Uma convenção convencional
As conclusões do trabalho da Convenção não terão valor coercitivo. Servirão simplesmente de base de trabalho para os ministros da União Européia que, reunidos em conferência, disporão de um ano para elaborar um esboço de tratadoBernard Cassen
Falar sobre a Europa é um eterno começar de novo. Desde que a opinião pública do Velho Continente começou a se dar conta, de uma forma muito fragmentária – e na maioria das vezes sob o efeito de uma propaganda “europeísta” simplificadora, é bem verdade – do que está em jogo na construção comunitária, isto é e de modo geral, depois do Tratado de Maastricht, em 1992, os termos do debate não mudaram: qual projeto europeu? Quais instituições atendem a seus objetivos?
À primeira questão, tanto o Tratado de Amsterdã (1997) como o de Nice (2000) responderam apenas através de fórmulas ocas, remetendo, por ausência de alternativas, ao ultraliberalismo, a própria essência do Tratado de Maastricht. A segunda questão, em contrapartida, foi objeto de um sem número de respostas – dado que cada responsável por um executivo nacional, sem falar da Comissão Européia, tem uma idéia sobre o assunto – mas com a seguinte característica comum: não ter ligação com a primeira.
Um projeto em aberto
Em outros termos, o mecanismo institucional apaixona os dirigentes governamentais, mas, naturalmente, gera impasse quanto ao conteúdo das políticas a serem conduzidas, estas sendo consideradas como não devendo mais constituir objeto de debates, a não ser quanto ao modo de fortalecê-las. É o que mostraram os dois Conselhos Europeus – o de Barcelona1 e o de Sevilha – realizados sob a presidência espanhola, que acaba de chegar ao término: primado da concorrência e da lógica financeira, livre-cambismo, “liberalização”, privatizações, diminuição do serviço público, flexibilização do trabalho etc. Eis aí uma perfeita ilustração do primeiro mandamento do dogma liberal: a desconexão entre a esfera da economia e das finanças e a esfera do político e da intervenção democrática.
Essa dicotomia foi fortalecida pela necessidade de adaptar as instituições da União Européia a sua ampliação de 15 para 27 países2 nos próximos anos. Concebidas, no âmbito do Tratado de Roma (1957), para seis países, e não tendo sido modificadas de forma substancial em quase meio século, elas já ultrapassaram seus limites e levariam à paralisia total das decisões se não fossem profundamente revistas para se enfrentar a adesão de novos membros. Como tal reforma só foi iniciada de modo muito parcial nos tratados de Amsterdã e de Nice, unanimemente considerados um fracasso nesse domínio, o projeto está inteiramente aberto.
A proposta da Convenção
O mecanismo institucional apaixona os dirigentes governamentais, mas, naturalmente, gera impasse quanto ao conteúdo das políticas a serem conduzidas
Em compensação, o que não se discute é a natureza das políticas que deverão conduzir os doze países candidatos: eles são intimados – é pegar ou largar – a integrar a “conquista comunitária” em sua legislação nacional. Tal expressão designa as quase… 80 mil páginas de tratados, decisões legislativas comunitárias de todo tipo, jurisprudência do Tribunal de Justiça de Luxemburgo etc.
Essa adequação às normas liberais tem uma envergadura e um impacto social negativo que equivalem, pelo menos, aos dos planos de ajuste estrutural impostos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) a cerca de noventa países do hemisfério Sul. Semelhante orientação foi considerada, de saída, como não negociável, apesar da heterogeneidade das situações econômicas e sociais dos países concernidos. Para eles, assim como para os quinze países da União Européia, só se coloca, oficialmente, a questão institucional.
Desse ponto de vista, a experiência das conferências intergovernamentais encarregadas da elaboração de um tratado mostrou, também ela, seus limites. Donde a idéia, aprovada pelo Conselho Europeu de Bruxelas-Laeken, em dezembro de 2001 – de inovar na matéria retomando um procedimento já utilizado para a redação da Declaração dos Direitos Fundamentais da União, proclamada no Conselho Europeu de Nice, em dezembro de 2000: o de uma Convenção.
