Uma Constituição para nada
Quando a grande maioria dos cidadãos compreender bem a sobredeterminação das políticas nacionais pelas decisões tomadas no âmbito da União, com seu viés ortodoxamente liberal e tutelado pelos EUA, a consciência européia terá passado por uma fronteira crucialBernard Cassen
Poderíamos acreditar, nestes últimos meses, na existência de duas Europas. De um lado, aquela geralmente saudada pelos vivas midiáticos, cujos contornos a Convenção acaba de desenhar em seu projeto para uma “Constituição Européia” proposto por seu presidente, Valéry Giscard d?Estaing, ao Conselho Europeu de Tessalônica nos dias 19 e 20 de junho. Do outro lado, aquela à qual bom número de manifestantes que saíam às ruas das grandes cidades francesas atribuía a paternidade da “reforma” (leia-se contra-reforma) da previdência e da educação do país – enquanto se espera a da assistência social -, assim como as privatizações programadas das empresas públicas.
A verdade é que se trata precisamente da mesma Europa. E a informação um tanto abundante sobre os procedimentos de decisões e a futura partilha dos poderes entre Estados e União e, no interior desta, entre Conselho, Comissão e Parlamento Europeu, responde a questões que apaixonam todos os profissionais da questão européia, mas que a maioria dos cidadãos não se colocam. Por outro lado, as questões que eles de fato se colocam – conteúdo das políticas comunitárias e, depois da guerra no Iraque, a independência da Europa – foram relegadas ao segundo plano no decurso dos 16 meses de trabalho da Convenção1.
É significativo neste aspecto que, das quatro questões previstas, apenas duas estejam definitivamente ajustadas no documento da Convenção aprovado em Tessalônica: a primeira, que discorre sobre os objetivos, as competências e as instituições da União; e a segunda, integrando a Declaração dos Direitos Fundamentais, que havia sido proclamada no Conselho Europeu de Nice em dezembro de 20022. A terceira, tratando das políticas, e a quarta, intitulada “Disposições finais”, continuarão a ser discutidas pela Convenção, cujo mandato foi prolongado até 15 de julho. Apostemos que, com o período de férias ajudando, elas se beneficiarão de uma menor publicidade.
Moldagem liberal
A procura por indícios, no dispositivo que acaba de ser descrito, de qualquer “reaproximação” com os cidadãos ou uma estruturação melhorada do espaço político europeu, são em vão
Esta maneira de colocar o carro diante dos bois, de decidir o “como” e o “através de quem”, antes de ter resolvido “o que” não se dá ao acaso. Significa implicitamente que esta questão já está, no que há de mais essencial, resolvida e que a lógica profundamente liberal dos tratados anteriores (Ato Único, Maastricht, Amsterdã e Nice) só poderá, no melhor dos casos, sofrer alterações marginais. Ora, é justamente esta lógica o que caracteriza o problema, quando se sabe que 60% das decisões legislativas nacionais não são de fato mais que direito comunitário derivado.
Em outras palavras, qualquer que seja a maioria política que chegue ao poder em determinado país, sua única opção será se moldar a uma ordem liberal já sacramentada pelos tratados.
Para julgar o balanço da Convenção, antes de se perguntar sobre as questões que preocupam, é preciso referir-se ao principal mandato que lhe havia sido dado: “Como reaproximar os cidadãos, em particular os jovens, do projeto europeu e das instituições européias? Como estruturar a vida política e o espaço político numa União ampliada?”.
O exercício era quase uma missão impossível e não admira que tenha sido amplamente liquidado por um fracasso que não poderá ser revertido pela conferência intergovernamental, encarregada de elaborar o texto definitivo do tratado baseando-se nos trabalhos da Convenção.
Se as conclusões da Convenção de fato só comprometem a ela mesma, tudo leva a crer, no entanto, que os pontos chave – a atribuição da pessoa jurídica à União Européia; a criação de um posto de presidente do Conselho eleito por dois anos e meio (o que evitará as presidências semestrais por turnos) e de um posto de ministro de Relações Exteriores da União; a redução para quinze, a partir de 2009, do número de comissários; o novo modo de cálculo da maioria qualificada (maioria simples do número de Estados, de 13 dos 25, representando ao mesmo tempo 60% dos cerca de 450 milhões de habitantes da União); a expansão do procedimento de co-decisão Conselho-Parlamento de 37 para 80 domínios – não serão perturbados pelos diplomatas dos 25 países que farão parte da União em 2004.
