Uma economia de penúria
A “megadesvalorização” do peso, o congelamento dos salários e o confisco dos depósitos bancários produziram uma forte contração do dinheiro em circulação, a liquidação do crédito e, por conseqüência, a falência de milhares de empresasJorge Beinstein
Se a tendência do primeiro semestre se confirmar, as economias da América Latina vão entrar em recessão. Isso se deve não só à queda dos preços internacionais dos produtos latino-americanos1, mas também à degradação dos sistemas financeiros, como o da Argentina.
A diminuição do ritmo econômico dos Estados Unidos afeta o comércio e os investimentos. Particularmente dependentes desse mercado, os países da América Central sofreram uma forte redução de suas vendas ao grande vizinho do norte. De um lado, após os lucros enormes acumulados na década de 90, os investimentos diretos estrangeiros (IDE) no subcontinente rarearam com a estagnação do consumo2.
O colapso da Argentina
As recessões nacionais se fortalecem umas às outras, como demonstra a queda de exportações no Mercosul, de 41% no primeiro trimestre de 2002
As recessões nacionais se fortalecem umas às outras, como demonstra o desmoronamento das exportações no interior do Mercado Comum do Sul (Mercosul3), com uma queda de 41% no primeiro trimestre de 2002. O declínio econômico se agrava em toda a região, provocando um desemprego crescente que, em 2001, atingiu sua taxa mais alta desde o fim da II Guerra Mundial. Provavelmente, esse recorde será batido no final deste ano. Casos extremos: a Colômbia e o Uruguai, onde 20% da população economicamente ativa estavam sem emprego no fim de 2001. Na Argentina, segundo os dados oficiais, se chega perto de 23%, mas inúmeros especialistas consideram que o governo “maquiou” os resultados. O índice real estaria beirando os 30%.
A Colômbia, a Venezuela e os países que constituem o Mercosul passam por fortes turbulências. Porém, até o presente, a Argentina esteve no centro da tormenta. Levada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) a políticas recessivas mesmo quando a recessão já havia começado (1998), sofrendo forte redução dos gastos públicos, saqueada pelas empresas estrangeiras que controlam os (ex)-serviços públicos e o sistema bancário, tudo isso sob a influência de governos neoliberais corruptos, a Argentina desmoronou no fim de 2001, antes de afundar numa verdadeira falência.
Mais arrocho, para pagar a dívida
Como se chegou a esse ponto? Presente por detrás de todas essas medidas, o FMI defendia, além de tudo o mais, um arrocho suplementar…
Como se chegou a esse ponto? A “megadesvalorização” do peso (e suas seqüelas inflacionárias), mais o congelamento dos salários e o confisco dos depósitos bancários – imposto em dezembro de 2001 – produziram uma forte contração do dinheiro em circulação, a liquidação do crédito e, por conseqüência, a falência de milhares de empresas. Presente por detrás de todas essas medidas, o FMI defendia, além de tudo o mais, um arrocho suplementar.
Desde sua posse em janeiro de 2002, o governo do presidente Eduardo Duhalde tenta obter do FMI uma salvação financeira. Depois de longos meses de intermináveis negociações – cada vez que a Argentina concorda em satisfazer uma exigência da instituição internacional, esta apresenta uma outra – tornou-se evidente que o país não poderia contar com nenhuma ajuda milagrosa. “O dinheiro dos carpinteiros e dos encanadores norte-americanos não deve ser usado para salvar da ruína países como a Argentina”, declarava, já há um ano, Paul O?Neill, secretário do Tesouro do governo dos Estados Unidos, principais acionistas do FMI.
Punição para um mau exemplo? Avaliação exagerada e pouco confiável. Tanto os ajustes impostos pelo FMI quanto suas motivações devem ser examinados com atenção. Poderiam servir de exemplo perverso para outros países periféricos que se encontrem em situações semelhantes. Entre o primeiro semestre de 2001 e o deste ano, por exemplo, as importações argentinas tiveram uma redução de dois terços por causa da depressão que levou ao desabamento do consumo. Conseqüência: o país disporá, no final de 2002, de um saldo comercial positivo de 12,3 bilhões de euros (quase 40 bilhões de reais). Este deveria permitir que se restabelecesse o pagamento das dívidas externas (públicas e privadas) e facilitar a remessa para o exterior dos lucros das multinacionais!
