Uma arapuca diplomática
Depois de décadas de isolamento, a África do Sul conseguiu voltar à cena internacional, mas ainda não deu provas de sua “africanidade”… Multiplicam-se crises a ela vinculadas, cuja “gestão diplomática” pode resultar num exercício perigosoAugusta Conchiglia
Convocado, em dezembro de 1999, a suceder o presidente tanzaniano Julius Nyerere como mediador nas negociações de paz do Burundi, iniciadas em Arusha, em 1998, [1] o presidente sul-africano Thabo Mbeki suscitou grandes esperanças, tanto no Burundi quanto na comunidade internacional. As negociações para à guerra civil neste país dos Grandes Lagos africanos estavam à beira da ruptura. Bujumbura e Dar es Salaam, as capitais dos dois países, haviam chegado ao limite do enfrentamento direto.
Desde 1993, os conflitos interétnicos no Burundi provocaram dezenas de milhares de vítimas. O país não conseguia encontrar um equilíbrio entre a minoria tutsi e a população hutu dentro do governo. Golpes de Estado e massacres sacudiram a antiga colônia belga. Longe de convergir, os partidos do Burundi não param de se fraccionar. Na formação de grupos de negociação, ou na manifestação de reivindicações políticas — modo de votação, integração dos rebeldes ao exército, instituições de transição, aplicação da justiça e da reconciliação… -, a “equação étnica” domina as mentes. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 10% da população do Burundi foi obrigada a fugir e vive em campos de refugiados.
Uma linguagem pouco diplomática
Se é indubitável que a popularidade do ex-presidente Nelson Mandela é imensa na África, onde ele representa a imagem de uma democratização bem sucedida, a África do Sul não conseguirá ser reconhecida como “líder natural” do continente senão ao preço de um esforço de abertura política e intelectual. Os responsáveis do Burundi advertiram Mandela contra a tentação de interpretar a guerra civil — que se seguiu ao assassinato, em 1993, do primeiro presidente democraticamente eleito, Melchior Ndadaye — à luz da luta sul-africana pela “majority rule” (um homem, um voto), mesmo se acompanhada de garantias para as minorias.
Logo de início Mandela usou de uma linguagem pouco diplomática para com os negociadores do Burundi. Depois de ter convidado todos a “se considerarem, em primeiro lugar, cidadãos do Burundi, e não como tutsis ou hutus”, tratou o governo de “minoria detentora do monopólio do poder político, econômico e militar”. E mais: qualificou os rebeldes hutus, não como “combatentes pela liberdade”, mas como “bárbaros e terroristas (…) que contaminam o povo com sua cólera”. Realista, o ex-detento do presídio de Robben Island convidou-os, no entanto, a participar das negociações, coisa à qual sempre se tinha oposto Julius Nyerere.
Fundamentalismos étnicos
Mas numerosas armadilhas se colocariam ainda no caminho do “facilitador”, entre elas a da escolha de critérios para a formação do futuro exército nacional e a natureza das instituições chamadas a gerir a transição — ou seja, a manutenção no poder, ou não, do general Pierre Buyoya. O relatório do International Crisis Group (ICG) sobre o Burundi [2] incentivou Mandela, que “reabilitou a visibilidade e o dinamismo do processo”, a debruçar-se também sobre a impunidade dos crimes de genocídio cometidos no país, pelos quais numerosos negociadores são passíveis de julgamento. E o ICG adverte contra a tentação de precipitar a conclusão de um acordo de paz cujas condições de aplicação não sejam de ordem prática.
O êxito da mediação do ex-presidente sul-africano depende de sua capacidade de superar os fundamentalismos étnicos que dominam o país. Um objetivo bastante difícil, na medida em que nenhum trabalho nesse sentido foi ainda feito na prática, e não existe atualmente qualquer movimento de massas interétnico no Burundi semelhante ao que foi o Congresso Nacional Africano (ANC), na Áfrfica do Sul.
Do sucesso de Mandela no Burundi depende em grande parte o futuro da diplomacia sul-africana, cujas iniciativas — a despeito de êxitos momentâneos, especialmente por ocasião da assinatura dos acordos de Lusaka (1964) com relação ao ex-Zaire — raramente levaram a resultados tangíveis. Além disso, a solução desse conflito terá efeitos positivos sobre o da República Democrática do Congo (RDC), já que ambos os países estão envolvidos, ainda que marginalmente: o fato é que os movimentos armados hutus batem-se ao lado das forças do presidente Laurent-Désiré Kabila, enquanto o exército do Burundi apóia aí as operações do Exército Patriótico de Ruanda.
