Uma corte suprema demais
A substituição de dois juízes, em 2005, tende a tornar ainda mais conservadora a instância máxima do Judiciário nos EUA. Um exame de sua evolução ajuda a compreender como a política e a sociedade norte-americanas caminharam para a direita, nas últimas décadasDaniel Lazare
A intervalos regulares, o mesmo ritual ocupa a capital federal. Uma vaga se abre na Corte Suprema, seja por demissão ou por morte de um dos seus nove membros vitalícios. O presidente dos Estados Unidos designa seu candidato. A comissão de assuntos judiciários do Senado, que deve avaliar as qualificações dos postulantes, organiza as audiências públicas no decorrer das quais, quando as câmeras se voltam para eles, os senadores se lançam em discursos garbosos antes de fazer uma ou duas perguntas ao candidato1. Este se recusa, em geral, a responder às questões controversas, argumentando que toda precisão de sua parte correria o risco de comprometer sua liberdade de julgamento posterior. Os membros da comissão, não obstante, votam em seu favor. O Senado os segue. Os Estados Unidos contam, então, com um novo juiz que, durante decênios, formulará sentenças determinantes para a sociedade norte-americana2.
Salvo uma ou duas exceções, é desta forma que as coisas se desenrolaram desde 19863, ano em que Antonin Scalia se mostrou de tal forma evasivo durante sua audição que se recusou até mesmo a dizer aos senadores se sustentava ou não a decisão que fundou a autonomia da Corte, ao estabelecer em 1803, seu poder de declarar um ato do Congresso em desconformidade com a Constituição. Em 2005, o ritual não mudou, mas os desafios são ainda mais graves que o habitual. Dois cargos – não um – vão mudar de titular. O de William H. Rehnquist, ex-presidente, bem caracterizado como de direita, e morto recentemente, após 33 anos na Corte Suprema. E também o de Sandra Day O’Connor, mais ao centro e primeira mulher a ter assento no órgão. Se vier a ser substituída por alguém mais conservador que ela, o equilíbrio da Corte — e do país — será afetado de maneira duradoura. O sucessor de William Rehnquist já é conhecido. John J. Roberts Jr., que não corre absolutamente o risco de ser mais conservador que a pessoa que substitui, foi confirmado em fim de setembro pelo Senado por ampla maioria (78 votos contra 22). Todos os republicanos votaram a seu favor, em companhia da metade dos democratas.
O silêncio do Partido Democrata
A Corte reunia, segundo Roosevelt, “novos anciãos”, que procuravam conter a democracia, frear as reformas sociais e de estar atentos para que o país permanecesse sob tutela dos ricos
A disposição obsequiosa dos adversários presumidos de George W. Bush deve-se a diversos motivos. O mais evidente é que os democratas seguem marcados por sua derrota de 2004. Ela atingiu a confiança que tinham em si próprios. No entanto, a principal razão de sua confusão deve-se à fratura ideológica nos Estados Unidos. Fala-se, com freqüência, que a posição do presidente Bush foi enfraquecida pela presença das operações militares no Iraque e pela incúria da Casa Branca no momento do furacão Katrina4. Isto é só parcialmente correto. O presidente continua a se aproveitar da dinâmica conservadora que redesenha a sociedade. Há vinte anos os democratas não param de anunciar o declínio da direita. Mas são eles que continuam a se enfraquecer.
A Corte Suprema não é imune a esta evolução. Mesmo que os progressistas pareçam ter esquecido, foi uma instituição que eles detestaram. Ela reunia, segundo palavras de Franklin Roosevelt, “novos anciãos” tendo como destino conter a democracia, frear as reformas sociais e de estar atenta para que o país permaneça sob a tutela dos ricos.
Em 1859, a Corte abriu caminho para o mais sangrento confronto de toda a história dos Estados Unidos – a guerra civil -, ao decidir que os estados do Norte não podem proibir a escravidão no conjunto do país. Ela atacou o sindicalismo nos anos 1890 e tentou desmontar, quatro décadas depois, as leis progressistas do New Deal. Em 1937, Franklin D. Roosevelt respondeu a esta barragem conservadora propondo “expandir a Corte” (ele teria nomeado seis titulares suplementares, todos progressistas). Perdeu esta batalha, mas ganhou a guerra: os juízes renunciaram a sua obstrução e deixaram que se cumprisse a vontade popular.
