Uma ilha à deriva
Depois de vencer as eleições parlamentares, Jean-Bertrand Aristide está prestes a assumir novamente plenos poderes no Haiti. Não tem direito a errar. É sua última chance. E as massas crêem neleChristophe Wargny
Jalousie [1] fica encravada numa montanha cinzenta e íngreme. Não há carros. Nada além de caminhos mal pavimentados entre casebres de pedra e chapas de metal enferrujado. Multidões de crianças desdenham o panorama sobre as opulentas mansões de Pétionville, abrigadas entre mangueiras e flamboyants. Pétionville é o bairro chique da capital haitiana, mas Jalousie não tem nada de favela. É só um bairro popular.
No dia 21 de maio deste ano houve eleições em Jalousie, como em todo o Haiti, para renovar o mandato de deputados e senadores, assim como das câmaras locais. Esperava-se assim sair do impasse institucional no qual o país patina há três anos, já que o presidente René Préval exerceu suas funções privado de um governo durante o primeiro ano e meio de seu mandato e sem a Assembléia (Congresso) durante o resto do tempo. Três anos num vazio que exasperou a comunidade internacional e bloqueou trezentos milhões de dólares de ajuda.
Violência e assassinatos
Centralizadas pelo Conselho Eleitoral Provisório (CEP), as eleições ocorrem em três turnos. Dividida entre o poder legislativo e o executivo, a CEP se desagregou. A oposição passou a acusar o presidente Préval e, indiretamente, seu predecessor, Jean-Bertrand Aristide, de tentar atrasar o processo eleitoral com medo da derrota. A tarefa prossegue a duras penas, sobretudo porque a eletricidade se revela intermitente e as estradas intransitáveis; porque três eleitores em cada quatro não sabem ler; porque, enfim, a campanha eleitoral é feita na língua crioula [2] enquanto a administração é em francês.
A campanha foi marcada pelo medo dos chimè (quimeras, em crioulo), jovens violentos, originários do proletariado e das favelas de Porto-Príncipe, que se diz estarem a serviço da Fanmi Lavalas (Família Lavalas — partido do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide). Além disso, deplora-se quinze assassinatos até hoje não esclarecidos, entre os quais o de Jean Dominique, o mais prestigiado dos comentaristas políticos locais. Na véspera da votação, um explosivo foi lançado no pátio de Lafami Selavi, uma instituição para crianças abandonadas criada na década de 70 pelo padre Aristide.
Maioria absoluta para a Fanmi Lavalas
O clima de violência dos últimos meses poderia ter desencorajado a população de Jalousie a deslocar-se para votar. Mas eles foram os primeiros a chegar. Chegaram eles, mas não as urnas, nem as cédulas. Estas chegarão por volta das 10 horas nas três seções de votação. Filas formam-se ao sol; mãos úmidas apertam os títulos de eleitor. Alguns confundem a seção de matrícula e de voto, outros não têm título e devem apresentar algum documento. Todos os que chegarem até as 17 horas poderão votar. No conjunto do país, a participação transcorre em tranqüilidade e passa dos 60%, um recorde desde dezembro de 1990.
Os candidatos da Fanmi Lavalas obtêm a maioria absoluta, tanto em Jalousie como em Porto-Príncipe, nos morros, ou ainda em todos os lugares onde 70% das pessoas vivem abaixo do nível de pobreza absoluta.
De maneira unânime, o Espaço de Diálogo, que reúne cinco formações da oposição, denuncia a fraude em massa, o “golpe de estado eleitoral” e pede a anulação da eleição. É claro que existem lacunas no processo; fraudes, às vezes; e alguns sérios incidentes, especialmente em Hinche. No entanto, os observadores internacionais concluem que: “O povo haitiano mobilizou-se em grande número para expressar a sua vontade política. Os funcionários dos locais de votação asseguraram adequadamente a organização e o sigilo do voto. Embora a demora na distribuição do material possa ter desencorajado eleitores, nós fomos testemunhas de filas de espera de eleitores enfermos.” [3]
A missão do Congresso norte-americano opina: “A votação transcorreu em atmosfera serena e pacífica.” No entanto, embora sem questionar a validade das eleições, a missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA) criticou a metodologia empregada para determinar a porcentagem de votos. [4] Ameaçado por ter feito essas mesmas observações e temendo por sua vida, o presidente da Comissão Eleitoral (CEP) optou, no dia 17 de junho, por se exilar nos Estados Unidos.
