Uma memória documentada
Uma exposição, com fotografias e cartões postais de linchamentos, confronta os Estados Unidos com uma página sombria de sua história. Seguida, infelizmente, por outras: de 1977 a 2000, foram executados 625 condenados à morteAnne Chaon
No dia 27 de fevereiro de 2000, com a sala do tribunal de Chattanooga lotada, o juiz Douglas A. Meyers retira a acusação de estupro contra Ed Johnson. Uma decisão que tanto honra a justiça norte-americana quanto a vítima: um jovem negro, que noventa e quatro anos antes fora linchado por uma multidão. Condenado à morte por um júri branco, ao final de um processo sumário, e autorizado em seguida pela Corte Suprema a apelar da decisão, Ed Johnson não teve tempo de fazer valer o seu direito: na noite do dia 19 de março de 1906, foi retirado de sua cela por brancos da cidade, arrastado pelas ruas até a ponte sobre o rio Tennessee, enforcado e depois crivado de balas.
Entre 1882 e 1968, 4.742 negros tiveram a mesma sorte — metade deles, nos Estados do Mississipi, Geórgia, Texas, Alabama e Luisiana, segundo estatísticas da Universidade de Tuskegee, Alabama.
A liturgia do macabro
Esse passado em preto e branco, que a América do Norte contemporânea não consegue digerir, ressurgiu brutalmente nos últimos meses em Nova York, com uma exposição de fotos e cartões postais sobre linchamentos cometidos entre 1883 e 1960, principalmente — mas não exclusivamente — nos Estados do Sul; assim como pela publicação de um livro dedicado ao tema, Without Sanctuary. [1] Cerca de sessenta retratos saídos dos porões da América do Norte e de seus álbuns de família exibem corpos supliciados, chicoteados, esfolados, mutilados, queimados vivos. E a multidão, sempre presente, posa radiante ou indiferente, aos pés dos enforcados, satisfeita com o dever cumprido. Caçadores de rostos descobertos, certos de sua impunidade. Cumplicidade dos fotógrafos, alertados pelo reboliço ou pela imprensa, que instalavam suas câmaras escuras nos próprios locais das execuções para mais rapidamente revelar as cópias. “Aqui está nosso churrasco de ontem à noite”, escreve um certo Joe aos seus pais no verso de um desses cartões, que mostra os restos calcinados de um enforcado de 17 anos em Robinson, Texas, em maio de 1916. O filho atencioso chegou mesmo a assinalar, “com uma cruz, à esquerda do cadafalso”, sua presença no meio da multidão.
Uma festa selvagem para os brancos do Sul, presos ao medo e ódio do “preto” recém-emancipado. Ás vezes, levam lembranças: fotos, uma mecha de cabelo, uma falange, um retalho de pele recortado de seu troféu. Uma noção de lei em que o racismo se reveste de sadismo e crueldade. A violência explode nos vinte anos que se seguem à emancipação (1863) de cerca de quatro milhões de escravos e ao fim da guerra civil, que deixa um Sul devastado e humilhado. Relativamente protegidos, até então, pelo investimento que representavam, os negros passam a ser percebidos como uma ameaça contra os fundamentos da sociedade branca. E o linchamento, como instrumento de controle pelo terror.
Em nome da raça branca
É, portanto, em nome da raça branca, da mulher branca, ameaçada pelos apetites descontrolados dos negros, que, da Flórida ao Texas, se mutila e se mata. A tradição sulista tende a ligar os linchamentos ao estupro e morte de mulheres brancas. Na verdade, linchavam-se também mulheres (noventa e duas de 1882 a 1927) e crianças, como testemunha a foto de Laura Nelson, enforcada em 1911 em uma ponte do rio Oklahoma, junto com seu filho de 14 anos, que tentava defender.
O público, escreve o historiador e professor Leon Litwack em Without Sanctuary, “não sente dificuldade alguma em justificar essas atrocidades, em nome da manutenção de uma ordem social e racial e da pureza da raça anglo-saxã.”
Bastava, em geral, que se ofendesse a supremacia branca: uma discussão, insultos, uma acusação contra um branco poderiam terminar no patíbulo. Como aconteceu com Rufus Moncrief, torturado e em seguida enforcado numa árvore, com o seu cachorro, por ter-se recusado a tirar o chapéu diante de um branco.
A cumplicidade policial
E se os brancos eram linchados, sobretudo nos Estados do Oeste — sendo assassinato e roubo de gado os principais motivos de acusação —, ao menos sua culpabilidade era comprovada antes, e com segurança, ressalta o historiador. Um estudo feito em 1933 [2] sobre cem linchamentos de negros estabeleceu que um terço das vítimas eram inocentes dos fatos que lhes haviam sido imputados. E que na metade dos casos a polícia participara ativamente da execução.
Ter ou não havido processo em nada mudava o caso. Por um lado, por se tratar geralmente de paródias de justiça, em que o acusado, de antemão condenado, comparecia diante de um júri só de brancos. Por outro lado, porque a multidão, pouco ligando para as sentenças proclamadas pelo tribunal (quando não se adiantava a elas) entendia fazer justiça por si própria, não hesitando em tirar o prisioneiro de sua cela, freqüentemente sob o olhar cúmplice do xerife. Fato que o juiz Meyers, de Chattanooga, relembrou quase um século mais tarde, ao inocentar Ed Johnson: “A comunidade branca precisava de um corpo negro, não necessariamente o da pessoa que havia cometido o crime.”