Progressista, às vezes. Democrática, jamais
Quanto mais a esquerda americana contou com a Corte Suprema menos ela se importou com o que pensam os norte-americanos comuns
Esta reviravolta inaugurou uma sucessão de decisões progressistas, às vezes quase revolucionárias. O caso Brown versus Board of Education acabou, em 1954, com a segregação racial nas escolas públicas (hoje, esta segregação se reconstitui de fato, se não de direito); Griswold versus Connecticut tornou possível o controle da natalidade, em 1965. Finalmente, Roe versus Wade legalizou o aborto, em 1973. De um bastião de elite, a Corte Suprema se metamorfoseou em motor da transformação social.
Assim procedendo, ela provocou um realinhamento das forças políticas. Cada um dos campos se posicionou em função de sua apreciação da ação da Corte: favorável, entre os progressistas; hostil, entre os conservadores. E, no fundo, será este o problema da esquerda, pois, mesmo quando a Corte favoreceu seus combatentes, ela permaneceu não democrática. Seus membros são muito mais designados5 que eleitos. Formalmente, o Congresso poderia sancionar juizes em função de suas sentenças, mas os progressistas seriam, então, os primeiros a associar uma reação deste tipo a uma violação da doutrina sagrada da separação dos poderes. A Corte permaneceu, desta forma, a última instância de recurso, aquela a que nenhum poder se iguala. O que Washington oferece de mais semelhante a uma potência de soberania absoluta.
Uma situação deste tipo, a rigor concebível, porque que a Corte se limitava a ser uma instância de último recurso, tornou-se mais problemática depois que ela se transformou em instituição para a qual dirigem-se todos os grupos que a aspiram transformações sociais (mulheres, minorias, prisioneiros etc.). Pois as novas responsabilidades que a Corte assumiu, ela as retirou das autoridades eleitas, particularmente do Congresso. E, longe de confortar a soberania popular, ela reduziu a população a espectadora obediente de decisões proferidas por magistrados não eleitos, que falam em seu nome.
As conseqüências políticas desta inflexão foram o que se poderia prever: quanto mais a esquerda americana contou com a Corte Suprema menos ela se importou com o que pensam os norte-americanos comuns, muito freqüentemente equiparados a uma massa racista, sexista, conservadora. Os propagandistas de direita não fizeram outra coisa que vilipendiar, como resposta, os esnobes progressistas das universidades da elite, que se rivalizavam em arrogância em seu casulo de Harvard ou Berkeley.
O perfil do novo presidente…
Durante sua sabatina, Roberts escondeu-se atrás de generalidades, avaliando que “os juízes não estabelecem regras, eles as aplicam”. Como se a Constituição fosse simples de ser interpretada – e fixa como as regras do basebol
Os democratas levaram tempo para compreender o que se passava. Imaginando que são mais capazes de ganhar processos que eleições, eles escolheram mostrar, na arena política, desinteresse sobre o aborto, a oração nos lugares públicos etc. Certamente, imaginam que, como a Corte atuaria sobre temas impopulares, eles poderiam, sem remorso, estabelecer compromissos demagógicos com a direita. Em vez de se opor aos republicanos, eles os imitaram com freqüência. Passados cerca de vinte anos, passaram a perder também no terreno judiciário. Os tribunais tiveram nova descaída direitista. Um bom número de juizes – e não apenas na Corte Suprema – foi escolhido por presidentes republicanos. Até 2008, estes terão ocupado a Casa Branca vinte e oito dos quarenta últimos anos. Os democratas agora perdem nos dois campos.
A chegada de John Roberts à Corte Suprema simboliza os últimos episódios judiciários desta história. Ele tem 50 anos, e estudou num pensionato católico. Diplomou-se em Harvard. Quase todas as posições que tomou nos últimos vinte anos caracterizam um homem de direita.
Ele se opôs ao reforço das garantias eleitorais das minorias. Apoiou os esforços dos republicanos para reduzir, pela via judiciária, os mecanismos de integração racial e igualdade sexual. Evocou, com desenvoltura, um “dito” direito à proteção da intimidade (privacy). Discutiu a pertinência da decisão que legalizou o aborto, em 1973. Finalmente, escreveu em favor de um momento de silêncio — isto é, oração voluntária — nas escolas públicas6. Sua filosofia jurídica é, aliás, bastante estrita e conservadora. Para ele, é preciso fazer mais referência ao texto da Constituição (redigida há mais de dois séculos) que procurar interpretar em demasia o que ela diria atualmente.