O “passaporte-tubarão”
Quatro anos após sua saída e a alguns meses da eleição presidencial de novembro próximo, a popularidade de Aristide revela-se publicamente. O governo de seu sucessor e amigo, René Préval, mostra-se, entretanto frágil: umas poucas obras públicas, algumas escolas a mais, uma reforma agrária simbólica e uma corrupção que continua endêmica. Apesar da honestidade indiscutível do presidente, seu governo foi ineficiente.
Também não há soluções para os problemas dos 60 mil habitantes de Porto Príncipe que incham a cada ano a população da capital, cujo ecossistema é um dos mais degradados do planeta. Não é a instabilidade política que alimenta a emigração, como nos tempos da ditadura, e sim o impasse econômico que leva os boat people, mais numerosos que há um ano, a tentar, quase sempre em vão, chegar à Flórida. Em Jalousie, chama-se isto “ganhar um passaporte-tubarão”.
O tráfico de drogas ultrapassou os recordes atingidos durante a junta militar. As apreensões contam-se em quilos. Uma novidade, contudo: o contrabando, de uma maneira geral, se democratizou. Embora o sistema judicial não tenha piorado, sua ineficácia em relação aos traficantes só é comparável à sua excessiva tolerância face aos torturadores de ontem.
Paralisia institucional
No dia 21 de maio, os eleitores escolheram sancionar o Parlamento. E de uma maneira bastante difícil. As eleições legislativas de 1995 celebraram a derrota dos antigos partidos, mais ou menos comprometidos com a ditadura. Triunfava assim a coalizão Bo tab la — “Todos à mesa” —, que reunia o movimento Lavalas e apoiava o presidente Aristide, principal referência das massas haitianas. Mas estas ignoravam que votando em “Titid”, estariam escolhendo parlamentares divididos.
Com a saída do “profeta” (fevereiro de 1996), o racha dentro da coalizão tornou-se tão profundo que paralisou completamente as instituições. Desde junho de 1997, o país encontra-se sem governo. Abrindo uma dissidência, a Organização do Povo em Luta (OPL), com os grupos parlamentares mais numerosos, boicotou a posse de possíveis primeiros-ministros, e portanto o trabalho legislativo. Entre seu líder, Gérard Pierre-Charles, e Jean-Bertrand Aristide, a incompreensão tornou-se total. “Um movimento social de grande amplitude foi solapado”, analisa Charles. “Nós queríamos construí-lo fora das velhas práticas haitianas. Aristide é herdeiro de um populismo que nada tem de antiliberal. É um jogador, um mitômano.” [5]
Um liderança controversa
A classe média não gosta do ex-“padrezinho”. Reprova seus sermões, sua origem — ele não faz parte da família —, sua imprevisibilidade e seu domínio sobre as massas. Seus adversários da OPL consideram-no um perigoso demagogo e até o campeão da falsidade e do roubo. [6] Aristide, por sua vez, lança uma organização política: a Fanmi Lavalas, e reúne uma minoria na Assembléia Nacional: o “grupo anti-neoliberal”. As sutilezas programáticas entre irmãos e inimigos são menos perceptíveis que o percurso de cada um: militantismo de origem marxista para uns ou contra a teologia da libertação para outros, ou ainda adesão à parte esclarecida da classe média ou contra a aliança privilegiada com os excluídos.
Seria Aristide um populista? Não mais que Fidel Castro, no início, como o coronel Hugo Chávez, na Venezuela, como Luís Inácio da Silva — o “Lula” — há alguns anos, no Brasil, ou alguns bispos, na América Latina?
Nas assembléias, um espetáculo lamentável
Mas “Titid”, como o povo o chama, nunca digeriu os três anos roubados pelo exílio forçado em Washington. Sentiu, na sua aposentadoria prematura, a incerteza e a ingratidão daqueles que deviam suas carreiras exclusivamente ao seu extraordinário percurso de 1986 a 1996, da queda de Jean-Claude Duvalier — “Baby Doc” — à dissolução do exército mercenário do Haiti. Ele desconfia “dos eleitos burocratizados que rapidamente criam barreiras ao povo.” E não esconde sua vontade “de relançar o intelectual coletivo, de constituir equipes capazes de governar e de aproximar a competência dos funcionários às reivindicações populares; de reforçar o Estado, que ainda não existe.” Para isto, apóia-se numa poderosa fundação, mantida por dirigentes negros norte-americanos, como o senador John Conyers, líder do Black Caucus.
