Uma eleição longe do mundo
O primeiro turno da disputa presidencial francesa foi marcado pela mediocridade do debate sobre temas internacionais. Seria mais um indício de que o capitalismo globaliza as decisões, mas esvazia a política?Bernard Cassen
Em seu último ensaio, Hubert Védrine escreveu: “A política exterior não é um luxo. A França vai necessitar dela mais que nunca” [1]. O ex-ministro de relações exteriores traça um quadro lúcido dos diversos assuntos “quentes”. Alguns são verdadeiras bombas políticas de efeito retardado. Citou, principalmente, a engrenagem que pode levar a um “choque de civilizações” [2], sobre o qual o próximo governo francês, e os seguintes, deverão assumir uma posição.
É significativo que nos programas dos candidatos à eleição presidencial, a política exterior e a defesa apareçam com mais freqüência e associadas às questões européias. Os dois assuntos são efetivamente conexos, pois políticas exteriores nacionais podem ser compartilhadas no plano europeu, e a Comissão de Bruxelas dispõe de representações autônomas em mais de 100 países. Também conexas, pois a política comercial e política agrícola comum, que são há décadas de competência exclusiva da União Européia, não podem ser destacadas das negociações políticas e diplomáticas dos Estados-membros com outros países.
Mas os dois assuntos destacam-se também pelo fato de a União Européia (UE) enquadrar muito estritamente as políticas internas. Os vinte e sete países-membros já não dispõem das duas alavancas econômicas, que são as políticas monetária e orçamentária. A política fiscal, teoricamente o motor dos Estados, tende, na realidade, a se uniformizar, sob a pressão da concorrência. E as cerca de 80 mil páginas de “patrimônio comunitário” (tratados, diretivas, decisões, regulamentos, jurisprudência) formatam a quase totalidade das decisões nacionais.
Que candidato ousou questionar as diretrizes da União Européia?
Naturalmente, o capítulo ’Europa’ deveria destacar-se de todos os programas eleitorais, tendo em vista que é somente no meio das políticas comuns que se situa a margem de manobra para ações nacionais. Sem uma completa reformulação dessas políticas e, conseqüentemente, sem renegociação do próprio conteúdo dos tratados, inúmeros itens nos catálogos de propostas dos candidatos são destituídos de qualquer dimensão efetiva.
Pode-se citar, entre as propostas formuladas pelos candidatos a recusa ao dumping fiscal, defendida por Nicolas Sarkozi (União por um Movimento Popular-UMP) [3]. Essa tese é vagamente retomada por François Bayrou (União pela Democracia Francesa-UDF). Ele é favorável a uma harmonização da fiscalização européia. Podemos incluir a reivindicação dos Verdes e de sua candidata, Dominique Voynet, de “reservar o acesso do mercado europeu aos produtos e serviços que respeitem no mínimo as convenções da Organização Internacional do Trabalho em sua fase de produção e de transporte”. Ou a medida número 89 (em 100) do Pacto Presidencial de Ségolène Royal (Partido socialista-PS), que quer inscrever no estatuto do Banco Central Europeu (BCE) o objetivo de crescimento de emprego.
Essas medidas e muitas outras, que questionam abertamente o conteúdo dos tratados europeus, condicionam muitas políticas econômicas e sociais preconizadas por esses mesmos candidatos. No entanto, nenhum deles indica o que ocorreria se elas não fossem ratificadas pelos outros 26 Estados membros da União — uma hipótese altamente provável…
Só os concorrentes sem chances debateram temas cruciais
Pouco eloqüentes sobre a questão, os candidatos abordam um pouco mais a política exterior que poriam em prática caso sejam eleitos. Na maioria dos casos, ficam nas generalidades acrescidas de citações com uma visão geoestratégica. Aparentemente, é paradoxal que as propostas mais construídas e numerosas emanem de candidatos que não têm nenhuma chance de chegar aos Campos Elíseos. Olivier Besancenot (Liga Comunista Revolucionária-LCR), José Bové e Marie-Georg Buffet (Esquerda Popular e Antiliberal) são os únicos [4] a pregar a saída ou emancipação da França da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) — ou seja, a dissolução dessa organização. A candidata Royal, por outro lado, limita-se a reivindicar a “resistência aos tropismos de extensão permanente dos campos de ação e dos domínios de intervenção da OTAN”.
