Uma reflexão sobre o vídeo da reunião ministerial
Somente o fanatismo é capaz de explicar o apreço de parte da população brasileira (e cada vez menor, de acordo com as recentes pesquisas) a esse festival constrangedor
A reunião ministerial do dia 22 de abril escancarou mais do que o baixo nível dos atuais ocupantes do Poder Executivo. Ela revelou o vírus que contaminou parcela da população brasileira; isto é, o fanatismo. Talvez poucas pessoas tenham participado de alguma reunião profissional ou até condominial com aquele clima e naquele tom. A falta de respeito, a descompostura e a não economia em palavras de baixíssimo nível deixariam envergonhadas quaisquer pessoas com o mínimo de juízo crítico. É inaceitável que o alto escalão do Executivo brasileiro seja dirigido dessa forma e com esse nível de deboche e desrespeito à coisa pública. Nada justifica o festival de baixarias em uma reunião que estava sendo sabidamente gravada e que tratava nada mais nada menos do que dos rumos do goveno. Contudo, talvez seja mais chocante perceber que há quem consiga apreciar esse circo.
Somente o fanatismo é capaz de explicar o apreço de parte da população brasileira (e cada vez menor, de acordo com as recentes pesquisas) a esse festival constrangedor. O fanatismo cego que transforma o absurdo e o inenarrável em banal e louvável. Diriam os fanáticos: “eles falam o que o povo pensa!”; “eles falam aquilo que todo mundo quer falar!”; “ele fala como nós!”. Frases que são sintomas do fanatismo produzido pela sedução de um populismo bravateiro. Aliás, muitos opositores de Bolsonaro quase foram seduzidos pelo seu populismo ao, apressadamente, começar a tentar entender a avalanche de informações que o vídeo da reunião ministerial trazia. Naquela histórica tarde de sexta-feira em que o vídeo foi revelado, muitos, assustados, pensavam “pronto, Bolsonaro está reeleito”; ou “o povão gosta disso!”. Enquanto assistiam ao vídeo, quase caíram no canto populista, perigoso e sedutor, que era, automaticamente, reverberado nas redes sociais por meio do exército produtor de fake news. Talvez você até se identifique aqui.
Nesse sentido, o vídeo foi um desvelar do populismo e de seus métodos para conquistar um séquito de fanáticos. O populismo, que é sempre muito perigoso, porque, como um canto da sereia a seduzir Ulisses, se não houver amarra firme ao mastro da realidade, facilmente faz com que se deixe levar pela narrativa melódica, que tem sentido interno para o desavisado. Ou seja, desorientado pelo canto, ou melhor, pelos gritos aos moldes de palanque eleitoral e bombardeado nas redes socias pelo exército de fanáticos e robôs, a vontade inicial é de praticamente se jogar nos braços da sereia e lhe dar razão. A mesma sereia que levaria Ulisses e seus homens para morrer no fundo do mar, mas que, no nosso caso, nos levaria a acreditar que, mesmo defendendo seus filhos e amigos, Bolsonaro estava ali gritando e xingando por nós.
Assim, aquele que analisou o vídeo muito rapidamente e logo pensou estar diante de um triunfo do populismo pensado na linguagem do tal do “povão’, subestimou, além da própria, a capacidade de todo o povo brasileiro, ou porque se considerou “não povão”, tendência natural de quem quer preservar sua diferenciação numa sociedade desigual e calcada nas iniquidades, ou porque simplesmente atribuiu ao “povão” uma incapacidade irresitível de, ao ser exposto ao vídeo, não elaborar sua compreensão para evitar se jogar nos braços do bravateiro. No fundo, para que Bolsonaro falasse a “língua da gente”, a “língua do povão”, teríamos que nos assumir como uma sociedade nivelada por baixo, violenta e autoritária. Afinal, além do desrespeito aos próprios integrantes de seu governo, Bolsonaro demonstrou sua face autoritária. Pintou-se na roupa de um monarca absoluto, que além de disparar impropérios, afirmou que nenhuma daquelas pessoas seria ministro se não fosse por conta dele. Bolsonaro se revelou na sua faceta mais violenta e narcisística como o dono do Estado.
