União na luta contra a pandemia: o discurso do presidente da África do Sul
O presente trabalho faz parte da segunda fase da série “A análise dos discursos sobre a pandemia da Covid-19” produzida pelo Grupo de Pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)”. Nesta segunda da fase da série nos detemos na análise dos principais porta-vozes nacionais e internacionais dos discursos negacionista e científico. Dessa forma, neste artigo será analisado um dos principais porta-vozes internacionais do discurso científico sobre a pandemia: Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul
Nos artigos analisamos se as relações de poder dominante permaneceram as mesmas com o acontecimento pandemia de Covid-19, e a partir disso, como se organiza a disputa de discursos, uma vez que, houve a suspensão da formação hegemônica vigente. Para tal usamos como base a teoria do discurso desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe[1].
A velha guarda buscando recuperar o prestígio
Matamela Cyril Ramaphosa, atual Presidente da África do Sul, nasceu em 17 de novembro de 1952, na província de Soweto. Ele foi militante estudantil na década de 1960 e, após concluir sua graduação em Direito, dedicou-se ao movimento sindical, fundando o Sindicato Nacional de Mineiros (NUM) em 1982. Além disso, Ramaphosa também teve uma ativa participação na luta contra o regime racista e segregacionista do apartheid, sendo convocado, em 1990, por Nelson Mandela, a participar da negociação da transição política com o poder branco, por considerá-lo um dos mais talentosos da nova geração[2].
Tornou-se vice-presidente de Jacob Zuma, no período de maio de 2014 a dezembro de 2017, quando foi eleito presidente do Congresso Nacional Africano (ANC). Pois o então presidente Zuma precisou se retirar do cargo, visto que estava sendo acusado e investigado por corrupção. Em fevereiro de 2018, foi eleito presidente da África do Sul pelo Parlamento, se tornando a 5° pessoa a ocupar este cargo. Cyril Ramaphosa assumiu a presidência com a promessa de reforçar o comprometimento com o comportamento e lideranças éticas, seguindo o exemplo de Nelson Mandela. Segundo ele, uma nova era estava sendo iniciada no país, deixando para trás toda a desunião, discórdia, negatividade, corrupção e desconfiança nas instituições públicas e nos líderes políticos.
Ramaphosa é um político de centro-esquerda e faz parte da fração reformista e moderada da ANC, a qual governa o país sul-africano desde as primeiras eleições livres em 1994. Na ocasião, Nelson Mandela se tornou o presidente do país, e, através de suas ações políticas e sociais, a África do Sul passou a ser conhecida pela luta por uma sociedade baseada na equidade e solidariedade. Thabo Mbeki e Kgalema Motlanthe sucederam Mandela e, logo após, Jacob Zuma tomou posse como o quarto presidente sul-africano, em maio de 2009. O Governo de Zuma ficou conhecido não pelo espírito original da ANC, mas sim por ter se tornado uma máquina burocrática. Na época grandes denúncias de corrupção foram realizadas, o que acabou por diminuir a confiança da população na ANC e no Estado de forma geral. Dessa forma, Cyril Ramaphosa assume a presidência com o objetivo de restaurar o prestígio original do partido e de estabelecer novamente a hegemonia política. A sua postura moderada e seu passado de herói na luta contra o apartheid o ajudaram a chegar à presidência e a construir, no imaginário social, sua figura como um símbolo de luta contra a corrupção, desemprego, desigualdade de gênero, social e racial e de que, portanto, possuiria as qualidades necessárias para conduzir o partido e o país para uma nova era.
No entanto, Ramaphosa é criticado pelo massacre que ocorreu em agosto de 2012, em Marikana, que ficou conhecido como a Hora Mais Sombria da Democracia Sul-Africana. Os trabalhadores da mina Marikana, da cidade de Rustenburg, iniciaram um protesto exigindo que seus direitos fossem cumpridos e um aumento salarial, mas depois de uma semana de manifestações, a situação saiu do controle e a polícia local atirou nos protestantes, matando 34 deles. Na época, Ramaphosa era diretor não-executivo da Lonmin e sua empresa, Shanduka, era uma acionista minoritária dela. Logo, os lucros da mineradora o interessavam. Além disso, um dia antes do massacre acontecer, o atual presidente trocou alguns e-mails com a diretoria da Lonmin, afirmando que estava ansioso para que o conflito terminasse e utilizou palavras que indicavam que era a favor de uma abordagem mais agressiva, além de se referir aos manifestantes como criminosos claramente covardes[3]. Desde então, ele pediu desculpas pelo o ocorrido e a Comissão do juiz Farlam, responsável pelas investigações, o exonerou de grande parte das irregularidades. Porém, seus críticos continuam condenando-o pelo o que ocorreu.
