Uma Europa da esperança
Filósofo e escritor recentemente falecido, Derrida sempre ancorou sua reflexão sobre questões contemporâneas, o que lhe valeu inúmeras críticas. Em sua homenagem, publicamos uma de suas últimas intervenções públicas, a da festa do cinqüentenário do Monde diplomatique, na qual ele convoca a Europa a assumir o papel que lhe cabe na construção de uma outra globalizaçãoJacques Derrida
Paris, na França, falando sua língua, e a França na Europa. Será que os lugares que assumem e têm este nome, será que os lugares onde se produz e se leva em consideração uma fala pública e uma responsabilidade política relativamente livres, será que estes lugares podem se tornar, sem presunção, sem paradoxo nem contradição, os centros pensantes, atuantes, irradiantes de uma outra globalização digna desse nome? A esta questão, minha hipótese, minha esperança, responderão “sim”, este “sim” que tentarei argumentar.
Amigo fiel e leitor agradecido do Monde diplomatique, eu gostaria de prestar homenagem a este que considero o jornal, a aventura e a ambição jornalísticos mais extraordinários desse meio século, isto é, de toda minha vida de adulto e de cidadão. E não somente na França, em Paris e na Europa. Ao longo desses cinqüenta anos passados, inegavelmente e irreversivelmente passados, Le Monde diplomatique terá representado, a meu ver, a honra e a coragem daquilo que foi, através de uma informação íntegra e rigorosa – com freqüência, não encontrável em outros lugares – mais que um modelo jornalístico herdado do melhor passado, terá significado, simultaneamente, no mesmo movimento, um apelo e uma injunção em relação ao futuro.
Em relação ao futuro do mundo, ao da França e da Europa, certamente, mas muito além disso. A memória, a reportagem, a análise sem concessão e sem “unilateralidade” dos fatos foram nele, sem dúvida, a regra, mas também e através do mesmo ato, o apelo a fazer o que não está feito e que, portanto, está por ser feito. O apelo a afirmar, a reafirmar, a avaliar, a decidir. Não é, pois, somente o passado desse grande jornal que eu gostaria de saudar, é também o que ele nos pede, o que ele exige de nós, e do mundo, em relação ao futuro. É por isto que estas poucas palavras não serão apenas as de uma saudação ou de uma homenagem, mas serão também os votos para o amanhã. Eu reli, no primeiro número, de maio de 1954, o “Aos nossos leitores”, assinado pela redação do novo jornal e, na verdade, tudo permite supor, pelo próprio Hubert Beuve-Méry.
Não acredito que uma revolução possa, proximamente, derrubar as superpotências representadas por estas sinistras siglas: FMI, OCDE, OMC
Enquanto lia esta certidão de nascimento, eu me dizia que, se uma história analítica e exigente desse meio século do Monde diplomatique fosse escrita um dia – tarefa imensa e necessária para os historiadores do futuro – se perceberia nela que se manteve uma certa fidelidade às missões fundadoras fixadas desde a origem. E isto, sem dúvida, através dos deslocamentos múltiplos, das reviravoltas às vezes audaciosas, e até arriscadas, ou expostas à própria discussão – o que sempre pode acontecer, felizmente, entre os amigos do jornal. Esta fidelidade foi mantida através de todas as equipes e dos sucessivos diretores.
Outro tipo de globalização
O que mudou, quem poderia negar isso, foi o mundo, não o jornal; foi seu grande homônimo, seu referente desmesurado, o próprio mundo. O mundo foi abalado e dividido e recomposto por todos os tipos de sismos. Os conceitos e as formas do que, ainda ontem, se chamava o “mundo da diplomacia” foram radicalmente conturbados, mas o Monde diplomatique não se desviou, ao menos no espírito, de seus princípios fundadores. No entanto, ele se tornou globalizado segundo um outro tipo se globalização.
Relendo, depois do “Aos nossos leitores” de Beuve-Méry, o editorial “Resistências”, assinado por Ignacio Ramonet em nome do jornal, no número de maio de 2004, achei-o rico e denso, e mesmo exaustivo na concisão de seus 36 “não” e de seus 18 “sim”: se contei bem, duas vezes mais “não” que “sim” – e é exatamente isso o “apelo a resistir”.
