Uma regressão do mundo árabe
A degradação da situação da Palestina torna-se terreno fértil para a até então marginal propaganda anti-semita no mundo árabe, suscitando inclusive o renascimento do panfleto czarista “Protocolos dos Sábios do Sião”Dominique Vidal
Durante muito tempo, a propaganda anti-semita pertencia, no mundo árabe, à esfera da marginalidade. Infelizmente, há três anos, ela ergueu a cabeça em vários países. Essa evolução preocupante não é, evidentemente, alheia à degradação da situação na Palestina: o fracasso da reunião de cúpula de Camp David, em julho de 2000, a eclosão da segunda Intifada e a escalada repressiva do exército israelense atingiram, é claro, a opinião pública.É nesse terreno fértil que apostam as correntes ultranacionalistas ou religiosas para destilar seu veneno, não sem cumplicidades no seio dos poderes vigentes.
Falara-se muito, em 2002, da novela egípcia Cavalier sans monture, esse cavaleiro virtual que, atacando duramente o dragão sionista, denunciava o “complô judeu contra a Palestina” em nome do “Protocolo dos Sábios de Sião”.
“Os que criticam Israel não têm necessidade de recorrer a propósitos anti-semitas para denunciar sua política”, escreveu Osama al-Baz, assessor do presidente egípcio
Esse falso czarista tem, realmente, uma vida dura. No final de 2003, o jornalista Robert Fisk, cujo engajamento é conhecido, indignava-se, no The Independent1, por haver encontrado uma nova edição dele num quiosque de Beirute. “Sou sempre cuidadoso”, escrevia ele, “antes de acusar os árabes de anti-semitismo. Eles próprios são semitas. Mas como esse pequeno panfleto imoral pode reaparecer num país tão sofisticado como o Líbano?” E Fisk critica ” a decisão da televisão do Hezbollah de transmitir, durante o mês sagrado do Ramadan, um seriado intitulado ?Al-Shatat? (Diáspora), que pretende ser uma história do sionismo de 1812 a 1948 e faz referência a um ?complô judeu? para dominar o mundo.” No programa se mostrava até um pseudo-assassinato ritual
Incitação ao ódio
Novamente os Protocolos, mas, dessa vez, em Túnis, onde o semanário Tunis hebdo afirmava ver, no recente Congresso Sionista Mundial, a prova de que eles “conservam seu ?frescor? e sua atualidade intactos. Nenhuma ruga. Nenhuma corrosão. Nenhuma marca de ferrugem2“. Quatro meses antes, o saudita Al-Watan caía no ridículo ao assegurar: “Os rabinos judeus emitiram, ultimamente, uma fatwa (sic) que estabelece que o ?Iraque faz parte do Grande Israel?3.”
No Marrocos, a incitação ao ódio anti-semita, aliás denunciada por nossos colegas do Journal, foi acompanhada de agressões, algumas das quais acarretaram a morte de um homem. Além do mais, nove pessoas foram condenadas, no fim de 2003, a pesadas penas de prisão pelo assassinato de Albert Rebibo, um judeu de Casablanca4.
O Holocausto e os palestinos
Após a expulsão dos judeus da Espanha, a partir de 1492, o mundo árabe acolheu boa parte deles, com um estatuto claramente mais favorável do que na Europa
A Justiça não foi a única a reagir. No próprio Marrocos, uma petição foi lançada contra essas violências tão contrárias à tradição do país. Também em outros lugares, intelectuais se mobilizaram. Todo mundo se lembra da convocação contra a realização de uma conferência “negacionista” 5 em Beirute, em 20016. Lembremos o que Edward Said escrevia, então, em Le Monde diplomatique: “A tese segundo a qual o Holocausto seria apenas uma fabricação dos sionistas circula, em alguns lugares, de forma inaceitável. Por que esperamos que o mundo inteiro tome consciência de nossos sofrimentos enquanto árabes, se nós não estamos em condições de tomar consciência dos sofrimentos dos outros, ainda que se trate de nossos opressores, e se nós nos revelamos incapazes de lidar com os fatos a partir do momento em que incomodam a visão simplista de intelectuais ?bem pensantes? que se recusam a ver o elo que existe entre o Holocausto e Israel? […] Reconhecer a história do Holocausto e a loucura do genocídio contra o povo judeu nos torna dignos de crédito para tudo o que diz respeito à nossa própria história; isso nos autoriza a pedir aos israelenses e aos judeus que estabeleçam um vínculo entre o Holocausto e as injustiças impostas aos palestinos7.”
Fora o Iraque, somente após a II Guerra Mundial e o nascimento do Estado de Israel, é que ações violentas seriam cometidas contra comunidades judaicas em países árabes.
A coragem do intelectual americano-palestino ganhou rivais. No Egito, a novela acima citada suscitou, em 2002, inúmeras críticas de jornalistas, mas também de associações e de personalidades, chegando a obrigar a televisão a modificar a apresentação do seriado para contestar a realidade dos Protocolos. Mas o mais significativo foi, sem dúvida, a publicação por Osama al-Baz, assessor do presidente Hosni Mubarak, de uma série de artigos no jornal Al-Ahram8: neles, retomava a realidade da História, dos Protocolos à natureza do combate no Oriente Médio, passando pelo genocídio hitlerista. “Cada um de nós”, escrevia ele, “deve compreender que, quando ataca os judeus enquanto raça ou povo – fazendo-se, desse modo, o advogado de uma abordagem desumana e racista -, atinge o interesse da nação.” E acrescentava: “Os que criticam Israel não têm necessidade de recorrer a propósitos anti-semitas para denunciar sua política.”
Retrocesso prejudicial
Após a expulsão dos judeus da Espanha, a partir de 1492, o mundo árabe acolheu boa parte deles. Se lhes deu – como aos cristãos – o estatuto de dhimmi, inferior ao dos muçulmanos, era claramente mais favorável que o de seus correligionários na Europa, ele os preservou das perseguições recorrentes que os outros sofreram na Europa. E Auschwitz, como se sabe, não é um nome árabe. Com exceção do Iraque, teatro de uma espécie de pogrom em 1941, sob o reinado de Ali Rachid, somente após a II Guerra Mundial e o nascimento do Estado de Israel (mas não do Estado palestino previsto pela Organização das Nações Unidas em sua divisão da Palestina) é que ações violentas, às vezes em massa, seriam cometidas contra comunidades judaicas das quais, por sua vez, as autoridades israelenses organizavam a emigração para o jovem Estados judeu. O mesmo iria acontecer por ocasião das independências no Magreb.
A atual propaganda anti-semita constitui, portanto, para o mundo árabe, um verdadeiro retrocesso que lhe será profundamente prejudicial.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – The Independent, Londres, 8 de novembro de 2003.
2 – Tunis hebdo, Tunis, 17 de novembro de 2003.
3 – Al-Watan, Ryad, 19 de julho de 2003.
4 – Le Monde, Paris, 25 de novembro de 2003.
5 – Adepto do “negacionismo”, isto é, da posição ideológica que nega a existência das câmaras de gás utilizadas pelos nazistas (N.T.).
6 – Le Monde, 16
Dominique Vidal é especialista em Oriente Médio e membro sênior da equipe editorial de Le Monde Diplomatique (França).