No que diz respeito à pandemia de Covid-19, o primeiro caso confirmado da doença na África do Sul foi no dia 5 de março de 2020, e o país era pelo menos o quarto na África Subsaariana a ter confirmado infecção pelo vírus. Cerca de dez dias depois, já havia 61 casos comprovados. Desde a confirmação da primeira pessoa infectada, o presidente Ramaphosa alertou a população de que haveria grandes impactos na sociedade e na economia, e de que eles deveriam estar preparados. No entanto, existem algumas particularidades no caso da África do Sul, que são: 1- a já existente epidemia de HIV, que afeta cerca de sete milhões de pessoas e que as tornam mais vulneráveis a possíveis complicações do novo coronavírus; 2- o recente surto de Ebola, o qual forçou o sistema de saúde ao limite, abalando-o ainda mais; e 3- a extrema pobreza que grande parte da população vive.
Na sua fala no Freedom Day, em 27 de abril de 2020, Ramaphosa informou que, antes da pandemia, estávamos lutando contra pobreza, subdesenvolvimento, desemprego e uma economia fraca, e que ela poderia atrasar esses avanços em níveis drásticos.[4] Ele também afirmou que violar as formas de contenção do vírus, como as medidas de isolamento social, é o maior e pior desrespeito pelo próximo. O presidente disse ainda que o novo vírus está escancarando as desigualdades sociais que assolam o país por décadas, que nem todos estão sendo impactados por ele da mesma maneira, e que não se deve fechar os olhos para esse problema. Pelo contrário, se deve utilizá-lo para que, ao final da crise, seja possível construir uma sociedade nova, uma economia nova e uma consciência nova.
Performances
O presidente sul-africano, no início da pandemia no país, adotou medidas vistas por ele e por sua equipe como extraordinárias, pois, segundo Cyril Ramaphosa, essa era a situação mais difícil que a democracia do país havia enfrentado. Logo, não cabia adotar medidas pela metade. Dez dias após a confirmação do primeiro caso, ele anunciou, através de um Pronunciamento Oficial realizado no dia 15 de março de 2020, que sua equipe acreditava que já estavam lidando com um contágio interno da doença.[5] Por isso declararam Estado Nacional de Desastre, de acordo com a Lei de Gerenciamento de Desastre, para que pudessem contar com um mecanismo de gerenciamento coordenado e integrado, que permitiria tomar ações rápidas, emergenciais e efetivas, além de focar na prevenção e redução do vírus.
É possível perceber que Ramaphosa, por meio de seus pronunciamentos e performances, afirma que, para que haja um controle efetivo da COVID-19, é necessário que exista uma ação coletiva entre a sociedade e o Governo. Ainda no Pronunciamento Oficial do dia 15 de março, falou que quanto tempo vai durar, quão prejudicial será, e quanto tempo levará nossa economia e nosso país para se recuperar depende da sociedade como um todo, e que é necessário que haja cooperação e colaboração, e que aqueles que possuem saúde e boas condições sociais e financeiras, devem ajudar os que precisam. Além disso, já nesse momento, ele adotou uma série de medidas para mitigar a contaminação, tais como: 1. Proibição de viagem a cidadãos estrangeiros de países de alto risco, como Itália, Irã, Coreia do Sul, Estados Unidos, Reino Unido, China, Espanha e Alemanha a partir do dia 18 de março; 2. Adoção de rigorosa inspeção nos aeroportos; 3. Fechamento de 35 dos 53 portos terrestres e 2 dos 8 portos marítimos a partir do dia 16 de março; 4. Fechamento das escolas a partir de 18 de março e até depois do fim de semana de Páscoa; 5. Aumento da capacidade dos hospitais e 6. Campanha para conscientizar a população a ter uma maior higiene pessoal. No entanto, algumas medidas adotadas não foram muito bem aceitas pela população, como por exemplo, a proibição da venda ou transporte de bebidas alcoólicas de segunda a sábado, das 18h às 9h, e aos domingos e feriados, das 1h às 9h. Essa medida foi adotada pois, segundo o presidente e especialistas, o álcool é responsável por grande parte dos acidentes, violências e assaltos que ocorrem no país sul-africano. Dessa forma, o objetivo era reduzir esses incidentes para desafogar os serviços nos hospitais e delegacias.
