Uma cidade que transforma migrantes em sem-teto
A crise veio à tona de forma trágica com o incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida. As ocupações são onipresentes no centro de São Paulo, e talvez a da “torre de vidro” fosse a mais evidente. Com o desabamento, ficamos sabendo que o prédio estava ocupado havia quinze anos e que nele moravam 450 pessoas. Cerca de 25% de seus moradores eram migrantes internacionais
Tina e César1 nunca haviam ouvido falar em gente morando em casa abandonada dos outros. Eles chegaram a São Paulo após terem tido parentes assassinados pelas forças do presidente Joseph Kabila numa guerra que se arrasta no Congo há mais de três décadas e depois de viverem as consequências de uma crise econômica aguda em Angola, onde perderam um filho em decorrência de uma doença para a qual não conseguiram tratamento. Eles ouviram dizer que São Paulo era uma cidade rica, de oportunidades, e também que o visto para o Brasil era relativamente acessível. Juntando suas forças e parcas economias para recomeçar, partiram. Depararam, porém, com uma cidade extremamente desigual, em que, como enfatiza César, “o salário é muito, muito ruim”, e foram morar em uma ocupação do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Hoje, eles buscam se situar em meio à luta por moradia na cidade e questionam sua decisão migratória.
A ocupação foi o terceiro endereço do casal. Inicialmente, Tina ficou por alguns meses em um centro de acolhida para mulheres e crianças migrantes na Penha, enquanto César se hospedou em outro centro, no Belém. Após três meses, César conseguiu um emprego de auxiliar de cozinha e Tina de cabeleireira em um salão afro no centro da cidade. Somando seus pagamentos, passaram a alugar um quarto no Belém, porém, depois de dois meses, desistiram. “Só o salário pode comprar roupa, pode comprar comida, mas, se vai pagar a casa, acabou, é só isso”, resume César. Tina então ficou sabendo, por uma amiga do salão, de um prédio próximo a seu trabalho que fazia parte de um tal “movimento” e que cobrava apenas R$ 200 por mês de aluguel. Receosos, mas vendo na ocupação a única opção, o casal foi participar das reuniões de base do MSTC, liderado por Carmen Silva. “Um dos principais itens do estatuto do movimento é que a gente não exclui ninguém: nacionalidade, religião, partido político. Todos são bem-vindos”, esclarece a líder. Eles conseguiram um espaço para morar após algumas semanas sendo introduzidos ao movimento e suas regras. “Essa casa ajudou muito, a gente já não tinha para onde ir”, conta Tina.
Kendra, angolana, também foi morar em uma ocupação do centro da cidade, mas que não é organizada por um movimento de moradia, basta pagar para morar lá. “Se tiver um quarto, você fala com a recepção e eles já te encaminham.” Grávida e com uma filha de 2 anos, ela não conseguiu vaga em um centro de acolhida e passou seus primeiros meses no quarto de um amigo na ocupação em que vive atualmente. Assim que conseguiu um emprego como faxineira, passou a pagar R$ 400 por mês por seu próprio quarto no prédio. Diferentemente das ocupações do MSTC, nesse edifício a maioria dos moradores é migrante, sobretudo de Angola. Ela não sabe quem é responsável pela ocupação – “desde que mudamos, nunca vimos o chefe, só quem tá lá na recepção” – e se preocupa com rumores de um despejo iminente.
A trajetória dessas famílias se repete na de muitos migrantes internacionais e refugiados que chegam a São Paulo presumindo que na cidade encontrarão segurança, uma vida melhor, talvez um futuro para seus filhos. Eles têm enfrentado um desafio que tantos brasileiros trabalhadores de baixa renda conhecem bem: conseguir pagar os altos aluguéis cobrados até mesmo nas periferias da cidade e garantir o sustento com salários baixos ou com a renda incerta do trabalho informal. A princípio, assim como muitos brasileiros, esses migrantes receiam participar de algo que pensam ser ilegal e que poderia colocá-los em confronto com a polícia, porém temem ainda mais a rua e os albergues da prefeitura. A necessidade empurra brasileiros e migrantes para as ocupações, e os migrantes acabam entrando em uma batalha pelo direito à moradia numa cidade pela qual não sabem se vale a pena lutar.
