Uma “dívida odiosa”
A suspensão do pagamento da dívida, decretada por Buenos Aires em dezembro de 2001 está muito longe de ter sido a primeira. Desde o início do século XIX, ocorreram várias dezenas de suspensões de pagamentos durante as quatro grandes crises da dívidaEric Toussaint
Em 1914, no auge da revolução liderada por Emiliano Zapata e Pancho Villa, o México suspendeu totalmente o pagamento de sua dívida externa. País mais endividado do continente para com o seu vizinho do Norte, o México se limitaria, entre 1914 e 1942, a pagar quantias inteiramente simbólicas, com o objetivo exclusivo de manter a tranqüilidade. Longas negociações foram realizadas, de 1922 a 1942 (20 anos!), com um grupo de credores dirigido por um dos diretores do banco norte-americano Morgan. Nesse período, em 1938, o presidente Lázaro Cárdenas nacionalizaria, sem qualquer indenização, a indústria petrolífera que estava em mãos de empresas norte-americanas.
A medida, evidentemente benéfica para a população, provocou protestos dos credores. Mas, no final, a tenacidade do México acabaria compensando: em 1942, os credores desistiriam de mais de 90% do valor de seus créditos e aceitariam pequenas indenizações pelas empresas que lhes haviam sido tomadas1 . Outros países, como o Brasil, a Bolívia e o Equador, também suspenderam (total ou parcialmente) os pagamentos a partir de 1931. No caso do Brasil, essa pausa seletiva nos pagamentos prolongou-se até 1943, ano em que foi negociado um acordo que permitiu reduzir a dívida em 30%. O Equador, por seu lado, manteria os pagamentos suspensos de 1931 até a década de 50.
Quatro grandes crises
Durante a década de 30, um total de 14 países suspendeu os pagamentos em caráter prolongado. Entre os grandes devedores, somente a Argentina manteve os pagamentos sem interrupção – o que, por sinal, já havia feito durante a crise anterior, no final do século XIX. Com uma conseqüência: comparando-se os seus resultados econômicos na década de 30 com os dos outros grandes devedores (México e Brasil), os da Argentina são muito piores!
A suspensão do pagamento da dívida decretada por Buenos Aires em dezembro de 2001, depois que as mobilizações populares levaram à renúncia do presidente De la Rúa, está muito longe, portanto, de ter sido a primeira. Desde que a maioria dos países latino-americanos conquistaram a independência, no início do século XIX, ocorreram várias dezenas de suspensões de pagamentos durante as quatro grandes crises da dívida (ler, nesta edição, “De crise em crise”, de Éric Toussaint).
Em 1938, o presidente Lázaro Cárdenas nacionalizou, sem qualquer indenização, a indústria petrolífera que estava em mãos de empresas norte-americanas
Entre 1826 e 1850, por ocasião da primeira dessas crises, quase todos os países do continente suspenderam os pagamentos. Um quarto de século depois, em 1876, onze nações latino-americanas estavam com os pagamentos suspensos. Na década de 1930, 14 países decretaram a moratória2 . Entre 1982 e 2002, o México, a Bolívia, o Peru, o Equador, o Brasil e a Argentina interromperam, em ou outro momento, os pagamentos por um período de vários meses: a suspensão permitiu aos países endividados a criação de condições favoráveis à retomada posterior dos pagamentos, após uma renegociação com os seus credores.
Lucrando com a dívida
No dia 26 de novembro de 2001, Anne Krueger – a nº 2 do Fundo Monetário Internacional, nomeada pelo governo Bush – anunciava que o FMI projetava criar um mecanismo que permitisse, aos países com dificuldades para pagar a dívida, a suspensão do pagamento por um período prolongado3 . Isso permitira, em certos casos, evitar a explosão de uma crise que poderia forçar os credores privados a renunciarem a uma parte de suas pretensões, e, ao mesmo tempo, aliviaria o peso da dívida.
Para o FMI, trata-se de disciplinar os credores privados a fim de evitar que se repitam crises como a que abalou o México em 1994, o Sudeste asiático em 1997, a Rússia em 1998 e, ultimamente, a Turquia e a Argentina. No entanto, Anne Krueger explicou que seriam necessários de dois a três anos de discussões, dentro do FMI, para ativar esse mecanismo. A explosão de uma crise importante na Argentina antecipou-se, portanto.