Os mais expostos, salienta o professor Litwak, são precisamente os negros que aspiram a uma condição melhor. Os que se educam, chegam a comprar uma chácara, um sítio, se envolvem na vida política. “Quando um negro tem idéias, o melhor a fazer é colocá-lo o mais rápido possível debaixo da terra,” professava em Washington um representante (deputado) do Mississipi.
A concorrência de ex-escravos
Dentro dessa ordem racial, as classes dirigentes e os rednecks (brancos de classe social inferior) são solidários. Se as primeiras dão mais mostra de compaixão, prossegue o historiador, é porque se sentem menos ameaçadas em seu status social e econômico do que os pequenos proprietários, fazendeiros ou trabalhadores do campo, que estão em concorrência direta no trabalho com os antigos escravos. Quando o preço do algodão desaba, aumenta o número de linchamentos.
Em 1877, depois da eleição do presidente republicano Rutherford B. Hayes, o Sul não tardou em substituir as leis generosas da reconstrução (1866-1875), destinadas a proteger os negros, por novas leis, que restringiam seus direitos e os relegavam ao status de cidadãos de segunda classe. “Os brancos não poderão mais viver neste país se deixarmos os negros ganharem importância”, explicava hipocritamente uma testemunha durante o processo contra um negro. Pouco a pouco, segregação e discriminação espalham-se por todos os Estados Unidos, primeiro nos antigos Estados confederados, onde reside mais de 80% da população negra. É o sistema “Jim Crow”, nome do personagem de uma comédia que põe em cena brancos disfarçados de negros para melhor os ridicularizar.
Ponto facultativo para o espetáculo da morte
No caso Ed Johnson, a Corte Suprema perseguiu e condenou o xerife que havia falhado em seu dever de proteção: foi a primeira e única vez em que a justiça federal interveio. Localmente, a justiça geralmente preferia concluir que os autores dos linchamentos eram “pessoas desconhecidas”, que no entanto não escondiam seus rostos nem identidades, registrados em cartões postais cujo encaminhamento o correio federal finalmente proibiu em 1908. Mas, quem condenar quando toda a comunidade é cúmplice e a imprensa enfatiza a “qualidade” dos linchadores, membros eminentes da sociedade local? “Em Paris, no Texas, representantes da lei entregaram o prisioneiro à multidão. O prefeito deu o dia livre aos estudantes e as ferrovias organizaram uma excursão para que o povo pudesse ver um ser humano queimado vivo”, testemunha, em 1900, a ativista Ida B. Wells, que saiu em cruzada contra “a lei sem nome”.
Mas Ida B. Wells logo não estaria tão só. A Associação Nacional pela Promoção de Pessoas de Cor (NAACP), fundada em 1909, torna-se ativa. Em maio de 1921, em Tulsa, no Estado de Oklahoma, um grupo de homens negros se rebela para proteger um engraxate acusado de estupro pela multidão, mas não pela suposta vítima branca. A tentativa de linchamento se transforma em motim e a Ku Klux Klan se precipita contra o quarteirão negro de Greenwood. O balanço oficial da época, 35 mortos, é hoje estabelecido em 300 (32 dos quais, brancos).
Linchamento, coisa de literatura
A partir de 1923, o número de linchamentos começa a declinar, nota Robert A. Gibson, da Universidade de Yale. No ano anterior, a Câmara de Representantes tentou em vão tornar fora da lei a prática, o Senado se opôs, mas os debates em torno do texto apresentado ao Congresso despertaram consciências. A elite exprime sua repulsa — sobretudo as mulheres, que fundam em 1930, em Atlanta, a Associação de Mulheres do Sul Contra o Linchamento —, a nascente imprensa negra faz uma campanha, à qual se unem grandes jornais como o Chicago Tribune. Mas, sobretudo, os negros deixam em massa os estados linchadores do Sul para chegarem ao Norte industrializado: de 1910 a 1920, mais de meio milhão faz as malas e nos anos 20 essas partidas prosseguem no ritmo de 70.000 por ano.
Uma nova onda de terror se abate sobre o Sul a partir do fim da década de 50, contra o Movimento de Direitos Civis — 21 militantes assassinados entre 1961 e 1965, sem que nenhum branco fosse condenado, nota Leon Litwak. A comunidade branca não adere mais a essas práticas, mas se esforça para esquecê-las. “Para a maioria dos americanos, os linchamentos pertencem quase à literatura”, explica James Allen, antiquário de Atlanta, que nos últimos quinze anos colecionou os documentos fotográficos de Without Sanctuary. “Não são coisas que se estudem na escola. Eu percebi que os visitantes não diferenciam entre o crime racista e o linchamento, sendo que este implica uma cumplicidade de toda a comunidade. Por sua vez, os afro-americanos puderam, com a exposição, construir uma imagem dos pesadelos que assombraram seus ancestrais.” Confrontada com sua “odiosa herança”, acredita ele, ” a sociedade norte-americana não deve ver essas fotos como uma coleção: elas pertencem realmente à nação”.
“Esses são os retratos de uma América obcecada por seus negros, obsessão compartilhada por negros e brancos”, julga por sua vez o escritor Hilton Als, colaborador da revista New Yorker. “Na minha vida citadina, escreve ele, [3] foram tantas as vezes em que mudei de calçada, durante a noite, para não assustar uma