Há cerca de 540 vagas voltadas para migrantes internacionais nos centros de acolhida da prefeitura, porém estas não dão conta da demanda e se limitam a seis meses de estadia em média. Para o padre Paolo Parise, coordenador da Missão Paz, “esse momento é o mais delicado, quando eles saem das casas de acolhida e não têm condições ainda para alugar uma casa, como muitos brasileiros, obedecendo a todos os parâmetros que são colocados: três aluguéis, o fiador, tudo isso”. Além desses entraves, muitos carregam um protocolo de solicitação de refúgio, um documento que lhes garante plenos direitos, mas que é frequentemente recusado por seu aspecto precário – uma folha A4 impressa com a foto do migrante colada. Por fim, há o preconceito de agentes imobiliários e proprietários que se recusam a alugar para “estrangeiros”, sobretudo negros e mulheres com crianças.
Migrantes internacionais e brasileiros convivem em ocupações no centro de São Paulo desde que essa estratégia de moradia surgiu, no fim da década de 1990. À época, já havia muitos prédios abandonados na região, pois, a partir dos anos 1970, as classes médias e as elites passaram a migrar para outros eixos de expansão da cidade, inicialmente rumo à Avenida Paulista e aos Jardins, deixando muitos imóveis ociosos para especulação imobiliária na região. A iniciativa de ocupar esses imóveis partiu de movimentos de moradia dos cortiços, que rechaçavam a exploração dos trabalhadores pobres nesses locais, onde pagavam altos preços por espaços pequenos e precários. Eles reivindicavam o direito da população de baixa renda de morar dignamente no centro e criticavam os poucos programas habitacionais que construíam (e ainda constroem) conjuntos de baixa qualidade na “periferia da periferia”, locais sem empregos, escolas, hospitais, creches etc. Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, explica que nesse momento “começou toda uma reflexão sobre o direito à cidade. Por que a população pobre, na hora de produzir a cidade, pode e, na hora de usufruir, não pode?”.
Migrantes latino-americanos costumavam ser o grupo mais representativo nessas ocupações, mas nos últimos quatro anos a presença de africanos (sobretudo angolanos e congoleses) e de haitianos vem crescendo. Esse aumento não se deve tanto a um incremento migratório à cidade em si – migrantes internacionais representam cerca de 5% da população de São Paulo –, mas à precarização das condições salariais e ao aumento do desemprego numa cidade em que os terrenos se valorizaram vertiginosamente na última década. Grande parte desses migrantes chegou a São Paulo nos últimos dois a quatro anos, atraídos pela imagem de um país seguro e emergente, sede da Copa e das Olimpíadas. Descobriram, porém, uma cidade extremamente desigual, que passa por uma grave crise habitacional.
Moradia, tragédia e resistência
Recentemente, a realidade dessa crise veio à tona de forma trágica com o incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, na madrugada do dia 1º de maio. As ocupações são onipresentes no centro da cidade, e talvez a da “torre de vidro” fosse a mais evidente, despontando na esquina com a suntuosidade deteriorada de um outrora marco da arquitetura modernista brasileira. Com o desabamento, ficamos sabendo que o prédio estava ocupado havia quinze anos e que nele moravam 450 pessoas. Cerca de 25% de seus moradores eram migrantes internacionais, a maioria de Angola.