… e o fiasco do Partido Democrata
A reverência dos democratas pela Suprema Corte ajudou Roberts. Crentes numa magistratura que encarnaria princípios eternos da Constituição, hesitam em questionar suas prerrogativas
Nada disso despertou os ardores democratas. Quando das sessões da comissão judiciária do Senado, o senador Joseph Biden, suposto candidato à Casa Branca em 2008, pareceu, principalmente, magoado por Roberts ter um dia apreciado com desprezo a lei que condena a violência praticada contra as mulheres, da qual Biden foi um dos padrinhos parlamentares. ” Fui eu que redigi com minha equipe”, protestou. Em um registro ainda mais lamuriento, e possivelmente destinado a um amplo público, a senadora democrata Dianne Feinstein indicou a cada um que seu pai e seu marido tinham sofrido de câncer, antes de perguntar a Roberts: “Se você estivesse no lugar de alguém que ama profundamente uma pessoa que sofre, qual conselho seguiria com maior boa vontade: o de seu médico ou das autoridades7“?
Um pouco desconcertado Roberts, não soube muito o que responder… Durante seus três dias de sessão, ele recusou responder a uma centena de perguntas8, escondendo-se atrás de generalidades, avaliando modestamente que “os juizes são como árbitros. Eles não estabelecem regras, eles as aplicam”. Como se as “regras” enunciadas pela Constituição norte-americana fossem tão simples de ser interpretadas e fixas de uma vez para todas como as do basebol. Finalmente, interrogado sobre alguns de seus escritos mais conservadores (na época em que atuava, em uma posição relativamente subalterna, na administração Reagan), explicou que tinha se comportado como qualquer advogado, avançando o que pensava que seu cliente desejava ouvir. Particularmente sensível à questão das liberdades públicas, tendo em vista que ele foi o único senador a se opor ao Patriot Act de outubro de 2001, Russel Feingold inquietou-se com o fato de Roberts ter sustentado a posição da Casa Branca no tema dos detentos de Guantanamo. Mas ele também votou em favor daquele que é agora o presidente da Corte Suprema.
A reverência dos democratas pela mais alta corte do país jogou a favor de Roberts. Tendo investido na idéia de uma magistratura suprema que encarnaria os princípios eternos da Constituição, eles hesitam em questionar suas prerrogativas. Como a Corte se pretende acima da confusão, eles rejeitam submetê-la a um julgamento político e hesitam antes de interrogar de maneira muito precisa aqueles que postulam sobre as decisões que eles tomariam.
Nunca foi proibido a um juiz, entretanto, contradizer em uma sentença suas declarações anteriores, argumentando que as circunstâncias tinham mudado neste intervalo; uma vez confirmado, um magistrado supremo só responde à sua consciência9. Adeptos de uma espécie de religiosidade constitucional, os democratas foram pouco capazes de elucidar as intenções de Roberts. Agora, este estará em condições de costurar, durante décadas, sentenças de importância decisiva para o país.
A chegada de dois advogados de negócios à Corte Suprema não anuncia nada de bom para aqueles que se opõem ao poder crescente do capital na sociedade. O escritório de Dallas, outrora dirigido por Miers não se caracterizava como um serviço inteiramente especializado em “evitar o sindicalismo?” Ou seja, encarregado de evitar a presença de uma seção sindical dentro da empresa. Seria esta uma prioridade nos Estados Unidos de Bush?
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Quando há uma vacância, o presidente dos EUA propõe seu candidato, que só se torna juiz da Suprema Corte depois de ter obtido o aval da maioria dos 100 senadores.
2 – Em 2004, a Corte decidiu, por 5 X 4, a eleição de George W. Bush à presid encia dos EUA, ao determinar o método de contagem das cédulas eleitorais da Flórida.
3 – Em 1987, a designação, pelo presidente Ronald Reagen, do juiz ultraconservador Robert Bork à Corte Suprema, foi rejeitada por 58 X 42 votos (os democratas eram, então, majoritários no Senado). A confirmação de Clarence Thomas, em 1991, ocorreu após uma batalha encarniçada, e foi decidida por 52 X 48 votos.
4 – Ler “Capitalismo de Catástrofe”, de Mark Davis, no Le Monde Diplomatique-Brasil de outubro de 2005.
5 – A Constituição dos Estados Unidos estabelece (artigo 3, alínea 1) que eles permanecem em atividade enquanto “comportarem-se corretamente” (during good behavior), mas na prática eles têm mandato vitalício.
6 – Ler “Judge Roberts on trial”, de Ronald Dworkin, The New York Review of Books, 25/10/2005.
7 – Citado pelo New York Times, 15/9/2005.
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