Em 27 de março de 2020, começou o lockdown de, inicialmente, 21 dias em todo o território nacional, no mesmo dia em que o Ministro da Saúde, Dr. Mkhize, confirmou o primeiro óbito causado pela Covid-19 e em que o país alcançou a marca de mais de mil infecções confirmadas da doença. O lockdown sul-africano ficou conhecido por ser um dos mais rígidos, permitindo que a população saísse de suas casas apenas para comprar comida, procurar atendimento, receber seus subsídios previdenciários e realizar caminhadas individuais. O governo contou com o apoio tanto da polícia quanto do exército para fiscalizar e assegurar que as pessoas seguissem as novas normas. No dia 26 de março, um dia antes do lockdown oficialmente começar, Ramaphosa, ao visitar os soldados da base de Soweto[6], realizou uma de suas principais performances, ao vestir um uniforme do exército e afirmar que ele estava enviando-os para ir e defender o nosso povo contra o coronavírus[7]. Além disso, também informou que os direitos do povo não seriam violados, intencionalmente ou não, e que eles deveriam ser tratados com nada menos do que respeito. Contudo, não é possível negar que uma parcela significante da população adotou uma postura desconfiada e receosa com essa nova missão[8] do exército, devido às marcas deixadas pelo papel dos militares durante as décadas de apharteid, o qual terminou em 1994. Assim, ao vestir-se com o uniforme militar, Ramaphosa, sendo o primeiro membro do executivo a realizar esse gesto, buscou levar calma e confiança à população, para que a recepção aos militares fosse a melhor possível. Esse desejo ficou nítido também quando, ainda ao se dirigir aos soldados no dia 26 de março, afirmou que a população não irá resistir a vocês e que eles encontrariam um povo que apoia completamente o trabalho que iriam fazer.
No dia 3 de julho, o Presidente Ramaphosa visitou a Escola Secundária Cyril Clarke, na província de Mpumalanga, com o intuito de monitorar o progresso feito em relação ao combate à contaminação de Covid-19 nas escolas.[9] A reabertura dos colégios faz parte do Nível 3 do Plano de Combate do Governo, o qual conta com 5 níveis de alerta, que são medidos a partir do risco de infecção à população. O alerta 3 teve início no dia 1º de julho, e permitiu algumas flexibilizações nas restrições impostas pelo governo, como a permissão de atividades sociais, volta às aulas e ida ao trabalho, mas mantendo todos os protocolos de segurança, como distanciamento social, uso de máscaras e álcool 70%. No entanto, o retorno às aulas foi adiado, pois, segundo o governo, algumas instituições de ensino ainda precisavam realizar algumas adaptações para que estivessem seguindo todos os protocolos de segurança. Assim, no dia 9 de julho, cerca de 95% das escolas municipais e privadas reabriram para os estudantes da 7° a 12° série. Porém, uma parcela significante da população, e principalmente dos responsáveis dos alunos, não estavam se sentindo seguros com a volta ao normal, tendo em vista que o número de casos de infecção da COVID-19 estava crescendo de forma consideravelmente elevada na África do Sul.
Em um vídeo publicado no seu perfil no Twitter (@CyrilRamaphosa) em 3 de julho[10] e de fotos publicadas no seu perfil do Instagram (@cyrilramaphosa) no dia seguinte, o presidente mostra parte da sua visita à Escola Secundária Cyril Clarke. Durante a visita, ele afirma estar muito feliz com a volta das aulas, além de falar que os estudantes são a esperança e o futuro da nação, e que eles deveriam tomar cuidado e ficarem seguros, tanto na escola quanto em casa. Ramaphosa também distribuiu máscaras para os alunos, afirmando que agora eles teriam uma unidade adicional. Dessa forma, a visita do Chefe de Estado à Escola Secundária Cyril Clarke pode ser vista como uma importante performance neste período de combate ao vírus, pois, mais uma vez, ele buscou passar confiança para a população, nesse caso por meio da distribuição de máscaras e por falar que os estudantes se sairiam bem, e de tranquilizar os próprios alunos, seus responsáveis e os professores.
Controlar o Pânico – Discurso Científico de Ramaphosa
As práticas discursivas adotadas pelo Presidente Cyril Ramaphosa desde o início da pandemia de Covid-19 foram em um tom científico, além de tomar ações que seguem a mesma lógica, as quais foram conduzidas pelo Comitê Interministerial, liderado pelo Ministro da Saúde, Dr. Zweli Mkhize. Também se percebe que o tom adotado por ele nesse momento foi de preocupação, atenção e cooperação, pois Ramaphosa está constantemente alertando a população de que os danos a sociedade, e principalmente a economia, serão bastante significativos, mas que, através da união do povo e do governo, a África do Sul conseguirá se recuperar de forma eficaz e mais rápida. Além disso, ele vem destacando que a prioridade no momento deve ser garantir a saúde, a segurança e o bem-estar da população, além de fornecer o tratamento necessário para os que testarem positivo para o novo coronavírus.
No Pronunciamento Oficial do dia 15 de março, Ramaphosa afirmou que desde o início do surto de Covid-19 na China, no início de 2020, o governo já vem tomando medidas para conter o contágio da doença através de uma maior fiscalização na entrada de estrangeiros no país.[11] Essa ação acaba por exemplificar um dos problemas que é destacados em suas falas: o da rapidez com que esse vírus se espalha. O presidente também confessou que nunca antes na história de nossa democracia nosso país foi confrontado com uma situação tão grave e de que, por isso, as medidas tomadas precisavam ser extraordinárias e efetivas, e não pela metade, pois os países que as tomaram de imediato possuíram um desempenho consideravelmente melhor do que daqueles que as postergaram. Ele deixou claro que a pandemia iria impactar de forma negativa a economia, devido à instabilidade que ela causa nos setores comerciais, de turismo e de importação/exportação. E ainda que talvez os maiores perigos para o país neste momento são o medo e a ignorância, pois, caso eles passem a dominar a forma de agir e pensar da sociedade, poderão existir casos de ansiedade e pânico ou de pessoas que não tratem a situação com a devida seriedade. Ramaphosa afirmou que não há motivos para que esses sentimentos se tornem fortes diante da população, já que, por mais difícil que seja a situação, eles possuem os meios e o conhecimento necessários para enfrentar essa guerra, e que se houver uma ação coletiva e objetiva, os impactos poderão ser controlados.
