Uma literatura claustrofóbica
De 1973 a 1983, o Chile viveu a década do ’apagón’ cultural. Toque de recolher e estado de sítio permitiram à ditadura esconder os crimes e os fantasmas que, 30 anos mais tarde, ainda assombram o imaginário coletivo da literatura chilena
Estranha coincidência. Trinta anos depois do golpe de Estado e do desaparecimento do poeta e prêmio Nobel de Literatura, Pablo Neruda, a voz mais poderosa e mais influente da literatura chilena e latino-americana desses últimos anos, Roberto Bolaño, acaba de nos deixar para ir encontrar sua Etoile distante1.
“Neste país de latifundiários, a literatura é uma extravagância e saber ler não é nenhum mérito”, escrevia ele em seu romance mais sóbrio e ácido, Nocturne du Chili2. Extravagância, mas também orgulho nacional. A literatura sempre ocupou um lugar importante na vida política e social do Chile. Dois prêmios Nobel (Gabriela Mistral e Pablo Neruda), dezenas de escritores talentosos, dos quais muitos conseguiram atrair um público leitor além dos Andes (Vincente Huidobro, Francisco Coloane, José Donoso, Antonio Skarmeta, Isabel Allende). Foi também esta realidade que o general Pinochet e seus acólitos quiseram combater.
Uma opinião obediente e submissa
Como a ditadura foi denunciada principalmente por suas violações dos direitos humanos, sua vontade de destruir os valores sócio-culturais chilenos ficou em segundo plano. No entanto, desde o 11 de setembro de 1973, a Junta Militar martelava através das rádios os 41 decretos impondo o novo quadro cultural. O decreto 26 determinava “a ocupação e a destruição” da editora estatal Quimantu. “Era o símbolo da democratização através da cultura”, enfatiza Camilo Marks, autor de La dictadura del proletariado. “Seu fechamento marcou o início do desaparecimento de inúmeras editoras, livrarias, e do desmantelamento do sistema educacional no Chile, substituído por um sistema perverso e excludente, onde qualquer expressão literária e artística era considerada subversiva”. Queimaram-se grandes quantidades de livros e sua circulação foi submetida a restrições muito severas até julho de 1983. O Chile viveu, então, uma década chamada de “apagão cultural” (apagón cultural)3.
“Há três décadas, quando eu tinha 12 anos, meu pai me comprava vários livros por semana”, conta Jaime Collyer, nascido em 1955, autor de contos e grande romancista de obra difícil, como demonstram El Infiltrado4 e El habitante del cielo. “A oferta era surpreendente. Comprava-se sem olhar para o preço. Escolhia-se por instinto. Hoje, não há oferta, não há instinto. O famoso ?apagão? traduziu-se numa atitude de imitação sem discernimento por parte dos leitores. A opinião tornou-se obediente e submissa, e isto é muito difícil de superar. Não há opinião autônoma ou, então, ela é isolada.”
Uma literatura claustrofóbica, opressiva
Desde o dia 11 de setembro de 1973, a Junta Militar martelava através das rádios os 41 decretos impondo o novo quadro cultural. Começava o apagón…
Toque de recolher e estado de sítio permitiram à ditadura esconder os crimes e os fantasmas que, 30 anos mais tarde, ainda assombrariam o imaginário coletivo literário: “Naquela época, mais ou menos todo mundo tinha pesadelo uma vez ou outra. [?] Eu tentava escrever poesia. No início, só me vinham iambos5. Em seguida, [?] minha poesia, geralmente angelical, transformou-se em poesia demoníaca […], ela estava furiosa”, diz Sébastien, personagem de Nocturne de Chili.
A sociedade chilena ficou isolada, profundamente desinformada e dispersa entre seus exilados. Os livros circulavam às escondidas. Apenas revistas efêmeras eram publicadas, alguns encontros artísticos sendo organizados, clandestinamente, em homenagem a Victor Jara ? assassinado no Estádio do Chile ? e a Violeta Parra, duas figuras emblemáticas do Canto Nuevo latino-americano e da poesia popular chilena. Essa “cultura da morte” começou a se abrir em 1983: as primeiras manifestações contra a ditadura e, sob pressão externa, a volta de exilados, dentre os quais muitos escritores.
Evocando aqueles anos, Jaime Collyer considera que a ditadura deixou uma herança terrível: “Hoje, a literatura chilena tornou-se claustrofóbica. Opressiva. Desanimadora. É difícil escapar a isso. É um desafio estético que Roberto Bolaño enfrentou abrindo o caminho. Sua luz irrigava a literatura”. Ponto de vista partilhado pelas jovens romancistas Alejandra Costamagna (nascida em 1970) e Nona Fernández (1971), bem como pelo poeta Germán Carrasco (1971).