Longe do cidadão
“Estamos numa economia mundialmente aberta, não há nem regulamentação nem limite para a violência da concorrência”, define Michel Rocard, do Parlamento Europeu
A procura por indícios, no dispositivo que acaba de ser sumariamente descrito, de qualquer “reaproximação” com os cidadãos ou uma estruturação melhorada do espaço político europeu, são em vão. Apenas duas medidas vão neste sentido: o direito (artigo 1-46), reconhecido por um milhão de cidadãos de um “número significativo” de países, de solicitar um “ato jurídico” da União, o que estimulará as campanhas de opinião transfronteiriças, animadas por redes européias, por exemplo sobre a taxa Tobin e as outras taxas globais; por outro lado (anexo II da primeira parte), a possibilidade de os Parlamentos nacionais (se isto for requisitado por um terço dos votos que lhe são atribuídos no quadro de uma ponderação demográfica global) compelirem a Comissão a reexaminar uma proposição (da qual ela conserva o monopólio) que ela própria tivesse feito.
Esta cláusula permitirá ocasionalmente aos parlamentares ter um papel mais ativo que o de membros de uma câmara de registro, que lhe é concedido pelos procedimentos atuais: simples consulta sobre a decisão do Conselho (o a co-decisão Conselho-Parlamento) e obrigação de transcrever esta decisão em direito nacional. E isso, lembremos a ele, para 60% das “decisões” que eles devem assumir diante de seus eleitores. Nota-se que o balanço democrático é ridiculamente magro.
A concorrência manda
A Convenção havia sido encarregada de fundir num único texto o conteúdo dos tratados anteriores, cuja verdadeira dimensão para os cidadãos franceses e europeus foi bem definida por um exímio conhecedor: “Nós estamos numa economia mundialmente aberta, não há nem regulamentação nem limite para a violência da concorrência”. Que extremista se exprime assim, sugerindo que a União não serve para nada e que seus objetivos anunciados, constantes do artigo primeiro do projeto do novo tratado – “o pleno emprego e o progresso social, um nível elevado de proteção e melhoramento da qualidade do ambiente” – estão longe de começarem a se concretizar?
Rocard, ex-Primeiro Ministro socialista e europeísta eminente, confirma que não ter qualquer ilusão sobre a capacidade da União em regular ou limitar a “violência da concorrência”
Trata-se de Michel Rocard, presidente da comissão de cultura do Parlamento Europeu3. Acorrendo, como Jacques Delors, em auxílio do projeto Raffarin-Fillon-Chérèque sobre as aposentadorias e acreditando, sem dúvida, estar fazendo o bem, o ex-Primeiro Ministro socialista nos confirma que não tem qualquer ilusão sobre a capacidade da União (não citada nem uma só vez em seu artigo) em regular ou limitar a “violência da concorrência”. Vindo de um europeísta tão eminente, a confissão é relevante e corresponde, infelizmente, à realidade.
A Convenção mantém, com efeito, a concorrência no topo da hierarquia das normas da construção européia, depois de duas décadas durante as quais esta arma foi utilizada pela Comissão para suas ofensivas contra as empresas e os serviços públicos, em favor das “reformas estruturais”, como a da previdência. A tentativa de alguns convencionais de dar o estatuto de objetivos da União, escapando às regras da concorrência, a estes serviços (designados, no jargão de Bruxelas, como “serviços de interesse econômico geral”) fracassou totalmente. Mesmo os serviços de interesse geral não comerciais, como a educação, a saúde, a assistência social, a moradia, não são objeto de qualquer reconhecimento formal.
Questões sensíveis
Mas, dirão alguns, o futuro tratado não incorpora a Declaração dos Direitos Fundamentais da
União, que havia sido apenas anexada ao tratado de Nice? Falemos desta Declaração… Que avanço, neste período de demissões em massa e crescimento do desemprego, do “direito de trabalhar” ou da “liberdade de procurar um emprego em qualquer Estado membro”… Mesmo o direito de greve que, não sem dificuldade, havia sido inscrito em 2000 na Declaração, vai se encontrar reduzido à porção adequada: o primeiro ministro trabalhista britânico Anthony Blair exigiu e obteve da Convenção que ele não possa ser invocado diante dos tribunais nacionais! Só poderão então ser utilizadas, para a garantia de seu exercício, as jurisdições européias e isso apenas pelos, ou para os, empregados da União.
A futura Constituição, permite, ao menos, a afirmação de uma Europa autônoma em relação aos EUA? Com a ampliação para 25 países, o “não” é evidente
Outra tentativa de voltar atrás, num sentido mais liberal, sobre as disposições do tratados precedentes é a política comercial comum da União. Já que a regra da unanimidade foi mantida para as decisões de matéria fiscal e para as questões sociais sensíveis, o que permitirá a Londres e Dublin, entre outras, continuar a praticar o dumping nestes dois domínios, ela voltou a ser colocada em questão para o comércio dos serviços culturais. Em Nice, a saúde, a educação, a cultura e os serviços sociais haviam sido excluídos da generalização da passagem à regra da maioria qualificada. A Comissão nunca aceitou as derrogações que a impedem de ter as mãos livres.