Uma “saída honrosa” para Mobutu
Na verdade, a África do Sul nunca deixou de procurar uma saída negociada para o conflito congolês desde a desastrada iniciativa de Mandela visando encontrar uma “saída honrosa” para o antigo ditador Mobutu, às vésperas da entrada das tropas de Kabila em Kinshasa, em maio de 1997. Opondo-se, dentro da Comunidade Sul-Africana de Desenvolvimento (SADC), ao envio de tropas de Angola, Zimbábue e Namíbia para socorrer o presidente Kabila, o governo de Pretória deu em seguida a impressão de tomar partido por Uganda e Ruanda.
Angola também teria ficado receosa em relação à atitude sul-africana: a seus olhos, Pretória havia subestimado os imperativos de segurança que haviam motivado a intervenção militar em Matadi e Kitona — na região ocidental da República Democrática do Congo — duas posições-chave próximas do enclave estratégico angolano de Cabinda. Depois dos acontecimentos no Congo, as relações entre os dois países degradaram-se, com o governo de Luanda suspeitando que Pretória tivesse tolerado o tráfico em favor da Unita (União Nacional pela Independência Total de Angola) a partir do território sul-africano, em violação às resoluções internacionais. O apelo insistente dos governantes sul-africanos em favor de negociações com a Unita, sob o pretexto de que “nenhuma solução militar é possível”, consubstanciou a ruptura entre os dois países: a África do Sul “esquecia” na prática que o chefe rebelde Jonas Savimbi, oficialmente qualificado como “criminoso de guerra” pela SADC, em agosto de 1998, não é mais um interlocutor aceitável.
Locomotiva política e econômica
Para Lopo do Nascimento, antigo secretário-geral do Movimento Popular de Liberação de Angola (MPLA) e ex-primeiro-ministro angolano, “não há, no entanto, antagonismo fundamental entre os interesses políticos, econômicos e de segurança presentes e futuros dos dois países, que, pelo contrário, deveriam desempenhar o papel que foi desempenhado pela França e pela Alemanha na construção da União Européia, de motores da Comunidade da África Austral”. Ao inaugurar o Instituto do Renascimento Africano, em Pretória, em outubro de 1999, Mbeki lembrava, por outro lado, o papel crucial da região na libertação de seu país, “especialmente Angola e Moçambique, que pagaram um alto preço pela vitória contra o apartheid”.
As tensões com Angola ou com o Zimbábue, especialmente no marco da busca de um acordo de paz no Burundi, são emblemáticas das dificuldades que experimenta a África do Sul para manifestar, como a incentivam numerosos países ocidentais, sua “autoridade moral” na cena africana sem provocar a irritação de seus parceiros. Ora, Washington gostaria de ver Pretória afirmar-se como a locomotiva política e econômica do conjunto do continente negro. Mas a África do Sul resiste em assumir muito diretamente o papel de ponto de apoio do Ocidente, pois alimenta a ambição — de contornos ainda vagos — de encabeçar um movimento reivindicando para o continente o estatuto de verdadeiro interlocutor junto às potências mundiais.
Prevenções e esperanças
Thabo Mbeki deu início, portanto, a um duplo redirecionamento: no exterior, reatou, por exemplo, alianças estratégicas com a Nigéria; no interior, reaproximou-se da parcela africanista do ANC, que reprovava à direção no exílio uma “ocidentalização” exagerada. [3] Mas será necessário também que ela supere a desconfiança que inspira, em toda a África Austral, sua posição econômica hegemônica. As prevenções correpondem às esperanças, decepcionantes, de ver uma África do Sul liberada do apartheid investir maciçamente na região.
De fato, o grande excedente comercial sul-africano com os países da SADC [4] inscreve-se na continuidade de tendências anteriores, mesmo se as motivações de Pretória mudaram. Pois se o poder do ANC pratica um forte protecionismo — evidentemente prejudicial à economia de seus parceiros, em primeiro lugar do Zimbábue — é para ajudar à reconversão de seu aparelho produtivo nacional, pouco competitivo: a sua reestruturação já custou dezenas de milhares de empregos, tendo como conseqüência o agravamento das tensões sociais.
A integração regional tem que ser feita, mesmo que informalmente, ainda que de momento pareça que ela favorece sobretudo à África do Sul. E no entanto Pretória já sucumbiu à psicose da invasão de migrantes africanos que
Augusta Conchiglia é jornalista.