Uma ONU refém de Washington
O argumento de legítima defesa contra o Iraque é injustificável. Não existe ameaça alguma plausível dirigida contra os Estados Unidos e nenhuma prova da ligação do regime iraquiano com a ameaça representada pela Al-QaidaRichard Falk
Nos Estados Unidos, o debate sobre a guerra contra o Iraque mal tocou na questão do direito internacional. Em seu discurso-chave, pronunciado na Escola Militar de West Point em 2 de junho de 2002, o presidente George W. Bush proclamou a existência de um direito à guerra preventiva, sem fazer o menor esforço para fundamentar pretensão tão abrangente na Carta das Nações Unidas ou em qualquer outra fonte de direito. O único argumento apresentado é que, no mundo do pós-11 de setembro, não é mais necessário esperar ser atacado, e que os esforços empreendidos pelo Iraque para ter armas de destruição maciça, acrescidos de supostas relações com terroristas internacionais, justificam amplamente a adoção pelos Estados Unidos da iniciativa da guerra.
Só quando esse unilateralismo provocou a reprovação de republicanos fiéis como o ex-conselheiro de segurança nacional Brent Scowcroft, e os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e James Baker, é que a Casa Branca adotou um multilateralismo de fachada.
A abrangência da legítima defesa
Bush proclamou o direito à guerra preventiva sem fazer o menor esforço para fundamentar pretensão tão abrangente em qualquer fonte de direito
Apesar dessa evolução, nenhum esforço foi feito para legitimar, aos olhos do direito internacional, o casus belli contra o Iraque. O senador Edward Kennedy destacou a existência de uma distinção entre guerra “preemptiva” e guerra “preventiva”. A validade jurídica de uma guerra “preemptiva” depende da existência de provas materiais que demonstrem a iminência do perigo e a necessidade de agir. A guerra preventiva se baseia, por outro lado, não no temor de uma agressão iminente, mas no medo mais remoto, na ameaça estratégica que o Iraque faria pesar sobre o mundo ou sobre os Estados Unidos.
Essa abordagem tem uma certa lógica. Representa um compromisso entre uma leitura estritamente legalista da Carta das Nações Unidas – que ataria as mãos de um Estado mesmo diante de um ataque iminente – e uma interpretação condescendente, segundo a qual um Estado poderia entrar em guerra todas as vezes que isto servisse a seus interesses.
Mas a principal controvérsia em relação ao Iraque incide sobre a extensão da noção de legítima defesa em direito internacional. Em geral, aborda-se essa questão à luz da Carta das Nações Unidas, que estipula uma proibição geral do emprego da força (Artigo 2-4), tendo como única exceção a legítima defesa (Artigo 51): “Nenhuma disposição da presente Carta atinge o direito natural de legítima defesa, individual ou coletiva, no caso de um membro das Nações Unidas ser objeto de uma agressão armada.” Desde a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, os juristas se dividem: uns argumentam a favor de uma interpretação restritiva: o Artigo 51 permitiria invocar a legítima defesa unicamente para responder a uma agressão militar. Os minimalistas, por outro lado, declaram a existência de um “direito inerente” à legítima defesa, direito que decorreria da soberania nacional, e ao qual só uma votação do Conselho de Segurança se poderia contrapor.
Medidas “razoavelmente necessárias”
A principal controvérsia em relação à guerra contra o Iraque incide sobre a extensão da noção de legítima defesa em direito internacional
Há aspectos válidos em ambos esses pontos de vista, mas é preciso não levá-los longe demais. A leitura restritiva corresponde à preocupação fundamental dos redatores da Carta em restringir, na medida do possível, o poder discricionário dos Estados, e tornar excepcional o recurso à legítima defesa, submetendo-a a condições com critérios objetivos, como a existência de um prévio ataque militar. Essa interpretação, aliás, é coerente com a longa história dos esforços tendentes a proibir o recurso à força armada, mas admite, num mundo de nações soberanas, a manutenção de um direito à autodefesa. Quanto aos minimalistas, eles compreenderam que o direito internacional seria inoperante se proibisse os Estados de adotarem, sem nuances, medidas “razoavelmente necessárias”, em caso de ameaças graves e imprevistas que não tivessem a forma de uma agressão militar.