A “ajuda-pressão” norte-americana
“O dinheiro dos carpinteiros e dos encanadores norte-americanos não deve ser usado para salvar da ruína países como a Argentina”, disse Paul O?Neill
A consolidação dessa “economia de penúria”, baseada na contração duradoura do mercado interno, torna possível, certamente, a perpetuação do atual sistema. Mas, diante de suas conseqüências sociais, de seus milhões de desempregados, de pobres e de indigentes, a resposta política não poderia ser outra que a instauração, cedo ou tarde, de um regime autoritário (nessa matéria, a Argentina tem um bom currículo).
Se, em relação ao Brasil, as exigências foram – até o presente – menos duras, nem por isso deixam de seguir na mesma direção. A recente crise financeira – em grande parte criada artificialmente pela possível vitória de um candidato de esquerda ou de centro-esquerda, Luís Inácio Lula da Silva ou Ciro Gomes, na próxima eleição presidencial – fez lembrar o tema da “argentinização”. O FMI concedeu uma ajuda financeira, mas a conta-gotas. Dos 30,8 bilhões de euros (95 bilhões de reais) finalmente fornecidos, apenas 6 bilhões (18,5 bilhões de reais) serão liberados este ano. Uma soma insignificante para garantir a estabilidade.
De fato, trata-se apenas de uma “ajuda-pressão”, destinada a impor aos governos, atual e futuro, o ajuste fiscal e monetário. Em resumo: para evitar uma situação “à Argentina”, Brasília toma o caminho que – sob a direção do FMI – levou seu vizinho ao desastre. De sua parte, o FMI acumula uma nítida vitória política obrigando os candidatos à Presidência (inclusive Lula) a aceitarem suas exigências. No Uruguai, obteve-se um resultado semelhante com uma ajuda de apenas 2 bilhões de euros (6,3 bilhões de reais)!
Se, em relação ao Brasil, as exigências foram menores, nem por isso deixam de ir na mesma direção. A recente crise financeira lembrou a “argentinização”
O colapso da Argentina, a depressão no Uruguai e no Paraguai, a recessão no Peru e na Bolívia, assim como seus primeiros sintomas no Chile e no Brasil, cobrem com uma sombra negra o cone sul da América Latina. Nesse contexto, o futuro do Mercosul parece incerto. A vontade de Washington em acelerar a anexação comercial da região, por meio da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), implica a desestruturação dessa iniciativa sul-americana claramente dirigida por Brasília. Visando a um controle integral direto dos Estados Unidos sobre a região, tal ofensiva se insere em sua estratégia global de implantação de instalações militares e de “protetorados” na periferia (já evidente na franja asiática que vai do Afeganistão até a Turquia). Com essa ofensiva, a superpotência deseja compensar sua crise econômica e conter a emergência de espaços com forte potencial de autonomia, como a China e a Índia, dos quais poderia se aproximar, por exemplo, um Brasil com pretensões de independência.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Menos 15 % durante o primeiro semestre de 2002.
2 – Investissements étrangers en Amérique latine et dans la Caraïbe, Cepal, Santiago, maio de 2002.
3 – Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai (mais dois países associados: Chile e Bolívia).
A América Latina em números
Dívida externa: 750 bilhões de dólares (2,85 trilhões de reais).
Produto Interno Bruto: queda de 3 a 4% prevista para 2002.
Importações: queda de 2,5% em 2001 e de 5% em 2002.
Exportações: redução de 4% em 2001, pelo menos igual em 2002.
Investimentos diretos estrangeiros: 107 bilhões de euros (330 bilhões de reais) em 1999; 90 bilhões de euros (280m bilhões de reais) em 2000; 82 bi