Uma imprensa em crise
A imprensa valã é maior e de capital familiar. A imprensa flamenga é mais jovem e contestadora. Ambas estão cada vez mais despolitizadas, não se adaptam aos novos leitores e sofrem com uma queda sem precedentes na circulação de seus jornaisAdrien Gonthier
Apesar da Bélgica ser um pequeno país, sua imprensa diária está longe de ser homogênea, como mostra o tratamento que os jornais flamengos e francófonos reservam ao Vlaams Blok. “No Sul, ele se limitam a relatar acontecimentos ligados à extrema-direita”, explica Marc Lits, diretor do Observatório da Narrativa Midiática da Universidade Católica de Louvain (UCL). “O cordão sanitário que lhe foi imposto no âmbito político é respeitado pela mídia”. Em Flandres, ao contrário, “a mídia respeita o princípio do cordão sanitário político – sem omitir o questionamento sobre sua pertinência – mas os representantes do Vlaams Blok são cada vez mais convidados a se manifestarem conforme os êxitos eleitorais do partido”, acrescenta Els De Bens, professor de jornalismo na Universidade de Gand (RUG).
O último exemplo: a atitude da televisão pública flamenga (VRT1). Após um escândalo financeiro na cidade de Antuérpia, ela convidou o líder do Blok, Filip Dewinter para seu programa de domingo de manhã. Os outros partidos recusaram-se a participar do debate. Dois “moderados” acompanhavam o representante do partido de extrema-direita para “contrabalançar (sua) opinião”. Para o chefe do departamento de informação de rede, que se opõe à idéia de um “cordão sanitário” jornalístico, os representantes do partido de extrema-direita “são convidados como outros” e era natural convidar um representante do Blok para abordar um assunto do dia2… Nenhum vestígio de uma abordagem semelhante ao sul da fronteira lingüística onde, é verdade, a extrema-direita tem poucos votos.
Diferenças de momento histórico
Por razões históricas e culturais, a imprensa francófona tem mais jornais que a imprensa flamenga, cujo conteúdo é mais impertinente e investigador
Essa diferença de tratamento concedida à esfera de influência da extrema-direita remete – para além dos aspectos políticos e culturais – a concepções de mídia radicalmente diferentes, elas próprias induzidas por evoluções históricas diferentes. Aparentemente, deve-se evitar estudar a imprensa diária belga como um objeto único, ainda que seus dois mercados se caracterizem por dimensões reduzidas e uma forte concentração3. Correndo o risco de caricaturar, digamos que a imprensa nacional não existe mais e que nenhum jornal se pode orgulhar, atualmente, de ter um público significativo na outra comunidade. A imprensa flamenga oferece, além disso, um conteúdo mais impertinente, menos consensual e mais investigador que sua colega francófona.
Ao estudar as raízes históricas da imprensa belga, constatam-se as diferenças. “Os diários francófonos nasceram mais cedo (no início do século 19), na fase artesanal da imprensa, o que propiciou uma proliferação de títulos”, esclarece José-Manuel Nobre-Correia, professor de Jornalismo na Universidade Livre de Bruxelas (ULB). “Não foi esse o caso da Flandres, onde os jornais surgiram durante a fase de industrialização da imprensa. Seu aparecimento está ligado ao despertar do movimento nacional flamengo e seu lançamento exigiu investimentos consideráveis, o que já pressupunha uma gestão diferente da empresa.” Fatores culturais também pesaram: o sub-regionalismo valão certamente favoreceu a criação de diários. Desse modo, no final de 2002, a parte francófona do país contava (incluindo Grenz Echo, o único jornal germanófono belga, do qual o grupo Rossel detém 50% das ações) com 16 jornais editados por quatro grupos para um mercado de 4 milhões de habitantes; Flandres tinha uma dezena de diários, igualmente editados por quatro grupos, para um mercado de 6 milhões de habitantes.