Conclusões sem valor coercitivo
Essa instância, que começou seus trabalhos no dia 28 de fevereiro de 2002, é presidida por Valéry Giscard d?Estaing e compreende cento e cinco pessoas: quinze representantes dos chefes de Estado e de governo dos atuais membros da União, trinta representantes dos parlamentos nacionais (dois por Estado), dezesseis membros do Parlamento Europeu, dois membros da Comissão e trinta e nove representantes dos países candidatos, dentre os quais a Turquia (um representante do governo e dois dos parlamentos nacionais). Entretanto, esses 39 membros não têm direito a voto.
Concebidas em 1957, essas instituições já ultrapassaram seus limites e podem levar a uma paralisia total das decisões, se não forem amplamente revistas
A instalação desse areópago um tanto quanto heteróclito não foi uma conquista fácil, pois os governos pouco querem partilhar uma de suas prerrogativas régias – a de fazer os tratados. As conclusões dos trabalhos da Convenção, que deverá entregar a cópia deles em março de 2003, não terão valor coercitivo. Serão tomadas, simplesmente, como base de trabalho pelos ministros da União Européia, reunidos em conferência intergovernamental, os quais disporão de um ano para elaborar um esboço de tratado. Isto posto, se o texto da Convenção obtivesse um assentimento muito amplo nesse forum, seria dotado de uma legitimidade que tornaria difícil seu arquivamento sem lhe dar continuidade.
As grandes questões da Convenção
Donde os esforços convergentes dos interessados institucionais (governos, Comissão, Parlamento Europeu) para influir no conteúdo do texto. Donde, igualmente, a vontade do órgão supremo da Convenção (12 de seus membros) e de seu próprio presidente (que se vê, 21 anos depois de sua derrota na eleição presidencial de 1981, chamado a desempenhar, enfim, um papel histórico) de terem todos os trunfos de seu lado.
Desse ponto de vista, os “convencionais” (que não desgostam da comparação entre sua assembléia e a Convenção de Filadélfia, onde foi redigida, em 1787, a Constituição dos Estados Unidos) acreditam que dispõem de uma carta decisiva: a relação com a “sociedade civil”. Um conceito inteiramente vago, mas furiosamente “moderno”, como o de “governança”, como demonstra sua utilização reiterativa e interessada de uns anos para cá3. Trata-se, no caso preciso e quanto ao essencial, dos sindicatos e das associações.
A famosa “sociedade civil” está, então, convidada a dar sua opinião sobre as seis grandes questões submetidas à convenção: Que Europa queremos? Quem faz o quê na Europa? Como simplificar o funcionamento da União? Como conciliar eficácia e legitimidade democrática das instituições? Que voz para a Europa no mundo? Como chegar a uma Constituição européia?
Um debate pouco animador
Não se discute a natureza das políticas que deverão adotar os 12 países-candidatos: são intimados a integrar a “conquista” à sua legislação nacional
O leque parece aberto, mas somente a primeira e, em último caso, a penúltima dessas perguntas remetem a considerações distintas da abordagem institucional. Ora, não só o campo do debate é cuidadosamente balizado para evitar o ponto central que provoca irritação – o que se poderia chamar de a “questão liberal” e que comanda todas as outras -, como também os procedimentos e o calendário definidos permitem pensar que a “consulta” tem, essencialmente, a função de se mostrar.
Igualmente, o que aconteceu em Bruxelas, entre 10 e 25 de junho último, quando a Comissão ouviu a “sociedade civil” européia, não é nada animador: presença maciça de associações subvencionadas pela Comissão, locais muito pequenos para receber todos os interessados, tempo de palavra reduzido a sua mais simples expressão, bloqueio dos debates. Os “grupos de contato” preparatórios das sessões plenárias de 24 e 25 de junho teriam podido constituir espaços privilegiados de intercâmbio. Não ocorreu nada disso.