O terrorismo em grande escala, organizado a partir de um país estrangeiro, mas sem a participação direta do governo desse país, entra nessa categoria de agressão. Assim sendo, o recurso à força por parte dos Estados Unidos no Afeganistão, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, foi, de maneira geral, considerado como aceitável devido à complacência – para não dizer o apoio direto – com que o regime Taliban tratava a Al Qaida. Tal extensão da legítima defesa não foi considerada como um desvio do Artigo 51, mas como o sinal de uma necessária evolução do direito diante de novas realidades, sem com isso questionar o princípio de proibição do recurso à força.
Uma guerra injustificável
O recurso à força por parte dos EUA no Afeganistão foi considerado como aceitável devido à complacência com que o regime Taliban tratava a Al Qaida
Isso não quer dizer que o Artigo 51 não poderia ser flexibilizado em caso de perigo imediato e, desta forma, justificar uma guerra preventiva. Um Estado não pode ser obrigado, em qualquer circunstância, a esperar ser atacado para se prevalecer de seu direito de legítima defesa. Em 1967, por exemplo, há quem considere como legítima a guerra desencadeada por Israel, diante da mobilização geral de seus vizinhos árabes – e levando-se em conta as ameaças que pesavam sobre sua sobrevivência. No entanto, um tal raciocínio não poderia ser aplicado ao litígio referente ao Iraque. Não existe ameaça alguma plausível dirigida contra os Estados Unidos e nenhuma prova da ligação com a ameaça representada pela Al-Qaida.
Analisando objetivamente os fatos – sobretudo à luz das pesadas obrigações impostas ao Iraque depois da guerra de 1990-1991 e das terríveis sanções que se prolongam há mais de uma década – seria possível afirmar que o Iraque está mais “ameaçado” do que é ameaçador. Retomando a distinção do senador Kennedy, poderia dizer-se que os fatos não justificam nem a reivindicação de uma “guerra preventiva”, muito menos a de uma guerra “preemptiva”.
Impondo as regras do jogo
Para além da necessidade de evitar uma guerra injustificável e de conseqüências imprevisíveis, é a própria natureza da ordem mundial que está em jogo
Ao longo da história das Nações Unidas, a discussão a respeito desses problemas deu-se, principalmente, em torno da autodefesa antecipatória. Distinguiram-se represálias armadas e o recurso à guerra. Assim sendo, vários acontecimentos importantes foram objeto de interpretações divergentes por parte dos juristas: o bombardeio por Israel do reator nuclear iraquiano em Osirak, em 1981; o bombardeio norte-americano da Líbia em 1986, motivado pelo suposto apoio de Muammar Khadafi ao terrorismo anti-norte-americano na Europa; e finalmente, os bombardeios ordenados por William Clinton em 1998 contra o Sudão e o Afeganistão em represália à contribuição logística que esses países teriam fornecido aos autores dos atentados contra as embaixadas norte-americanas no Quênia e na Tanzânia. De todas as vezes, os fatos citados eram fortemente contestados e o uso de força geralmente visto, fora dos Estados Unidos, como contrário à Carta das Nações Unidas. Mas, diferentemente da guerra que se prepara contra o Iraque, essas ações, onerosas para os países visados, não punham em risco as bases da ordem jurídica internacional.
Para além da necessidade de evitar uma guerra injustificável e de conseqüências imprevisíveis, é a própria natureza da ordem mundial que está em jogo. Não há nenhuma dúvida de que os Estados Unidos são capazes de impor as regras do jogo geopolítico. Ora, uma vez estabelecidas, essas regras poderão ser invocadas por outros países. Por exemplo, uma das conseqüências nefastas da intervenção no Afeganistão foi proporcionar a dirigentes como Ariel Sharon e Vladimir Putin a oportunidade de intensificar a repressão a seus opositores, em nome da luta contra o “terrorismo”.
