava que o reforço do aparelho militar americano na Colômbia “faz soprar ventos de guerra” na região.11 Já sensível à reativação da Quarta Frota americana, que cruza importantes jazidas de petróleo offshore recentemente descobertas pelo Brasil, o ministro Celso Amorim dá seu recado: “O que preocupa o Brasil é uma presença militar forte, cujo objetivo e capacidade parecem ir muito além do que possa ser a necessidade interna da Colômbia”12.
Tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como seus colegas, desejam debater essa questão com Obama. O porta-voz do Departamento de Estado, Philip Crowley, já demarcou claramente os limites de um eventual diálogo: o acordo é “estritamente bilateral” e não é da alçada da região.13
*Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.