A injustiça presente em suas práticas discursivas está diretamente relacionada com a forma como a sociedade e a economia serão impactadas pelo vírus. Pois, de acordo com o presidente sul-africano, a oferta e a permanência de empregos, os negócios e a produção sofrerão drásticas consequências. Para buscar reduzi-las ao máximo, o governo organizou um plano de resposta econômica dividido em 3 partes.[12] A primeira ocorreu no mês de março, ao declarar a pandemia de Covid-19 como situação de desastre nacional. A segunda fase teve início em abril, e contou com diversas medidas, entre elas a aprovação de um elevado orçamento para a área da saúde, para o alívio da fome e miséria, além do apoio às empresas e trabalhadores. Houve também uma reabertura gradual da economia e um pacote de ajuda social e econômica de R500 bilhões (aproximadamente US$ 26,3 bilhões), o que equivale a cerca de 10% do PIB da África do Sul. Já a terceira, abrange as medidas que o governo irá adotar para impulsionar a economia, e que irá ocorrer de acordo com a saída do país da pandemia. Contudo, vale ressaltar que a maior injustiça identificada nos discursos de Ramaphosa é o fato de que a pandemia está escancarando as desigualdades que assolam o país por décadas, e que nem todos estão sendo atingidos da mesma maneira por ela, situação que acaba por justificar a prioridade dada pelo presidente à segurança e a saúde do povo sul-africano, e que, por esse motivo, foi necessário tomar medidas tão drásticas, e que tiveram impacto sobre a sociedade e a economia.
No marco do prognóstico, a solução dos problemas encontrados nos discursos de Ramaphosa tiveram como elemento central a cooperação da população com as medidas extraordinárias adotadas pelo governo. No seu discurso de comemoração do Dia da Liberdade, em 27 de abril, ele afirmou que desrespeitar os novos protocolos de segurança contra a Covid-19 é o maior desrespeito que se pode ter com o próximo.[13] Ele também disse que a pandemia iria escancarar as desigualdades sociais já existentes em território sul-africano, e que aqueles que possuem condições de ajudar não deveriam fechar os olhos para essa situação, mas sim ajudar os que precisam, porque na África do Sul que nós queremos, nenhum homem, mulher ou criança passará fome porque eles terão os meios para ganhar uma renda. O seu antagonismo, ou seja, o traçado de fronteira, seria a parcela da sociedade que insiste em não seguir as regras e que, por isso, podem ser vistas como egoístas e individualistas. Além disso, há aqueles que insistem em espalhar Fake News a respeito da pandemia e que não estariam colaborando no combate coletivo do vírus, pois são responsáveis por causar ignorância e medo nas pessoas e esses sentimentos, para o presidente, talvez sejam o verdadeiro perigo nesse momento. Assim, uma fala bastante presente nas performances de Ramaphosa durante esse período é: mas se agirmos juntos, se agirmos agora, e se agirmos decisivamente, vamos superar isso[14].
No marco de naturalização, Cyril Ramaphosa afirma que essa é a situação mais difícil da democracia sul-africana, que se estabeleceu com a Reforma Constitucional de 1994, mas que seu povo já passou e sobreviveu a situações mais complexas e aterrorizantes, se referindo ao período do apharteid. Em seus discursos, também faz questão de ressaltar que com a colaboração e compaixão da população, eles sairão dessa guerra mais fortalecidos e com uma sociedade nova, mais igualitária e empática.
A construção do eles no discurso de Ramaphosa, ou seja, dos seus antagonistas, possui como ponto nodal os individualistas, como é o caso daqueles que optam por não seguir as novas normas isolamento social do Governo, ou dos Estados que demoraram a tomar as ações extraordinárias necessárias para proteger o bem-estar e a saúde do seu povo, por exemplo. Assim, a cadeia de equivalência ainda é composta pelos que são corruptos; que colocam a economia em primeiro lugar, que insistem em espalhar Fake News, o que acaba por gerar medo e pânico, pelas autoridades que desrespeitam os direitos do povo sul-africano e os que enxergam a situação com banalidade. Ou seja, todos aqueles que atrapalham o combate à pandemia de COVID-19, atrasando, assim, a saída do país dessa batalha, e aumentando as consequências sociais e econômicas.