Fronteiras ideológicas atenuadas
Apesar das diferenças empresariais, as imprensas francófona e flamenga são igualmente despolitizadas, com fronteiras ideológicas atenuadas
Essa inesperada evolução ainda se reflete, nos dias de hoje, na estrutura acionária dos grupos de imprensa. Na Bélgica francófona, ainda existem muitos acionistas familiares4. Apenas a Editeco (editora do jornal de economia e finanças L?Echo) e a editora regional Mediabel (Vers L? Avenir5) são controladas por capitais industriais e/ou financeiros. Já em Flandres as negociações foram organizadas segundo princípios capitalistas desde a década de 70, especialmente com a tomada de controle do grupo De Standaard (atualmente rebatizado VUM), falido, por empresas de um empresário flamengo, André Leysen6. O grupo regional e familiar flamengo Concentra também tem cotação na Bolsa de Valores há alguns anos, perspectiva para a qual se prepara o Persgroep, o império da família de Christian Van Thillo. A organização deste último grupo baseia-se em sinergias de custos elevados ao extremo, a convergência dos conteúdos através de diferentes meios de divulgação publicitários e um marketing agressivo e permanente. Além dos jornais Het Laaste Nieuws, De Nieuwe Gazet e De Morgen, o Persgroep controla 50% da rede de televisão flamenga privada VTM, sem esquecer uma série de revistas e ainda a metade do capital… de um parque de diversões.
Do lado francófono, esses processo não avançaram tanto, pelo menos não com a mesma intensidade: “Atualmente, os grupo de imprensa (francófonos) permanecem majoritariamente familiares, com todas as conseqüências disso: uma sub-capitalização que impede, muitas vezes, investimentos pesados e uma gestão em que os critérios de competência não são prioritários”, observa Nobre-Correia7.
Apesar dessas diferenças consideráveis, a imprensa francófona e a imprensa flamenga apresentam algumas semelhanças. Entre elas, a despolitização. Devido aos movimentos de concentração das últimas décadas, a imprensa belga, na realidade, despolitizou-se bastante. Atualmente, nenhum grupo de imprensa pertence mais a organizações sindicais ou a partidos políticos (embora a organização patronal flamenga VEV controle quase a metade do capital do jornal de economia flamengo De Financieel-Economische Tijd), uma evolução que se explica, sem dúvida, também pelo contexto mais geral da perda de valores e de modificações de estilos de vida8. A retomada do jornal progressista De Morgen pela editora liberal De Persgroep ilustra bem essa atenuação progressiva das fronteiras ideológicas9. Uma tendência à despolitização que encontramos igualmente no desaparecimento, na primavera de 2001, do diário Le Matin, fruto da fusão de vários títulos francófonos de esquerda: atualmente, não se encontra nenhum título progressista na Valônia, ainda que seja dominada pelo Partido Socialista (PS)…
Declínio da circulação dos jornais
Mesmo com esforço das editoras para renovar seus produtos, fatores estruturais e conjunturais levam ao declínio da circulação paga dos jornais belgas
Alguns pesquisadores pensam, entretanto, que essa despolitização é apenas uma ilusão. “Cita-se o fim das ideologias para explicar o fenômeno de despolitização, mas na realidade é uma ideologia dominante – a princípio econômica, mas também política – que se impôs. A mídia belga está sob o controle de uma elite, de uma classe dominante da qual podemos desenhar o contorno, os atores, as redes”, sugere Geoffrey Geuens, pesquisador em Informação e Comunicação na Universidade de Liège (ULG10). E o professor De Bens pergunta-se em que medida os jornalistas podem, atualmente, ampliar sua função de “cães de guarda” do campo político para o campo financeiro e econômico11.
Apesar dos esforços de renovação de seu “produto” (mudanças de formato e/ou de paginação, encartes etc.), as editoras belgas têm que enfrentar, assim como seus colegas franceses e estrangeiros, o declínio da circulação paga de seus jornais. No final de 2002, ela caiu para menos de 1,5 milhões de exemplares, ou seja, 100 mil a menos do que dez anos atrás. O que está em questão é a erosão de uns 15% na difusão paga dos jornais francófonos, pois os diários flamengos resistem melhor em termos globais12. Esse declínio não está somente ligado a fatores estruturais – entre os quais o descontentamento dos leitores e os investimentos das editoras em suas gráficas mais do que na qualidade de suas redações -, mas também conjunturais, tais como a falência da Sabena, companhia aérea belga.