Mas, diante dessa reflexão, é possível que se argumente que isso cairia bem na sociedade brasileira porque, afinal, somos uma sociedade violenta, desrespeitosa e desigual. Com certeza, ao ler o parágrafo acima, alguém pensou: “mas, nós somos uma sociedade nivelada por baixo, violenta e autoritária!” Todavia, reside aqui a diferença entre o ser e o querer ser. Isto é, podemos ser violentos, injustos, desiguais, autoritários e crueis, mas não queremos ser isso. Não desejamos isso. Assumimos isso como nossas mazelas, que temos uma enorme dificuldade em vencer, mas não assumimos tudo isso como algo que queremos para nós e para nosso futuro. Se somos injustos e violentos, isso não quer dizer que queremos ser injustos e violentos.
Desta forma, a violência do linguajar e de toda postura de Bolsonaro retratou uma realidade de um país que não queremos construir e não queremos ser. Bolsonaro pode ser para alguns aquilo que somos, mas para muitos é, certamente, aquilo que não queremos ser. É natural que em qualquer sociedade livre um vídeo como esse tenha para si a tendência de ser visto e após longo período de digestão e reflexão, seja compreendido como algo negativo. A violência pode seduzir uma parcela já psicologicamente presa ao fanatismo, que no fundo já sofreu o processo de deformação humana a que todos estamos sujeitos, tal como demonstrou Adorno na análise das personalidades autoritárias e Hannah Arendt na análise do juízo crítico durante o julgamento de Adolf Eichmann. A incapacidade do parar para pensar é a vitória do fanatismo e a transformação da natureza humana em meros feixes de recíproca violenta reação. Todavia, para aqueles que a ideologia fanática não conseguiu deformar, resiste o bom senso, resiste o razoável, surge, então, a aversão ao vídeo da reunião ministerial.
A reunião ministerial foi uma viagem às entranhas de uma escolha que o país fez, mas que talvez esteja já no seu processo de repulsão. Um país que, ansioso por derrotar a corrupção, escolheu aquele que fez do seu combate a sua bandeira, mas que evidentemente escondeu sua face patrimonialista e carcomida pela velha política a que sempre pertenceu. O vídeo deixou claro a presença de um presidente tratando toda a coisa pública como interesse privado e o explícito despreparo somado à falta de urbanidade.
Assim, o vídeo da reunião ministerial, muito mais do que servir para a análise de uma possível tentativa de intervenção na polícia federal, serviu para dar ao brasileiro a opção de analisar e decidir sobre aquilo que ele quer para seu futuro; ou melhor, para decidir se ele quer ser aquilo, se ele quer ser representado por meio da violência, do autoritarismo, do despreparo e do desrespeito. No momento em que tudo isso for melhor digerido, a grande maioria da população brasileira tenderá a rejeitar Bolsonaro. Diferentemente do que disse o presidente, ninguém quer um pai ouvindo o filho pela porta ou falando aqueles montes de palavrões, o que qualquer pessoa quer é um futuro de respeito para seus filhos, um futuro de preparo e decência e não de violência e virulência. Qualquer pessoa, que não tenha sido deformada pelo fanatismo.
A melhor arma para combater o canto sedutor da sereia da bravata, cheia de potência e palanque, são os fatos e a contextualização da lógica do razoável. A imprensa livre, o combate às fake news e a decência ainda estão do lado do povo brasileiro. Entre o ser e o sonho, entre o passado e o futuro há sempre a esperança do melhor para quem o fanatismo ainda não conseguiu deformar.
Guilherme Antonio Fernandes é doutor em Direito pela USP. Mestre em Integração da América Latina pela USP. Pesquisador membro do Gebrics-USP. Professor e advogado em São Paulo.