Diagrama 1: Eles
O “nós” apresenta como ponto nodal a União na luta contra a pandemia, ideia muito presente nos discursos de Ramaphosa, que está constantemente enfatizando a importância da cooperação e da união do povo sul-africano com o Governo, além do impacto que a solidariedade e a empatia possuem na vida daqueles que estão passando por dificuldades sociais e financeiras. A cadeia de equivalência do “nós” ainda é composta por aqueles que colocam a saúde pública como prioridade, que buscam e propagam a informação, o que acaba por ajudar a população a manter a calma e a coragem, pelas autoridades militares que respeitam os direitos do povo sul-africano, pelos Estados que agiram de maneira rápida e eficaz no combate à pandemia e por aqueles que enxergam a situação com a seriedade necessária, respeitando as normas de distanciamento social.
Diagrama 2: Nós
Em relação ao tom adotado nas performances de Ramaphosa, percebe-se uma prevalência do discurso científico através do apoio aos profissionais de saúde, aos cientistas e à OMS, afirmando que o progresso feito no combate ao vírus não seria possível sem a dedicação e profissionalismo desses.[15] Também enfatiza a importância da solidariedade com os que estão passando por necessidades, e de que não se pode fechar os olhos para as desigualdades. Além disso, ele se dirige ao povo sul-africano de maneira sincera e com um cunho emocional marcante, ressaltando que é preciso que todos estejam unidos nesse momento e que, apenas assim, o país conseguirá vencer essa guerra. O tom mais emocional ficou bem aparente no seu pronunciamento oficial do dia 15 de agosto, quando deixou claro que o progresso que fizemos não teria sido possível sem os sacrifícios feitos pelo povo sul-africano.
No âmbito internacional, ele adota uma postura bem similar, e defende a cooperação e acordos multilaterais entres os atores, o que acabou por ficar bastante claro na reunião entre a União Africana e Xi Jinping, que ocorreu no dia 17 de junho.[16] Na ocasião, Ramaphosa pediu para que o presidente chinês considerasse apoiar o continente africano com materiais necessários para o tratamento e o diagnóstico dos pacientes com COVID-19, pelo período de 6 meses.
Durante a pandemia de Covid-19, o volume produzido e consumido de informações através das mídias cresceu de forma consideravelmente, assim como a divulgação de Fake News. Em um dos seus discursos, Ramaphosa afirmou que essas notícias não verídicas acabam por gerar medo e pânico na população, e que esses sentimentos dificultam a luta contra essa doença. No entanto, no pronunciamento do dia 31 de maio, ele parabenizou a mídia sul-africana por ajudar a democratizar as informações importantes e verdadeiras acerca da pandemia, e principalmente por incentivar o debate sobre o vírus nos diferentes núcleos da sociedade.[17] O presidente sul-africano utiliza de forma bastante frequente os pronunciamentos oficiais para estabelecer a comunicação com a população, mas sem desmerecer a relevância das mídias tradicionais e dos seus perfis nas redes sociais do Twitter e do Instagram. Ele é conhecido por se relacionar de maneira simpática e respeitosa com os jornalistas, frequentemente se referindo a eles por seus nomes.[18]
Medidas extraordinárias e sua popularidade.
Em fevereiro de 2020, antes da pandemia de Covid-19 chegar ao país sul-africano, a Ipsos divulgou uma pesquisa realizada em novembro de 2019, que aponta que seis a cada dez pessoas (62%) acreditavam que o presidente Cyril Ramaphosa estava fazendo um bom trabalho.[19] Resultados consideravelmente maiores se comparado com o do ex-presidente Zuma, em pesquisa de 2017, na qual apenas 24% dos entrevistados dizia acreditavar que ele exercia de forma satisfatória seu cargo. Ramaphosa, desde sua campanha, trouxe como seus principais antagonismos políticos: a corrupção, a desconfiança nas instituições políticas e a desunião. Algo que ficou bastante claro no seu Discurso de Estado, do dia 16 de fevereiro, em que ele afirmou que estamos determinados a construir uma sociedade definida pela decência e integridade, que não tolera o saque de recursos públicos nem o roubo por criminosos corporativos[20].
Com a Covid-19, esses antagonismos foram reforçados ainda mais, principalmente a desunião, tendo em vista que Ramaphosa está constantemente pedindo mais solidariedade e empatia com aqueles que, de alguma forma, estão sendo afetados economicamente pela pandemia. Além deles, o presidente passou a ver a propagação de Fake News, a ignorância, a priorização da economia frente a saúde pública, o medo e o pânico e o desrespeito às normas de distanciamento social como antagonismos que acabam por tornar a luta contra o vírus mais longa e com maiores consequências.