Esse era apenas um dos cerca de 250 imóveis ocupados por famílias sem-teto na cidade de São Paulo, que se somam às inúmeras ocupações de terrenos ociosos nas periferias. Os moradores dessas ocupações fazem parte do total de 1,2 milhão de famílias vivendo em situação precária na cidade, estimativa da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab). Os movimentos de moradia do centro defendem que não é necessário construir habitações novas para todas essas pessoas, já que somente nos distritos centrais da cidade há mais de 30 mil imóveis que poderiam ser destinados à habitação social, segundo o Censo 2010. Com relação a migrantes internacionais e refugiados, a Lei Municipal n. 16.478, de 2016, estipula que a Sehab deve adaptar os programas habitacionais à realidade deles, flexibilizando as exigências documentais e promovendo programas de moradia transitória, por exemplo.
No entanto, a cidade de São Paulo carece de uma política pública de habitação social preventiva e ampla que dê conta do problema. Na falta dessa política, temos visto medidas que agravam o problema, como as recentes remoções forçadas de moradores na região conhecida como Cracolândia, na Luz. Enquanto isso, o governo de Michel Temer (MDB), com sua agenda de cortes, interrompeu o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), que foi o principal instrumento de política pública habitacional para as cidades brasileiras nos últimos anos. Mesmo após a tragédia recente, não há indicação de uma mudança de postura por parte do poder público. O governador Márcio França (PSB), por exemplo, em entrevista no dia e local do desabamento, concluiu que “o que temos que fazer é convencer as pessoas a não morar desse jeito”, como se ele não entendesse que as pessoas – migrantes, brasileiros – moram assim por falta de alternativa.
Diante dessa falência de políticas públicas, entram em cena os movimentos de moradia. “A falta do Estado, o movimento supre”, resume Carmen. Alguns movimentos, como o MSTC, recolhem uma contribuição mensal de seus membros para reformar os espaços e garantir condições seguras de habitabilidade, pagar pelos materiais de limpeza e manutenção, além da assessoria técnica e jurídica para o movimento. Outros movimentos não cobram contribuição, mas rateiam os custos comuns. De qualquer forma, nessas ocupações o critério central é a participação de todos nas atividades do movimento, seus mutirões, reuniões, assembleias, seus atos e manifestações pelo direito à moradia. E, ainda que essas ocupações sejam frequentemente chamadas de “ilegais”, “irregulares” e de “invasões”, elas estão respaldadas pela lei brasileira. A Constituição estipula, no artigo 5º, que toda “propriedade atenderá à sua função social” e, no artigo 6º, que todos têm direito à moradia. Ao ocuparem um imóvel abandonado há anos (sem função social), esses movimentos fazem cumprir essas determinações, além de assegurarem uma moradia provisória para famílias sem-teto.
Além das ocupações administradas por movimentos de moradia no centro de São Paulo, surgiram outras que não têm esse caráter político, mas são geridas por grupos que apenas cobram aluguel dos moradores – em média, de R$ 400 a 500. Por ainda ser um preço acessível, muitas famílias de baixa renda, inclusive de migrantes, como Kendra, vão morar nesse tipo de ocupação – e esse era o caso da torre de vidro. Os movimentos de moradia criticam os grupos que fazem essas ocupações por explorarem as famílias sem-teto e, como no caso do desabamento, difamarem as ocupações em geral. É o que lamenta Ivaneti Araújo, coordenadora do Movimento de Moradia na Luta por Justiça. “Tem momentos em que a gente é colocado tudo no mesmo saco. Mas essas pessoas, elas fazem a ocupação, negociam com o proprietário, cobram um valor X, saem e deixam as famílias.” Mesmo sendo uma situação de exploração, a lucratividade desse negócio só é possível pela falta de moradia na cidade.