Eu subscrevo tanto os 36 “não” quanto os 18 “sim”. Isto representa para mim não mais um decálogo, mas uma espécie de tábua dos mandamentos, o credo ou o ato de fé pela ética, pelo direito e pela justiça, pela política de nosso tempo e pelo futuro de nosso mundo. Num instante, e direi o porquê, neste dia de aniversário, me sentiria tentado a privilegiar, na urgência política da hora, pelo menos um desses “sim”. Eu que, se ouso dizê-lo, declarei um dia meu velho amor pela palavra “resistência”, a ponto de a escolher – e também no plural – como título de um livro. Eu que, há décadas, e mais explicitamente em Spectre de Marx [Espectro de Marx], em 1993, ou em Cosmopolites de tous les pays, encore un effort [Cosmopolitas de todos os países, mais um esforço], em 1997, e em tantos outros lugares, fiz a defesa, não contra o cosmopolitismo dos cidadãos do mundo, contra o qual nada tenho, muito pelo contrário, mas que ainda pertence a uma era da teologia política da soberania e do Estado territorializado; eu que critiquei o uso abusivo e “instrumentalizante”, o desvio ideológico e economicista que se fazia do léxico da globalização, na verdade, do mercado mundial único; eu que, então, fiz a defesa de uma nova Internacional que, após a denúncia de todos os males aos quais é preciso resistir, eu definia, em páginas e páginas, como “aquilo que não é apenas o que busca um novo direito internacional através dos crimes, mas um elo de afinidade, de sofrimento e de esperança, um elo ainda discreto [era em 1993], quase secreto, mas cada vez mais visível, um elo intempestivo e sem status, sem título e sem nome, muito pouco público apesar de não ser clandestino, sem contrato, sem partido, sem pátria, sem comunidade nacional, internacional antes, através e além de toda determinação nacional, sem co-cidadania, sem pertencimento comum a uma classe.”
A pressão crescente e sem trégua dos movimentos populares e da opinião pública por uma outra globalização as enfraquecerá e não deixará de obrigá-las a se reformarem
Quem escrevia isso há mais de dez anos, não pode senão se rejubilar ao ver Le Monde diplomatique tornar-se, cada vez mais, uma referência maior dos jovens movimentos por uma outra globalização. Por mais heterogêneos e às vezes confusos que, por vezes, possam ainda parecer, esses novos agrupamentos por uma outra globalização representam, a meu ver, a única força confiável e digna do futuro. E isso contra o G-81, o consenso de Washington, o mercado totalitário, o livre-comércio integral, o “pôquer do mal”: Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização Mundial do Comércio (OMC). Contra o que se passa hoje – e não podia deixar de se passar no Iraque, segundo os planos desastrosos elaborados por Wolfowitz, Cheney e Rumsfeld muito antes do 11 de setembro. Entre parênteses, um certo Brussells? tribunal, na tradição do Tribunal Russell, está prestes a proceder, conforme as melhores regras do direito, a um inquérito e depois a julgamentos, que se realizarão em Istambul, sobre esse plano de hegemonia médio-oriental e mundial.
Vocação francesa e européia
Não acredito que uma revolução no estilo do “Dia da Revolução Social” possa, proximamente, derrubar as superpotências representadas por estas sinistras siglas: FMI, OCDE, OMC etc.. Mas a pressão crescente e sem trégua dos movimentos populares e da opinião pública por uma outra globalização as enfraquecerá e não deixará de obrigá-las – já as pressiona, em certa medida – a se reformarem. O mesmo ocorrerá com a ONU e com seu Conselho de Segurança, sobrevivência da II Guerra Mundial, de seus vencedores e da Guerra Fria.
Em seu editorial de 1954, Beuve-Méry inseria, de passagem, uma observação que podia, então, parecer convencional, e mesmo patriótica, senão nacionalista. Em vista da missão comum que consiste “em trabalhar pelo desenvolvimento pacífico das relações internacionais, Paris é absolutamente indicada para ser a sede deste jornal, e o francês, sua língua”. “Se, na verdade”, acrescentava ele, “esta, a língua francesa, perdeu seu monopólio de antes na vida diplomática, não é menos verdade que o francês é a língua mais difundida nesses meios.”
Devemos assumir, no mundo tal como é e tal como se anuncia, uma responsabilidade francesa e européia insubstituível no movimento por uma outra globalização
Cinqüenta anos depois, eu me digo: sem dúvida, Le Monde diplomatique mantém sua sede em Paris e, como primeira língua, o francês; porque, se é tão amplamente internacionalizado, considerado no mundo inteiro como um jornal de referência fundamental, se é traduzido em tantas línguas, ele conserva uma ancoragem parisiense e francesa evidente, que é, na verdade, um inegável enraizamento europeu. Longe de constituir um limite francocêntrico ou eurocêntrico, eu creio – gostaria de crer – que isso deve exigir uma interpretação, uma tomada de consciência e um dever político que temos que levar em conta de modo rigoroso. Não conheço nenhum país no mundo, nenhum continente, não imagino nenhum outro lugar onde um jornal como ele pudesse nascer, viver, sobreviver com esta liberdade, esta exigência e estas qualidades.