A popularidade política de Ramaphosa durante os meses da pandemia de COVID-19 não se manteve estável. De acordo com uma pesquisa publicada no jornal News24, realizada entre 25 de maio a 4 de junho, a maior parte dos leitores apontavam estar satisfeitos com desempenho do presidente durante a pandemia.[21] A cada dez leitores, quatro deram nota 9 ou 10 — sendo 10 a nota mais alta—, e, no geral, ele alcançou pontuação 7,34. Contudo, o jornal The South African publicou no dia 8 de agosto uma nova pesquisa que mostra uma queda de 24% na taxa de aprovação do trabalho de Ramaphosa, ou seja, passou de 85% para 61% desde a última análise feita três meses antes.[22] Os grupos em que a popularidade mais caiu foram os adultos brancos, de 90% para 41%, e os adultos indianos e asiáticos, de 82% para 33%. Além desses, os trabalhadores inativos e os residentes em casas nos subúrbios também demonstraram um elevado descontentamento. Esse aumento da impopularidade está diretamente associado a algumas restrições adotadas durante a pandemia de Covid-19, como a proibição da venda de bebidas alcóolicas e de cigarro, e as denúncias de corrupção do governo durante esses meses.
No pronunciamento oficial do dia 15 de agosto, Ramaphosa relembrou que faziam cinco meses desde o dia em que declarou estado nacional de desastre, e que nunca antes na história de nossa democracia o nosso país foi confrontado com uma ameaça tão grave, e que ele se dirigia ao povo naquela noite em meio a sinais de esperança.[23] Destacou que os números de casos confirmados por dia caíram de 12.000 para 5.000, além da taxa de recuperação ter aumentado de 48% para 80%, e que, até aquele dia, 11.667 pessoas vieram a óbito por causa da COVID-19. Assim, o presidente afirmou que se não tivéssemos agido tão rapidamente e decisivamente como nós agimos – e se não tivéssemos levado a ameaça tão a sério – muito mais vidas teriam sido perdidas. Ainda afirmou que o progresso na luta contra o vírus não seria possível sem os sacrifícios feitos por vocês, pessoas da África do Sul.
Em julho de 2019, o Presidente Ramaphosa foi acusado de corrupção, pois, de acordo com Busisiwe Mkhwebane, líder da agência anticorrupção do país, Ramaphosa não passou as corretas informações a respeito de uma doação de US $36.000, de uma companhia de logística que recebeu na sua campanha de 2017. Além disso, o líder da agência também acusou o atual presidente de desrespeitar o código de ética da ANC, pois não apresentou o financiamento de campanha completo no prazo de 30 dias. No entanto, alguns especialistas questionaram o momento em que essa acusação foi feita, visto que foi na mesma semana em que o ex-presidente Jacob Zuma, acusado de fazer parte de um grande esquema de corrupção, foi chamado para testemunhar. Desde 2018, ano em que Zuma foi forçado a renunciar e em que Ramaphosa assumiu a presidência do país, a ANC, partido presente no governo desde o fim do apharteid, se dividiu em dois grandes grupos: o que apoia Jacob Zuma e o que apoia Cyril Ramaphosa. É notório que Ramaphosa, desde o ínicio, sofre grande pressão e oposição da fração rival do partido.
Já em julho de 2020, um novo escândalo de corrupção se alastrou pelo governo de Ramaphosa, mas agora relacionado a verba destinada ao combate à Covid-19. A mídia local passou a denunciar membros do governo e empresários por terem desviados recursos do pacote econômico relacionados, entre outros, a fabricação de máscaras, a distribuição de alimentos e de campanhas de conscientização. Em um pronunciamento do dia 23 de julho, em que muitos sul-africanos encontravam-se ansiosos pelos assuntos que seriam abordados, o presidente pontuou que em abril, ao anunciarem o Estado Nacional de Desastre, um pacote econômico emergencial no valor de R500 bilhões (US$ 26,3 bilhões) foi liberado, e que essa verba foi destinada a resposta social e econômica no combate contra a pandemia.[24] Informou, também, que no final de julho foi autorizado um pacote no valor de R50 bilhões (US$ 2,6 bilhões) destinados para auxiliar aqueles que se encontram desempregados e sem ajuda financeira no momento, e que cerca de R2.2 bilhões (US$ 115 milhões) já foram pagos em parcelas de R350 (US$ 18), as quais a população começou a receber em maio, e que esse benefício continuará sendo pago por um período de 6 meses. Ramaphosa buscou deixar claro que a verba do pacote de assistência social e econômica está sendo destinada para ajudar os milhares de sul-africanos e empresas a passarem por esse momento difícil. No entanto, segundo ele, sua preocupação e a do povo são as verbas que não foram utilizadas corretamente ou que foram roubadas, são os preços acima do seu valor real, a verba destinada às parcelas da alimentação desviadas, ou seja, todo e qualquer situação onde haja corrupção ou uso indevido do dinheiro público.