De uma maneira geral, os candidatos dos principais partidos (UMP, UDF e PS) mantiveram-se em posturas de princípio. Mas não poderiam se furtar de algumas precisões sobre ao menos três grandes questões que a atualidade lhes impõe: as relações com os Estados Unidos, os conflitos do Oriente Médio e a presença da França na África.
O “laço transatlântico”, principalmente após a catástrofe iraquiana e a vitória dos democratas nas eleições de novembro, nos Estados Unidos, é um tema altamente sensível. Ao ler os programas e declarações, parece que qualquer inclinação atlantista tenha, ao menos em palavras, se tornado um tabu para o conjunto das forças políticas. A questão não estaria colocada para os candidatos da extrema esquerda, nem para Philippe de Villiers (Movimento pela França-MPF) e Jean-Marie Le Pen (Frente Nacional).
Em seu programa, Os Verdes e Voynet não falam nada sobre o assunto, mas não podem ser suspeitos de simpatia particular pela América de George W. Bush, verdadeiro contra-modelo para a ecologia política. Em compensação as posições da Bayrou, de Royal e, principalmente, de Sarkozy eram esperadas.
Sobre o Iraque, a derrapada mais séria de Sarkozy
Bayrou e o PS condenaram, na época, a invasão do Iraque. A campanha eleitoral lhes permitiu que atualizassem suas críticas. Bayrou afirmou: “Aprovei a posição definida pelo presidente Chirac e defendida por Dominique de Villepin. A França não foi arrogante, ela foi fiel a si mesma”. Royal, da mesma maneira, apreciou positivamente a política seguida por Jacques Chirac. Nesse último ponto, ela se diferenciou das posições tomadas por um de seus concorrentes pela investidura do PS. Dominique Strauss-Kahn, que, denunciando o estilo da diplomacia francesa, mantém a dúvida sobre o que pensa realmente de seu conteúdo. Na revista Le Meilleur des Mondes, dirigida por intelectuais pró-norte-americanos e favorável à guerra no Iraque (como André Glucksmann), o ex-ministro de finanças declarava, tranqüilamente: “Sobre esta questão, minha linha poderia ser assim resumida: nem Chirac, nem Blair. Nem a arrogância estéril de Jacques Chirac, nem o seguidismo de Tony Blair”. [5]
Arrogância; esta palavra-código, utilizada dos dois lados do Atlântico pelos adversários da posição francesa sobre o Iraque, foi pronunciada da mesma forma por Sarkozy (na mesma edição da revista dos neoconservadores franceses): “Não quero uma França arrogante”. Como prova da humildade que queria atribuir à política exterior de seu país, o candidato da UMP foi, no dia 12 de setembro, a Washington, onde, para conseguir uma foto ao lado de Bush, declarou que a França não estava “isenta de criticas” em sua relação com Washington.
Rapidamente, Sarkozy compreendeu o enorme erro que acabara de cometer. Falha similar contribuiu para a derrota do presidente espanhol José Maria Aznar, por ocasião das eleições de março de 2004, e, num futuro próximo, provocará a saída inglória de Anthony Blair no governo do Reino Unido. Carregando como uma cruz o apelido “Sarkozy, o Americano”, o candidato se esforça, há semanas, para corrigir sua imagem de atlantista. Solicita “aos nossos amigos americanos” que deixem a França e a Europa livres, e prega que “a amizade não é submissão” (discurso de 28 de fevereiro de 2007). A questão é saber se foi em setembro de 2006 ou em fevereiro de 2007 que manifestou o seu verdadeiro pensamento.