O grupo de contato “Cultura”, por exemplo, reunido no dia 12 de junho, na presença de mais ou menos cinqüenta organizações e de quatro membros da Convenção, teve que despachar, num único dia, assuntos de grande importância, como a arte e o patrimônio, a cooperação cultural, as igrejas e as religiões, a educação e as línguas minoritárias, e havia recebido a solicitação de limitar suas reflexões aos aspetos institucionais. Designou-se, em seguida, um relator para cada tema a fim de que o tempo de uso da palavra fosse “sintético”… de cinco minutos na sessão plenária.
O recurso ao plebiscito
A adequação às normas liberais tem a envergadura e o impacto social negativo dos planos de ajuste estrutural impostos pelo Banco Mundial e pelo FMI
O encontro do grupo de contato “Regiões e coletividades locais”, no dia 10 de junho, também proporcionou duras críticas por parte das associações sociais, ambientais, culturais regionais e locais. Na realidade, mal se fizeram ouvir, pois, essencialmente, a palavra era dada às organizações preferenciais, que, no entanto, dispõem do Comitê das regiões para falar.
Se queriam dar a impressão de consultas álibi, não poderiam ter feito diferente. Aliás, Jean-Luc Dehaene, ex-primeiro-ministro belga e vice-presidente da Convenção, declarara no dia 11 de março de 2002, diante do Comitê Econômico e Social Europeu, que a definição das políticas não fazia parte do exercício ao qual era preciso se dedicar… Ora, não é isso que interessava essencialmente aos cidadãos, os quais gostariam de saber, por exemplo, se o futuro tratado protegerá ou não os serviços públicos, se a concorrência continuará a ser o valor supremo da União etc.
Pensar que as questões institucionais vão mobilizar o eleitorado é muita ingenuidade. É por isso que o recurso ao plebiscito para a ratificação do tratado que sairá – mais ou menos – da Convenção corre o risco de ser exceção na Europa. Na França, Chirac e Jospin tinham tido a elementar prudência política de não fazer uso dele, contentando-se com uma ratificação parlamentar para os tratados de Amsterdã e de Nice. Não que não seja importante o debate sobre as instituições e seu caráter democrático ou não. Mas as arquiteturas jurídicas são feitas para apoiar um projeto, não para o substituir, exceto quando se trata de afiançar aquele que está sendo realizado atualmente.
A “sociedade civil” da Convenção
O campo do debate é cuidadosamente balizado para evitar o ponto que provoca irritação – o da “questão liberal”, que comanda todas as outras
Nesse contexto, o debate desencadeia uma grande irritação. Opõe, de um lado, a Comissão Européia – que tem a ambição de se tornar o governo da Europa, inclusive em matéria de política externa e de defesa – e, de outro lado, os governos de três dos grandes países (Espanha, França e Grã-Bretanha) – que pretendem, ao contrário, fortalecer o Conselho Europeu. Para isso, têm em vista substituir a presidência semestral rotativa da União por uma presidência de dois anos e meio (da qual Aznar e Blair se imaginariam, evidentemente, titulares), o que reduziria muito a influência do presidente da Comissão. Outras propostas anexas, que são a alegria dos “profissionais” da Europa, aparecem de toda parte.
A tendência natural da maioria dos “convencionais” e do Parlamento Europeu será apoiar as teses da Comissão. Mas os Estados é que darão a palavra final. Para construir uma relação de forças favorável, a Convenção poderia tornar-se o porta-voz não só de sua “sociedade civil” feita sob medida, mas também de todos os que não são representados por ninguém e que foram vistos, em massa, nas ruas de Gênova, Barcelona e Sevilha. Sem falar daqueles que, desencantados com a ação pública, não votam mais. Aparentemente, o caminho que ela toma não é esse…
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Ler, de Bernard Cassen, « O confisco da soberania popular », Diplô-Brasil, abril de 2002
2 –
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.