Para voltar a opinião pública contra o governo francês (o único a defender esta “exceção cultural”), o comissário europeu Pascal Lamy, “xodó” das mídias, multiplica as declarações, não se preocupando com o respeito aos fatos. Ele pretende, pois, que exista potencialmente uma maioria qualificada entre os 25 países para recusar a abertura total dos serviços culturais e audiovisuais, na qual figura especialmente a Espanha4. Ora, e ele não o ignora, foi precisamente a Espanha que vetou a inclusão da “exceção cultural” na futura Constituição5. Esta questão sensível faz parte daquelas a serem resolvidas antes de 15 de julho.
Alinhamento com os EUA
Se não há qualquer avanço social a se esperar da futura Constituição, sempre marcada pela mais rigorosa ortodoxia liberal, ela permite, ao menos, a afirmação de uma Europa autônoma em relação aos Estados Unidos? Atendo-se aos textos, a resposta seria mais provavelmente “sim”. Na realidade da ampliação para 25 países, é evidentemente o “não”6. O projeto de Constituição prevê certamente um posto de ministro de relações estrangeiras que se expressará em nome da União. Mas com que mandato? A partir do momento em que a unanimidade for requerida para defini-lo, a política externa comum só poderá agir sobre um número limitado de domínios. Esta regra da unanimidade impede ao menos o alinhamento puro e simples a Washington, inclinação natural e às vezes vontade proclamada da maioria dos 25.
Pode-se também, positivamente, assinalar a possibilidade (artigo I-43) de alocar “cooperações reforçadas”, especialmente em matéria de defesa (o que não estava previsto no tratado de Nice). Isto poderia permitir, teoricamente, na linha do encontro de 29 de abril último entre os dirigentes alemães, belgas, franceses e luxemburgueses, a criação de um embrião de meios de defesa europeus não subordinados à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Mas as travas estão colocadas: são os 25 em seu conjunto que concedem a autorização para proceder a uma cooperação reforçada, e ela deve incorporar pelo menos um terço deles, ou seja, nove membros. Ora, não se vê no momento nove membros da União Européia desejosos de se libertar da tutela de Washington.
Como a Europa social é aquela desejada por Margaret Thatcher e seu herdeiro legítimo Anthony Blair, a Europa da segurança será também a de Blair, com Bush de comparsa
Bem ao contrário, as teses norte-americanas que serviram de pretexto para a guerra contra o Iraque ganham terreno: o atual alto representante para a política externa e de segurança comum (PESC), Javier Solana, ex-secretário geral da Otan, acaba de elaborar uma “doutrina de segurança” para a União que toma para si as prioridades da Casa Branca – luta contra o terrorismo e contra as armas de destruição em massa – e sua doutrina, a “ação preventiva”. De imediato, esta “ação” está prevista num quadro de negociação multilateral, as Nações Unidas permanecendo como “o âmbito fundamental das relações internacionais”. Mas, relata o Financial Times, certos diplomatas pensam que a versão definitiva deste texto “será feita numa linguagem muito mais vigorosa, podendo mencionar a necessidade de uma mudança de regime e mesmo de ataques preventivos7“. Se é este o caso, como a Europa social é aquela desejada por Margaret Thatcher e seu herdeiro legítimo Anthony Blair, a Europa da segurança será também a de Blair, mas desta vez como comparsa de George W. Bush. Pode-se fazer melhor em matéria de Europa européia…
O projeto de Constituição e os negócios europeus em geral não vão perder a atualidade em 2003 e 2004: conferência intergovernamental até fim de 2003, ampliação para 25 países em 1º de maio de 2004, assinatura do tratado entre esta data e as eleições européias de junho, ratificação sem dúvida no outono de 2004, por plebiscito em vários países. O dia em que a grande maioria dos cidadãos compreender bem a sobredeterminação das políticas nacionais pelas decisões tomadas no âmbito da União, a consciência européia terá passado por uma fronteira crucial. Mas, neste momento, existe o risco, para os liberais, de que a opinião pública não aceite mais o hold-up com luvas de veludo que eles realizaram numa idéia que merecia algo melhor.
(Trad.: Fabio de Castro)
1 – Ler “Uma Convenção Européia convencional”, Le Monde diplomatique, julho de
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.