Falta uma análise apurada dos leitores
Muitos jornais não conseguiram se modernizar suficientemente e não respondem mais às necessidades dos leitores – especialmente às dos muitos imigrantes
Na Bélgica francófona, o desaparecimento do principal jornal (Le soir, editado pela Rossel) é prova do mal-estar geral. Em cinco anos, a circulação paga do jornal de Bruxelas despencou mais de 25%! A Sud Presse, pólo regional do grupo Rossel, segue a mesma curva descendente e prepara-se para uma nova reestruturação. Uma solução já sugerida (e nunca totalmente excluída), seria a fusão da Sud Presse com o grupo regional valão Vers l?Avenir/Mediabel, o que representaria complementaridades geográficas evidentes, que se traduziriam em uma perigosa situação de monopólio da nova entidade na região da Valônia.
Enfrentando o recuo de vendas e a queda dos investimentos publicitários, a imprensa diária belga atravessa uma etapa crítica, a ponto de ver alguns de seus componentes desaparecerem. Muitos jornais, na realidade, não conseguiram se modernizar suficientemente e não respondem mais às necessidades dos leitores – especialmente às dos muitos imigrantes e outros expatriados que se fixaram no país em função do papel da Bélgica no âmbito da União Européia e da Aliança Atlântica. Como sair desse círculo vicioso? Por falta de solução milagrosa, muitos elementos poderiam contribuir para melhorar a situação: investimentos suplementares nas redações – com o objetivo de aumentar a qualidade e diminuir os custos em relação à mídia de massa – e uma análise mais apurada dos leitores e de suas expectativas parecem indispensáveis.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Seu conselho de administração tem dois administradores (em um total de 12) escolhidos pelo grupo de parlamentares do Vlaams Blok no Parlamento regional Flamengo. Isso não ocorre do lado francófono.
2 – “Le Blok, invité “naturel” de la VRT”, La Libre Belgique, 17 mars 2003.
3 – De cada lado da fronteira lingüística, quatro editores dominam, de maneira oligárquica, seu mercado: VUM, Persgroep, Concentra e Uitgeversbedrijf Tijd, no Norte do país. Rossel, IPM, Vers, L?Avenir/Mediabel e Editeco na Bélgica francófona. Jean-François Dumont, Benoît Grevisse, Gabriel Ringlet, La presse écrite en Belgique. Editions Kluwer, segunda edição, 2001.
4 – A família Hurbain detem 60 % de Rossel (notadamente editor de Soir ) e a Socpresse (grupo Hersant) 40 %. O grupo IPM, editor de La Libre Belgique e da La Dernière Heure/Les Sports, é completamente controlado pela família Le Hodey.
5 – Controlado pelo editor flamengo VUM, ele apresenta a particularidade de ser parcialmente propriedade do arcebispado de Namur (25,1 %) e pelo de Luxembourgo (através da gráfica Saint-Paul, com 16 %).
6 – VUM é o único grupo que ultrapassou a fronteira lingüística, assumindo uma participação no controle do grupo regional valão Madiabel/Vers L?Avenir Rossel, por sua vez, acaba de aumentar sua cota para 49%, no jornal gratuito Metro, que aparece tanto em flamengo quanto em francês.
7 – “L?aveuglement”, Trends Tendances, Bruxelas, 13 de setembro de 2001.
8 – Ler também Serge Govaert, “Les “piliers” de la Belgique vacillent”, Le Monde diplomatique, março 2001. A propósito assinalamos o desaparecimento progressivo, na primeira página do jornal católico flamengo De Standaard, da sigla AVV-VVK (Alles voor Vlaanderen/Vlaanderen voor Kristus – Todos pela Flandres/ A Flandres para Cristo)…
9 – Jean-François Dumont?, op. cit. O Persgroep, contudo, passou ao largo, por duas vezes, da compra dos jornais católicos flamengos o que tende a demonstrar que as resistências existem.
10 – Ver so