Impondo a “paz punitiva”
A inversão jurídica e moral chegou a seu apogeu quando o presidente norte-americano declarou que Ariel Sharon era um “homem de paz”
Mesmo que se reconheça a legitimidade da intervenção norte-americana no Afeganistão, ainda assim o governo dos Estados Unidos prejudicou a “comunidade internacional”, ao não definir rigorosamente o âmbito de sua ação, levando-se em conta a natureza muito particular do terrorismo apocalíptico da Al Qaida. Bush chegou a fazer exatamente o contrário. Convidou outros países a intervirem numa guerra santa contra o “terrorismo”, limitando-se a definir vagamente essa ameaça como uma violência política exercida contra o Estado. Ao fazê-lo, estabeleceu conscientemente uma confusão entre a necessidade específica de responder aos ataques da Al Qaida e as diferentes formas de repressão através do mundo, dispensando, dessa maneira, o terrorismo de Estado de qualquer exame crítico. Essa inversão jurídica e moral atingiu seu apogeu quando Bush declarou, no exato momento em que Israel usava seu armamento aperfeiçoado contra os palestinos, que Sharon era um “homem de paz”.
A estratégia norte-americana consiste em se precaver contra qualquer crítica, invocando a autoridade das Nações Unidas. Esse procedimento baseia-se nas resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança depois da guerra do Golfo, e que fazem recair sobre o Iraque as condições de paz mais punitivas já impostas a um país desde o Tratado de Versalhes. Até então, a comunidade internacional parecia ter tirado lições da história, ao facilitar a recuperação das economias do Japão e da Alemanha depois da II Guerra Mundial e ao estimular esses países a se reintegrarem normalmente a sociedade internacional. Mas o tratamento – mortal, para os civis – infligido ao Iraque a partir da guerra do Golfo, deixa ver claramente que o Ocidente está disposto a impor uma paz punitiva a países do Terceiro Mundo, especialmente se forem países muçulmanos. É até capaz de dar uma aparência de legitimidade a essas medidas de ódio, fazendo com que sejam votadas pela ONU.
Os princípios básicos da ONU
Ao votar, em 8 de novembro último, a resolução 1441, a ONU afiançou a guerra e se constituiu em auxiliar da política norte-americana
O recurso tardio às Nações Unidas não engana muita gente fora dos Estados Unidos. Bush não tem simpatia alguma pela ONU e só busca sua aprovação para desarmar o maremoto da oposição interna a seu unilateralismo espalhafatoso. Mas o próprio fato de recorrer ao Conselho de Segurança é uma demonstração embaraçosa da hipocrisia de Washington, que se obstina em não tomar medida alguma contra a recusa israelense de pôr um termo a uma colonização ilegal e respeitar a situação de Jerusalém. Essa política de “dois pesos e duas medidas” mina a autoridade da norma internacional, pois o primeiro dever de qualquer regime de direito é o tratamento igual de todas as partes.
Ao votar, em 8 de novembro último, a resolução 1441, a ONU afiançou a guerra e se constituiu em auxiliar da política norte-americana. A retomada das inspeções de uma forma tão constrangedora está praticamente destinada ao fracasso. A ONU aceitou ser recrutada para fazer a tarefa suja da agressão armada. Pois o objetivo da Casa Branca é uma mudança de regime em Bagdá, uma ingerência direta na soberania iraquiana e no direito à autodeterminação do povo desse país. Se os acontecimentos tiverem de prosseguir no caminho previsto, isso seria um golpe sério para a ONU, já culpada de ter aprovado um regime de sanções tão cruel, que dois altos funcionários internacionais renomados, Dennis Halliday1 e Hans von Sponeck, encarregados da ação humanitária no Iraque, pediram demissão para não serem cúmplices de uma política descrita por eles como “genocida”.
No entanto, é preciso lembrar que o Conselho de Segurança está comprometido com a Carta e não deve se posiciona