Escapando à herança da ditadura
“O golpe de Estado provocou uma metamorfose em nosso imaginário coletivo”, afirma Alejandra Costamagna. “Nós nascemos sob a bota de um pai. Sempre embaixo do toque de recolher, como que guardados numa creche. Tudo isso se transformou em raiva e o desmembramento da família tornou-se a metáfora do país. Tendo, como conseqüência, a fragmentação dos relatos. Somos obrigados a reescrever a tragédia, como fugir disso! Mas com uma real exigência formal. Reescrever a dor, a morte, os crimes, os desaparecidos, as mentiras, a traição que se cruzam nos textos de nossa geração e em todos os outros.” Em seu terceiro romance, Cansada ya del sol, a memória aparece como um entreposto onde se empilham todos os dejetos. “A memória é sem limite. O desespero e a dor são o único limite humano”, dizia Roberto Bolaño.
Queimaram-se grandes quantidades de livros e sua circulação foi submetida a restrições muito severas até julho de 1983
Mapocho, de Nona Fernández, tem a mesma inspiração. Mapocho, rio triste e sujo que atravessa Santiago, arrastando em sua esteira a herança dos mortos e os intermináveis embustes para os dissimular. “Eu vejo passarem pneus, galhos, uma caixa que parece um esquife e que navega nas ondas do Mapocho. Dentro jaz o corpo de uma mulher com os olhos abertos. Tem cabelos claros como os meus e ela me olha, tenho certeza disso. Qual é mesmo o lugar?”, nos interpela Rucia, a personagem do romance.
Em El habitante del cielo, de Jaime Collyer, Nagy é o símbolo da transcendência e do desejo de inovar. Húngaro, obcecado pela idéia de voar, faz disso seu ofício. Metáfora do ofício de escritor: construir uma máquina de voar na solidão de um sótão e fracassar, mais uma vez, no momento da decolagem. Nesse romance, ele realizou o trabalho estético que permite escapar da herança claustrofóbica da ditadura.
O direito inalienável de protestar
Durante a gestação desses livros, outros continuavam a alimentar o imaginário. Muitas obras em prosa – mas a poesia também esteve muito presente. Nicanor Parra (1914) – irmão de Violeta e previsto várias vezes para o prêmio Nobel de Literatura – criador da “Antipoesia” e detrator obstinado da figura hegemônica e esmagadora de Pablo Neruda, desempenhou um papel fundamental. “Enrique Lihn, Jorge Teillier, Raul Zurita, todos nós nos alimentamos da poesia de Nicanor Parra, até Roberto Bolaño. Ela foi um antídoto à contaminação da linguagem e da literatura pela ditadura”, explica Germán Carrasco (1971), autor de Calas, um terceiro livro recebido com enorme entusiasmo pela poesia chilena atual.
Carlos Franz (1959), autor de El lugar donde estuvo el paraíso, declarava em 1997: “A privatização brutal da economia chilena, realizada pela ditadura, traduziu-se, no campo da literatura, pela privatização do relato nacional. Mas a penúria e o rigor foram muito formadores. O drama histórico, longe de marcar um apagão, foi o grande pavio ligado ao barril de pólvora da imaginação”. Na década de 90, marcada pelo renascimento das editoras independentes – em especial Lom, Dolmen e Cuarto Propio -, inúmeros livros começaram a ser publicados. Alguns escritores escolheram inserir seu trabalho literário numa iniciativa política: denunciar os anos negros da ditadura. Outros preferiram lutar contra o sistema afirmando sua própria liberdade criativa. Roberto Bolaño reivindica esta segunda opção. Sempre defendeu que o engajamento do escritor não era com a história, mas sim com a literatura. “Se é verdade que a política e a literatura são inseparáveis, a literatura é meu jeito de fazer política; ou, mais exatamente, fazer literatura é exercer meu direito inalienável de protestar, num espaço em que não há nenhum lugar para a concessão.”