Ainda no pronunciamento do dia 23 de julho, Cyril Ramaphosa anunciou algumas medidas que estão sendo tomadas para prevenir, combater e punir atos corruptos relacionados ao combate à Covid-19, entre elas: 1. O Tesouro Nacional passou a emitir regulamentos que garantem que a aquisição emergencial de suprimentos e serviços atendam aos requisitos constitucionais de equidade, competitividade, transparência e custo efetivo; 2. Uma regulação que proibe o aumento excessivo dos preços sem justificativa; 3. O governo estabeleceu um centro colaborativo e coordenado com o intuito de unificar os esforços das agências jurídicas, para evitar, detectar, investigar e processar os casos de corrupção relacionadas a pandemia, principalmente de distribuição de alimentos, subsídios de assistência social e aquisição de equipamentos médicos. Por fim, comunicou que a luta contra o vírus tem conduzido os recursos e as capacidades ao limite, e que as consequências para aqueles que burlarem ou violarem a lei serão bastante severas, e reforçou a ideia de que o combate à corrupção deve ser uma luta de todos os cidadãos, de todos as esferas da sociedade.
Cyril Ramaphosa, que assumiu o governo afirmando que seria construída uma nova era na África do Sul, e que casos de corrupção não mais seriam aceitos, se posicionou afirmando que a corrupção durante um desastre nacional é um tipo particularmente hediondo de crime, e os autores serão tratados de forma decisiva e dura[25], e que é como um bando de hienas circulando presas feridas[26]. No entanto, uma parcela significativa da sociedade vem alegando que suas ações no combate à corrupção não estão sendo suficientes, principalmente por acreditarem que as mudanças estão sendo relativamente lentas, mas, de acordo com o presidente, a única ação que o governo pode adotar é a de fortalecer as instituições ligadas ao combate ao crime e conceder a elas espaço para trabalharem, e que o dia que você possuir um presidente que saia e prenda, julgue e condene as pessoas, você deve correr para as colinas[27].
No dia 23 de agosto, Ramaphosa escreveu uma carta para os membros da ANC, afirmando que nas últimas semanas alguns membros do partido foram associados aos casos de corrupção relacionados ao combate a Covid-19, e relembrou que na 54° Conferência Nacional da ANC, em dezembro de 2017, foi discutido sobre o aumento da corrupção e debatido que tal prática não condiz com a missão que eles possuem em servir o povo e de utilizar os recursos do país para alcançar o desenvolvimento e a transformação[28]. No entanto, ele anunciou que apesar de todo esforço, trabalho e dedicação durante esse período, a corrupção é um dos maiores desafios que nossa sociedade enfrenta, e que a ANC pode até não estar sozinha no banco dos réus, mas ela está como acusada número um. Além disso, o presidente comunicou que o Comitê Executivo Nacional da ANC (NEC), reconheceu que tais ações não podem ser justificadas e nem esquecidas, e que o NEC resolveu se separar do passado e agir, e que, para lutar contra a corrupção no partido é preciso implementar sem atrasos as resoluções estabelecidas pela 54° Conferência Nacional da ANC. Ramaphosa também deixou claro que aqueles que veem a ANC como um caminho para a riqueza, para o poder, para influenciar ou status devem ter consciência de que não pertencem ao partido, e que eles devem mudar seus caminhos ou devem sair. Além disso, ele esclareceu que a corrupção não está presente apenas nesse movimento e em seus membros, os quais, segundo ele, a maioria se coloca contra qualquer tipo de suborno, mas que, como um movimento, eles ainda não foram capazes de colocar um fim nesse problema.
Em adição às medidas adotadas acima, no dia 31 de agosto, o presidente anunciou que a NEC autorizou que todos os membros do partido que estejam sendo acusados e investigados de corrupção se afastem de seus cargos até que todo o processo esteja concluído. No entanto, ele informou que meras alegações contra alguém não serão suficientes para que haja o afastamento, mas que, uma vez confirmadas, tal ação será tomada. Dessa forma, percebe-se que o sentimento de apreensão e descontentamento que tomou conta da sociedade sul-africana nas últimas semanas tiveram um impacto negativo na popularidade política de Cyril Ramaphosa, além de tornar sua relação com alguns membros do partido ainda mais desgastada.
O rigoroso lockdown estabelecido pelo governo sul-africano também influenciou na queda da popularidade de Cyril Ramaphosa. Em um artigo publicado no site The Conversation, o autor expressa a indignação, a qual diversos sul-africanos compartilham, sobre a forma como o novo normal foi estabelecido, pois, segundo ele, as ações tomadas agora — como toque de recolher, proibição na venda de cigarros e bebidas alcóolicas, não ser permitido sair de casa para outras atividades a não ser as essenciais — relembram de forma bem significativa o tempo do apharteid, e é como se o país estivesse andando para trás.[29] Por esse motivo, os cidadãos brancos não se encontram muito satisfeitos com o atual governo, o qual vem exercendo pequenas e desagradáveis formas de poder, e que, além disso, eles estão tendo a oportunidade de sentir parte do que os negros sofreram durante os anos de segregação racial. O autor também destaca que outra razão para a insatisfação desse grupo pode ser o fato dele estar sendo atingido economicamente, uma vez que a economia global e, principalmente, a nacional estão sofrendo grandes consequências da pandemia de Covid-19.