Pouca transparência também sobre a Palestina
Sobre a situação na Palestina, os três candidatos mais votados não se diferenciaram da posição oficial atual, sem deixar de reivindicá-la. Bayrou não fala nada. Sarkozy dá alguns sinais subliminares. Mesmo afirmando que “não se deve aceitar tudo de Israel” — uma maneira de retificar à margem sua reputação de apoiador incondicional de Estado hebreu (e visto como tal em Jerusalém) —, ele lembra que sua “primeira viagem como presidente da UMP foi a Israel para reencontrar Sharon” [6]”.
As declarações contraditórias de Royal, por ocasião de sua viagem ao país, suscitaram comentários mitigados, pois ela aparentou apoiar a edificação do Muro [7], e, ao mesmo tempo, manifestou intenções amáveis ao presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. A medida 92 de seu Pacto Presidencial – “Lançar com os parceiros europeus uma iniciativa para uma Conferência Internacional de Paz e de Segurança no Oriente Médio” — é suficientemente indefinida e subordinada às vontades das outras partes envolvidas. Mas não está dito em que bases jurídicas essa conferência se reuniria. Somente Bové e Buffet indicam que ela deve ocorrer sob a égide das ONU. Visaria à construção de um Estado palestino independente, ao lado do Estado de Israel, com Jerusalém Leste como capital e respeitando-se os limites territoriais de 1967. Reconheceria o direito de retorno dos refugiados (cuja aplicação necessitará de uma negociação).
Mesmo em se tratando de uma simples retomada das resoluções da ONU, a candidata socialista, qualquer que seja sua posição pessoal sobre o assunto, deve levar em conta o forte tropismo pró-israelita dos círculos dirigentes de seu partido. Ela se expressa de maneira codificada (como no uso da palavra “arrogância”) na crítica da “política árabe da França”. Traduzindo: não-favorável ao Estado de Israel. Não surpreende o fato de Strauss-Kahn fustigar essa política nas colunas do “Meilleur des Mondes” [8].
Quando a defesa dos direitos humanos é biombo para a falta de políticas
Sobre a questão iraniana, as posições, quando existem, são resolvidas nas aparências. Bayrou rejeitou duramente a aceitação de um Irã dotado de armas nucleares. Defendeu firmeza, sem que se saiba até onde poderia nos conduzir. Sarkozy considerou que, em razão do impacto das sanções econômicas sobre Teerã, uma intervenção militar seria inútil, mas se recusou a qualificá-la como perigosa.
Royal, por outro lado, evitou comentários sobre sua declaração embaraçosa – e totalmente contrária ao direito internacional — na qual afirmou que mesmo o nuclear civil deveria ser recusado ao regime dos “molás”. Em resumo, ninguém sabe que posição tomaria um governo dirigido por um desses três candidatos em caso de intervenção militar dos Estados Unidos e/ou de Israel.
Houve pelo menos um ponto comum entre todos os pretendentes à magistratura suprema, de um extremo ao outro do xadrez político: o fim da França- África, da relação privilegiada e personalizada do presidente da República com dirigentes africanos, aprentáveis ou não [9]. A política da africana da França será apenas a aplicação regional do que propõe uma das três correntes que criticaram a diplomacia de Jacques Chirac e que Védrine sistematiza: a “política dos direitos humanos” — definida como princípio maior da ação externa —, o europeísmo e o atlantismo [10].
O resultado do referendo de 29 de maio de 2005 e o fiasco dos EUA no Iraque tiraram a legitimidade, ao menos provisoriamente, do europeísmo e do atlantismo. Em compensação, estará no poder, na França — qualquer que seja o eleito —, uma política externa que se limita, no essencial, a posições genéricas em favor dos direitos humanos. Uma prefiguração desta tendência é o pacto sobre Darfur, assinado pela maioria dos candidatos. Na ausência de uma visão global das correlações de forças mundiais e de sua evolução, bem como do espaço que podem manejar, como expressão dos interesses nacionais vitais — que se tornaram “pouco gloriosos e p
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.