Na década de 30, 14 países suspenderam os pagamentos em caráter prolongado. Dos grandes devedores, só a Argentina manteve os pagamentos sem interrupção
É bastante claro que, para o FMI e os credores em geral, trata-se somente de uma interrupção4 . A partir de agosto de 1982 – com a suspensão provisória do pagamento da dívida mexicana – eles souberam tirar proveito da situação. Todas as interrupções de pagamentos duraram menos de um ano e nunca foram decididas de comum acordo entre vários países. Conseqüentemente, os credores privados puderam fazer negócios lucrativos e o FMI conseguiu – sempre – receber com juros os empréstimos colocados à disposição dos devedores para que estes pudessem honrar seus compromissos internacionais e continuar, ou recomeçar, os pagamentos suspensos (leia, nesta edição, “Jogando pesado”, de Eric Toussaint).
A omissão de Alfonsín
A atual dívida externa pública da Argentina é de mais de 130 bilhões de dólares. Mas, durante os 25 anos que se seguiram ao início da ditadura militar (março de 1976), ela pagou mais de 200 bilhões de dólares! Durante os “anos de chumbo” (1976-1983), a dívida externa foi multiplicada por 5,5, passando de 8 para 45 bilhões de dólares. O FMI apoiou e aconselhou sistematicamente os generais, chegando a manter como representante, junto ao Banco Central argentino, um funcionário superior, Dante Simone. No último período da ditadura militar, a esmagadora maioria da dívida externa privada foi transferida, ilegalmente, para a responsabilidade do Estado.
Segundo o direito internacional, as dívidas assumidas por um regime ditatorial constituem uma “dívida odiosa”. Por ocasião da volta à democracia, em 1985, o presidente Raúl Alfonsín teria, portanto, argumentos para não aceitar as pressões do FMI e dos credores, porém nada fez. Ao contrário: no começo do regime constitucional, assinou um acordo com o FMI comprometendo seu país a pagar toda a dívida até o último centavo. As dívidas assumidas posteriormente serviram, basicamente, para o pagamento das anteriores.
Um cartel de endividados?
Entre 1982 e 2002, o México, a Bolívia, o Peru, o Equador, o Brasil e a Argentina interromperam os pagamentos da dívida por um período de vários meses
Em julho de 2000, após 18 meses de tramitação judicial, um tribunal argentino emitiu uma sentença, de 195 páginas, demonstrando o caráter ilícito da dívida, a culpa dos credores privados internacionais, do FMI e do Banco Central (Federal Reserve) norte-americano5 . O documento demonstra a avidez dos capitalistas argentinos que, sistematicamente, exportaram seus capitais para o exterior, após terem esvaziado a economia nacional da sua substância e de suas indústrias. Com base nisso, os cidadãos têm todo o direito de exigir do presidente Eduardo Duhalde que seja mantida a suspensão dos pagamentos da dívida para conseguir que ela seja cancelada.
Um regime que definisse como prioridade, de forma coerente, o atendimento aos direitos humanos fundamentais de seus cidadãos, que tomasse medidas concretas nesse sentido, teria um enorme apoio popular não só na Argentina, mas também em muitos outros países. O Brasil, cuja dívida chega atualmente a 250 bilhões de dólares, terá eleições presidenciais em outubro de 2002. O novo presidente poderia aliar-se à Argentina diante dos credores. Por que não fazer um cartel dos endividados com a Venezuela de Hugo Chávez? Isso poderia levar o continente latino-americano a uma virada histórica.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Para uma análise pormenorizada, ler, de Carlos Marichal, A Century of Debt Crises in Latin America, 1820-1930, ed. Princeton University Press, 1989; e, do mesmo autor, La deuda externa: el manejo coactivo en la política financiera mexicana, 1885-1995, texto mimeografado, México, 1999.
2 – Ler, de Eric Toussaint, La Bourse ou la Vie, ed. Syllepse/CADTM, Paris-Bruxelas, 1999.
3 – Veja, no site do FMI: www.imf.org/external/np/speeches/2001/112601.htm
4 – O FMI concedeu o prazo de um ano a Buen