Obrigação a ser assumida
Isso nos obriga a assumir, no mundo tal como é e tal como se anuncia, uma responsabilidade francesa e européia insubstituível no movimento por uma outra globalização, entre a hegemonia norte-americana, o aumento de poder da China e as teocracias árabes ou muçulmanas.
Eu não passo por um filósofo eurocentrista. Desde há quarenta anos, é do contrário que poderia ser acusado. Mas creio que, sem ilusões e sem pretensões eurocêntricas, sem o menor nacionalismo europeu, sem mesmo muita confiança na Europa tal como é ou parece em vias de se fazer, devemos lutar para que aquilo que representa esse nome hoje, com a memória do Iluminismo, é claro, mas também com a consciência culpada e assumida dos crimes totalitários, genocidas e colonialistas do passado. Nós devemos lutar, portanto, pelo que a Europa conserva de insubstituível no mundo que está por vir, para que ela se torne mais que um mercado ou uma moeda única, mais que um conglomerado neonacionalista, mais que uma nova força armada, ainda que, a este respeito, eu seja tentado a pensar que ela precisa de um poder militar e de uma política externa capaz de apoiar uma ONU transformada, com sua sede na Europa, e tendo os meios de aplicar suas resoluções sem se submeter aos interesses ou ao oportunismo unilateral da potência tecnológica, econômica e militar dos Estados Unidos.
Uma outra Europa
Deste ponto de vista, destacarei e privilegiarei fortemente o décimo segundo “sim” das Resistências propostas por Ignacio Ramonet. Sim, diz ele, a uma Europa mais social e menos comercial. Um “sim” que desenvolverei em um “sim” a uma Europa que, sem se contentar com rivalizar com as superpotências e sem, entretanto, deixar-lhes o terreno livre, se torne, pelo menos no espírito de sua constituição e em sua prática política, o motor de uma outra globalização, seu laboratório, e mesmo, seu poder de intervenção, por exemplo, no Iraque ou no conflito israelo-palestino.
Uma Europa onde se possa, simultaneamente, se preocupar com o crescimento do anti-semitismo e da islamofobia
Uma Europa que mostre o exemplo do que pode ser uma política, uma reflexão e uma ética, herdeiras do Iluminismo passado e portadoras do Iluminismo vindouro, capaz de discernimentos não binários.
Uma Europa onde se possa criticar a política israelense, e particularmente a de Sharon e de Bush, sem ser acusado de anti-semitismo ou de judeofobia.
Uma Europa onde se possa defender as aspirações legítimas do povo palestino em recuperar seus direitos, sua terra e um Estado, sem, no entanto, aprovar os atentados suicidas e a propaganda anti-semita que tende, tão freqüentemente – freqüentemente demais – no mundo árabe, a re-credenciar o monstruoso protocolo dos Sábios de Sião.
Uma Europa onde se possa, simultaneamente, se preocupar com o crescimento do anti-semitismo e da islamofobia. Provavelmente, Sharon com sua política não é nem responsável nem culpado diretamente por um retorno intolerável do anti-semitismo na Europa. Mas deve-se reivindicar o direito de pensar que ele nada tem a ver com isso, e que ele tem nisso alguma vantagem para chamar os judeus da Europa de volta a Israel.
Uma Europa, enfim, onde se possa criticar os programas de Bush, Cheney, Wolfowitz, Rumsfeld, sem complacência pelos horrores do regime de Saddam Hussein. Uma Europa onde, sem anti-semitismo, sem antiisraelismo, sem islamofobia antipalestina, seja possível aliar-se com aqueles que, norte-americanos, israelenses, palestinos, criticam corajosamente, e freqüentemente com mais vigilância que nós, os governos ou as forças dominantes de seus próprios países e dizem, então, “sim” a todos os “sim” que acabo de lembrar.
É com isto que sonho. Agradeço-lhes por me ajudarem não só a sonhar este sonho, a sonhar, como diz Ramonet, “que um outro mundo é possível”, mas també
Jacques Derrida, filósofo francês de projeção internacional, nasceu na Argélia em 1930 e faleceu em Paris em 2004. Publicou mais de 80 trabalhos em vida, lecionou na Sorbonne e na École Normale Supérieure.