Nas duas assembléias, um espetáculo lamentável. A astúcia jurídica, o cálculo a curto prazo e a barganha permanente levam o cretinismo parlamentar a seus limites. E a um total divórcio com os cidadãos. Não há leis votadas, não há ministros de pleno direito. A metade das embaixadas estão abandonadas. Vive-se o desespero dos mecanismos financeiros, da diáspora e às vezes das Organizações Não-Governamentais (ONGs)…
Os erros de análise da oposição
As eleições parciais de abril de 1997 — alguns deputados e um terço do Senado — foram vencidas pela Fanmi Lavalas e a seus aliados. Poucos eleitores participaram do processo e ocorreram algumas irregularidades, num país onde a organização das eleições se transforma rapidamente em briga e onde ninguém aceita o papel ingrato de perdedor. O governo de Rosny Smarth renunciou. O Conselho Eleitoral implodiu em várias etapas. A dissidência reunida na OPL jogou alto. Queria um aliado como chefe do governo (e a garantia de controlar pelo menos seis ministérios). Acabou se contentando com Jacques-Edouard Alexis, ministro da Educação do governo anterior, de reconhecida competência, empossado em janeiro de 1999. Seu programa não foi aprovado até hoje pelas Câmaras. É a este coma institucional que os eleitores trouxeram o medicamento.
A OPL paga por seus erros de análise. Tão logo restabelecida, a democracia trouxe aos miseráveis um aumento de dignidade e o desaparecimento de um câncer chamado exército. É muito e é pouco. Nem se tem o direito à sobrevivência. A democracia, que se confunde em seus espíritos com a exigência de justiça, está muito distante da luta parlamentar de uma classe política individualista. Ao diabolizá-lo, a oposição esperava matar “o padre”, Jean-Bertrand Aristide. [7] Mas foi ela que a população de Jalousie marginalizou.
Dependência de especuladores financeiros
Mesmo que Aristide tenha se isolado em sua residência de Tabarre, privilegiando as relações com os Estados Unidos — a ajuda externa ao desenvolvimento é indispensável, mas essa não é a única saída —, mesmo que ele tenha feito alianças pouco compreensíveis com setores do exército e com alguns empresários, [8] continua uma figura indispensável e, salvo um atentado, será presidente daqui a alguns meses. Mas 2000 é, de acordo com a Constituição, seu último mandato possível: “Nós estamos jogamos a nossa última cartada” diz ele.
Que esperar dessa cartada, num país com tantas deficiências? O programa de Fanmi Lavalas está cheio de boas intenções, mas é vago, sem escolhas claras entre as múltiplas prioridades. Investir no Humano: [9] o título promete, mas o conteúdo menospreza a fragilidade de um país debilitado numa economia globalizada e a sua extrema dependência dos especuladores financeiros. Não há vestígios de recursos minerais, a agricultura é insuficiente para um país superpovoado, a oligarquia não reinveste na ilha o dinheiro enviado pelos dois milhões de exilados aos oito milhões de habitantes e acaba na mão de uma dúzia de monopólios privados que se perpetuam.
Chega a hora da bajulação
É necessária muita determinação para que toda criança encontre uma vaga na escola. As massas rurais reivindicam estradas e eletricidade, assim como água. Porto Príncipe vive à beira da asfixia. A insegurança avança. A criação de dezenas de milhares de empregos nos serviços públicos poderia aproximar o país da exigência defendida pelo Lavalas em 1990: garantir a cada haitiano uma verdadeira refeição por dia. Os grandes burgueses de Pétionville aceitariam que suas empregadas e seus motoristas (que moram em Jalousie) também tivessem esses direitos?
“Durante uma reunião ocorrida em Rockville (Estados Unidos) 48 horas após as eleições, a representação do Instituto Republicano Internacional (IRI, ligado ao Partido Republicano) manifestou sua decepção diante da fraca capacidade de mobilização da oposição haitiana”. [10] O IRI a apoiou e agora não está longe de a considerar obsoleta. Entretanto, nem Fanmi Lavalas, nem seus eleitos têm sozinhos condições para construir um Estado, mínimo que seja. E sobretudo não o têm os novos “aristidistas” do dia seguinte, que acorrem, em grande número, para garantir a vitória