O desmoronamento dos discursos
A “cultura da morte” começou a se abrir em 1983, com as primeiras manifestações contra a ditadura e a volta de exilados, dentre os quais muitos escritores
Autores como Ramón Díaz Eterovic6, Luis Sepúlveda, Poli Délano, Mauricio Electorat7 e Alejandra Rojas, entre outros, optaram pelo gênero do romance policial. Este apresenta características ideais para narrar as injustiças, os medos, a corrupção. Ramón Díaz Eterovic criou o personagem – presente em todos os seus livros – de um anti-herói sem fé, Heredia, observador sem concessões da realidade. Em seu romance Nadie sabe más que los muertos, Heredia, detetive privado, é encarregado de procurar o filho de presos desaparecidos. Sua investigação o leva até o juiz Cavens, que está impossibilitado de exercer a justiça por estar, ele próprio, envolvido nos fatos. Considerado como uma das melhores contribuições ao romance policial, o personagem Heredia narra a transformação moral de um país demolido por seu trauma e incapaz de verbalizá-lo. Quem não sentiu no Chile, sem saber por que, olhos fixos em suas costas?
Depois de La desesperanza8, descrita por José Donoso (1924-1996), alguns escritores abordaram a questão das relações entre linguagem e poder. Cynthia Rimsky (1962), autora de Poste restante, um diário de viagem, lança um olhar à distância construído a partir do desmoronamento dos discursos. “Falo dos discursos que nos mantiveram em pé sob a ditadura, do relato da grande utopia que as gerações anteriores nos transmitiram, a nós que não vivemos a Unidade Popular. Mas nós lutamos para derrubar a ditadura e recolocar essas gerações precedentes no poder. E quando elas exerceram o poder, não tivemos mais liberdade para escrever”. A voz que não “recebe do poder um atestado de boa conduta” não tem mais espaço para construir seu discurso. “Eu trabalho com os pedaços de estômago que sobraram nas salas de operação.”
Fantasmas e pesadelos de Pinochet
Na década de 90, alguns escritores optaram por inserir em seu trabalho literário uma iniciativa política: a denúncia dos anos negros da ditadura
Autor de crônicas e de romances, Pedro Lemebel é hoje reconhecido como uma voz excepcional após haver atravessado períodos difíceis. Em setembro de 1986, ainda sob a ditadura, dirigiu-se à esquerda chilena através de um manifesto intitulado “Falo em nome de minha diferença”: “Minha virilidade, não a recebi do Partido / Porque me rejeitaram com risinhos no canto da boca / Inúmeras vezes / Minha virilidade, eu a aprendi participando”. Escritor que não se deixa classificar, perturbador, brilhante e provocador, homossexual e travesti, Lemebel nunca foi aceito por uma sociedade fechada em suas convenções, inclusive à esquerda. Com suas performances – realizadas pelo grupo de arte independente “As bestas do Apocalipse”, criado por ele em 1987 – foi, no entanto, um dos primeiros artistas a despertar a sociedade chilena a sair de seu apagão cultural.
Seu romance Tengo miedo torero9, título extraído de uma antiga canção que enfatiza a interioridade de um país que, segundo Lemebel, “sonha muito pouco, sonha a prestações, não sonha mais o impossível”, conta a história de um amor proibido entre um jovem revolucionário e um homossexual na Santiago de 1986. Ano do fracassado atentado contra o general Pinochet. Ano “decisivo”, mas que não o foi. Vêem-se as manifestações e escutam-se os boleros e as rancheras da época. Pinochet, na intimidade, está em vias de se debater com seus fantasmas e seus pesadelos. Lucia, sua esposa, está enfeitiçada pelos últimos modelos de Nina Ricci. A “Louca”, testemunha e protagonista, personagem carnavalesca e fascinante, é o elo entre o sonho e o infortúnio.
Encontram-se esses estranhos ambientes nas reuniões literárias organizadas por Maria Canales, personagem de Nocturne du Chili. Durante essas recepções mundanas, no porão cometem-se crimes horríveis: “Num estrado de cama, havia um homem nu, amarrado pelos punhos e tornozelos. Parecia adormecido, mas é difícil confirmar essa observação porque uma venda lhe cobria os olhos”. Mas Maria Canales quer se tornar escritora: “É desse modo que se faz literatura no Chile”. Sébastien, o personagem central do romance, acrescenta: “Não só no Chile, mas também na Argentina e no México, na Guatemala e no Uruguai. Ou aquilo que, para não cair na lata de lixo, chamamos de literatura.”
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Roberto Bolaño faleceu aos 50 anos, no dia 15 de julho, em Barcelona, esperando um transplante de fígado; autor de Etoile distante, ed. Christian Bourgois, Paris, 2003.
2 – Ler, de Roberto Bolaño, Nocturne du Chili, ed. Christian Bourgois, Paris 2002.
3 – Apagón: literalmente, corte de corrente elétrica. Aqui, “extinção cultural”.
4 – El Infiltrado, Série Noire, ed. Gallimard, Paris, 2001.
5 – Pé métrico de duas síl