Uma investigação indispensável
Desde o mês de junho, um grupo de parlamentares europeus vem tentando conseguir que seja aberta uma investigação internacional para apurar o massacre de combatentes afegãos em Mazar-e-Sharif, com a possível cumplicidade de tropas norte-americanasLaurence Jourdan
“Os depoimentos e elementos presumidos que constam do documentário de Jamie Doran bastam para legitimar a abertura de uma investigação internacional sobre as valas comuns da região de Mazar-e-Sharif.” Com o objetivo de conseguir a abertura da investigação sobre acusações de massacre e de tortura que pesam sobre combatentes afegãos da Aliança do Norte com a cumplicidade de soldados norte-americanos, Andy Mc Entee, ex-presidente da Anistia Internacional, assistiu à projeção da pré-montagem de 20 minutos apresentada pelo diretor inglês no Parlamento Europeu, no dia 12 de junho de 2002, em Estrasburgo. Ao final da sessão, convocada pelo grupo da Esquerda Unitária Européia, seu presidente, Francis Wurtz, sugeriu “pedir, em nome do Parlamento Europeu, ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR) e à ONU que realizem uma missão de investigação e proteção dos locais”. Como os democrata-cristãos e os social-democratas “se opuseram a uma reação emocional”, Wurtz deseja conseguir um debate em caráter de urgência neste outono.
Em nome de seu grupo, dirigiu-se ao CICR e à ONU para chamar a atenção sobre a necessidade de se abrir uma investigação rapidamente. Entrevistado, um porta-voz do CICR, Kim Gordon-Bates, esclareceu-nos, no dia 8 de julho, que o CICR havia respondido que, com certeza, não participaria dessa investigação: “Nossa principal missão é a de assistir as vítimas de guerra, os sobreviventes e as famílias de desaparecidos. Tememos que nossa participação numa investigação tenha uma conseqüência negativa para o acesso do CICR às pessoas.” Em nome do respeito pelas regras de confidência e de neutralidade exigidas, a ONU confirmou que o CICR não deve testemunhar perante um tribunal.
Iniciativas ineficazes
A ONG norte-americana Physicians for Human Rights publicou um Relatório Preliminar sobre as Presumidas Valas Comuns na Região de Mazar-e-Sharif
Como Francis Wurtz não obteve, até o final de julho, resposta de Mary Robinson, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (OHCHR), colocamos a questão à ONU em Genebra: “Não deveria haver anistia para crimes de guerra ou para crimes contra a humanidade […]. O principal responsável pela investigação desses crimes é o Estado envolvido. Não temos dúvida quanto à sinceridade do Estado afegão em responder pelas violações passadas.” Em contrapartida, nenhuma alusão ao outro Estado envolvido, os Estados Unidos…
Na pista das valas comuns desde janeiro de 2002, quando fazia uma inspeção sobre as condições de detenção na prisão de Sheberghan, a ONG norte-americana Physicians for Human Rights (PHR) publicou, em maio, um relatório preliminar sobre as presumidas valas comuns na região de Mazar-e-Sharif (Rapport préliminaire sur les charniers présumés de la région de Mazar-e-Sharif), em que fazia apelo à comunidade internacional e às autoridades afegãs para que protegessem os locais onde os crimes teriam ocorrido.
John Heffernan, co-autor do relatório, afirma: “As tentativas que fizemos, por meio de correspondência, junto a Hamid Karzaï e Donald Rumsfeld para que fossem protegidos os locais das valas comuns foram em vão.” As iniciativas tomadas posteriormente junto aos governos norte-americano e britânico não resultaram em quaisquer garantias. A ONU, em compensação, atesta que “os locais são vigiados regularmente para proteger as provas, enquanto se aguardam decisões que serão tomadas pela justiça transitória – quer seja uma investigação criminal, uma comissão de inquérito ou um misto das duas”.
“Não encontramos qualquer prova…”
Investigadores da ONU exumaram 15 corpos no local do presumido massacre e concluíram, ao final de três autópsias, que houve “morte por asfixia”
Depois da publicação do relatório da PHR, investigadores da ONU procederam, em maio de 2002, à exumação de quinze corpos no deserto de Dasht-e Leili (local do presumido massacre) e concluíram, ao final de três autópsias, que houve “morte por asfixia”. No dia 11 de julho, mediante rumores sobre a depredação dos locais, uma equipe da PHR foi novamente até ali para constatar que “as causas dessa degradação [eram] naturais (vento, animais que se alimentam de carniça) e que restos humanos continuavam visíveis”.
Andy Mc Entee se surpreende que os norte-americanos não tenham aberto uma investigação oficial, como fizeram no caso do bombardeio de um vilarejo na noite de 30 de junho para 1o de julho último – que fez 48 mortos e 118 feridos entre os aldeões de Kakrakai que celebravam um casamento (leia, nesta edição, nota sobre o relatório das Nações Unidas). Segundo Marc Herold, professor na Universidade de New Hampshire, o número de civis mortos entre outubro e dezembro de 2001 no Afeganistão se situaria entre 2.650 e 2.9701.
Na ausência de uma investigação, o Pentágono desmentiu oficialmente as acusações feitas pelas testemunhas do filme de Jamie Doran: “As alegações surgiram quando foram encontradas valas comuns perto da prisão de Mazar-e-Sharif, em fevereiro… Nós as examinamos e não encontramos qualquer prova de que militares norte-americanos tenham participado ou tenham tido conhecimento deste tipo de atrocidades2“.
Newsweek rompe o silêncio
Na ausência de uma investigação concreta, o Pentágono desmentiu oficialmente as acusações feitas pelas testemunhas do documentário de Jamie Doran
Como lembra a Physicians for Human Rights – que esclarece não ter prova alguma do envolvimento norte-americano nessas atrocidades – a campanha de Kunduz, que terminou com a rendição dos talibans, foi feita com a participação dos Estados Unidos. Por conseqüência, eles “não podem lavar as mãos da responsabilidade que tinham no que diz respeito ao tratamento dado aos prisioneiros”, ainda que Washington considere que, de acordo com a convenção de Genebra, os prisioneiros talibans e os presos da Al Qaida não se beneficiam do estatuto de prisioneiros de guerra.
Considerando que “nem tudo é possível, em nome do antiterrorismo” e para “impedir que se enterre a informação e não se obtenham elementos de esclarecimento que permitam argumentar em favor da abertura de uma investigação”, a Esquerda Unitária Européia decidiu enviar uma delegação de cinco parlamentares de diferentes partidos ao Afeganistão, em setembro. Francis Wurtz deseja que membros do Congresso norte-americano se juntem ao pedido de abertura de uma investigação.
Até aqui um tabu nos meios de comunicação norte-americanos, a questão da responsabilidade dos Estados Unidos acaba de ser levantada pelo semanário Newsweek3 – que esclarece, no entanto, que nada permite fazer acusações sobre a participação de soldados norte-americanos no que se pode considerar um “crime de guerra”. Por outro lado, a revista informa que existe um relatório confidencial da ONU segundo o qual os fatos revelados seriam suficientes para “justificar uma investigação criminal oficial”.
Foram necessários quatro anos para que a ONU apresentasse um relatório oficial sobre as circunstâncias da queda do enclave de Srebrenica, em julho de 1995, na Bósnia, e sobre os massacres que se seguiram. No caso de Mazar-e-Sharif, a comunidade internacional se mostrará mais rápida?
(Trad.: Fabio de Castro)