Lutas em movimento
Carmen considera a moradia uma condição fundamental para que migrantes possam reconstruir a própria vida na cidade. Ela enfatiza que “A casa é que faz ele [o migrante] pertencer, independentemente da origem. Se ele não tiver pertencimento no local, na cidade, nunca vai se adaptar”. É uma constatação que faz com base na própria experiência como uma baiana que migrou para São Paulo nos anos 1990 fugindo de um marido abusivo e em busca de uma vida digna para si e seus então sete filhos. Depois de morar de favor com amigos e em albergues, Carmen conseguiu se reerguer na cidade quando foi morar em uma ocupação do Fórum dos Cortiços. “Na ocupação, além de eu me fortalecer social, política e financeiramente, pude dar uma guinada na minha vida. E aí eu comecei a participar efetivamente da vida de São Paulo; participar de várias conferências, dos conselhos, das reuniões políticas, dos planos, das operações, de tudo que a cidade tinha. Eu participava e aí comecei a ter outra visão, a visão de pertencimento.”
Mas, enquanto Carmen vê a experiência numa ocupação como construtora de cidadãos mobilizados por seus direitos, essa não é necessariamente a expectativa dos migrantes que vão morar nas ocupações, nem de muitos brasileiros. Um engajamento comprometido com a luta por moradia em São Paulo exige, no mínimo, que as famílias tenham uma “perspectiva de permanência”, como explica Evaniza Rodrigues, que trabalha com a União dos Movimentos de Moradia. “Alguns migrantes não têm ideia se vão ficar aqui ou não: ‘se a situação melhorar, eu quero voltar, mas, se a situação demorar para melhorar, eu vou pra outro lugar’.” As ocupações acabam sendo uma solução emergencial para muitos. Tina e César vão ter um filho brasileiro em breve e, ainda que não tenham planos de sair de São Paulo e sejam gratos ao movimento por acolhê-los, se pudessem, já teriam ido para um lugar “onde a vida é menos difícil”, confessa César, que anda irritado com o tratamento racista de colegas do trabalho.
Premidos pela busca de um teto, nem todos os migrantes de fato se comprometem com a luta por moradia e se engajam nas atividades políticas, sobretudo se não vislumbram um futuro na cidade. Alguns, mesmo considerando ficar em São Paulo, são céticos quanto à possibilidade de conseguir uma moradia por meio de um programa habitacional. “Se a gente não pode votar, por que vão dar uma casa pra gente?”, questiona Roseline, migrante haitiana que mora em outra ocupação. Para Carmen, outro fator que torna o engajamento dos migrantes mais complicado é “um problema de cultura, porque no país deles não aconteciam esses movimentos sociais”.
Kendra conta que boa parte dos vizinhos migrantes está planejando sair do país ou já saiu. É o que pretende também: “Viemos aqui para o Brasil procurar uma vida melhor, mas nós não estamos a achar. Temos que sair!”. Seu marido veio de Angola há um ano, e eles querem migrar com as duas filhas para a Europa, onde têm parentes. “Não posso ficar a viver com as crianças neste prédio da ocupação, não. Aí vem uma cobrança e amanhã vão me tirar da ocupação. Vou tentar alugar uma casa fora, e o salário que eu ganho, R$ 800 e pouco, não dá.” Diferentemente da maioria dos brasileiros sem-teto, esses migrantes têm em seu imaginário a possibilidade de migrar para um país do Norte global, pois possuem redes de contatos no exterior e a experiência de cruzar fronteiras, e não se sentem pertencentes a São Paulo ou ao Brasil. Chegaram à cidade projetando uma vida próspera, mas encontraram desigualdade, falta de moradia, racismo. Diante da inação do poder público, recorrem às ocupações por necessidade. Alguns, como Tina e César, se resignam a essa realidade por enquanto; outros, como a família de Kendra, juntam o conhecimento e os rendimentos de uma família transnacional para tentar escapar das privações de São Paulo. A cidade fica, e a luta dos trabalhadores de baixa renda pela moradia digna também.
*Diana Thomaz é doutoranda em Governança Global na Wilfrid Laurier University, no Canadá. Esta pesquisa foi feita com o apoio de uma bolsa do International Development Research Centre (IDRC), de Ottawa, Canadá. As visões aqui expressas não representam necessariamente aquelas do IDRC ou de seu quadro de diretores.