Em junho de 2020, durante sessão híbrida da Assembleia Nacional, o presidente sul-africano respondeu a uma pergunta do Pieter Groenewald, do partido Freedom Front, sobre o crescimento da economia e afirmou que uma economia inclusiva é o que deveria estar ocupando você, ao invés de continuarmos segurando os privilégios que os brancos sempre tiveram neste país.[30] Cyril Ramaphosa também foi alvo de críticas desse grupo quando, no início de junho, em resposta ao movimento Black Lives Matter, afirmou que há uma ordem natural de coisas que encoraja os sul-africanos brancos a [ter] explosões racistas[31], e que todos esses diversos fatores racistas e segregacionistas acabaram por causar a morte de um homem negro – George Floyd – por policiais brancos nos Estados Unidos. Contudo, tal discurso acabou sendo questionado por alguns indivíduos nas redes sociais, os quais alegavam que não viam a ligação entre as atitudes racistas de sul-africanos brancos com a morte de George Floyd, e que Ramaphosa, de alguma forma, estava praticando uma cruzada contra as pessoas brancas[32]. Assim, essa série de eventos acabaram por colocar em suspense a hegemonia e a imagem de liderança que o presidente possuía frente aos sul-africanos brancos.
Além dos fatos explicitados acima, o aumento do número de casos de feminicídio durante a pandemia de Covid-19 também influenciou de forma ativa na popularidade de Ramaphosa. O país africano é conhecido por ser um local inseguro no quesito violência contra mulher e, segundo dados divulgados pelas autoridades, mais de dois mil e setecentas mulheres sul-africanas e mil crianças foram assassinadas em 2019.[33] No pronunciamento oficial do dia 17 de junho , realizado quando se completavam cem dias da primeira infecção no país pela Covid-19, o presidente da África do Sul comunicou que há outra pandemia que está variando na África do Sul – a morte de mulheres e crianças pelos homens do nosso país[34]. Informou, ainda, que durante os 3 primeiros meses de lockdown, não menos que 21 mulheres e crianças foram assassinadas, e que seus assassinos pensaram que poderiam silenciá-las. Porém não nos esqueceremos delas e falaremos por elas quando não puderem. Ramaphosa também anunciou que agora possuem um Plano Estratégico Nacional para combater os feminicídios. De acordo com a fundadora do Black Womxn Caucus, Fatimata Moutloatse, as restrições do lockdown estão ampliando a já existente violência de gênero.[35] Violência esta que, segundo a Ministra da Mulher, Juventude e Pessoas com Deficiência, Maite Nkoana-Mashabane, não será combatida apenas pelas autoridades governamentais, e que é preciso a ajuda e colaboração das comunidades para derrotar essa epidemia.[36]
Assim, ao realizar uma análise dos apoiadores e dos críticos de Ramaphosa no momento pré-pandemia e durante esses quase 6 meses de Estado Nacional de Desastre, percebe-se que, por mais que a aprovação política esteja por volta de 61%, como divulgou o jornal The South African no início de agosto, o que pode ser considerado relativamente bom, a sua hegemonia política e confiança frente a sociedade foram abaladas durante esse período. Como explicitado acima, o rigoroso lockdown, que trouxe duras consequências a economia nacional e ao cotidiano social, e as acusações de corrupção relacionadas ao combate à Covid-19, podem ser considerados um dos principais fatores que fizeram com que a imagem do presidente sul-africano não fosse beneficiada durante esse período.
Conclusão
Cyril Ramaphosa, que assumiu a presidência da África do Sul com o intuito de não mais dar espaço para a máquina burocrática que o governo de Zuma transformou o país, mas sim de recuperar o prestígio de Nelson Mandela, vem se destacando de uma parte específica do partido. Tendo em vista que, possui um estilo particular e contrário a burguesia formada durante o governo anterior, a qual apresenta comportamentos similares aos dos brancos na época do apharteid. Pesquisas realizadas no final de 2019, após as eleições gerais do país, mostram que a ANC já não mais possuía a hegemonia política, mas que, mesmo com os casos de corrupção e a perda de sua essência, o partido ainda apresentava grande impacto e importância frente à sociedade. Isso ocorre devido ao que a ANC representa no imaginário social, já que é associada à luta contra o regime segregacionista, à distribuição e devolução de terras tomadas, à garantia de água potável e ao saneamento de grande parte do território nacional, além de estabelecer um dos maiores centros de tratamento para pacientes portadores de HIV. Dessa forma, por mais que muitos tenham conhecimento das ações problemáticas e ilegais que tomaram parte do partido, eles escolhem acreditar e apoiar mais uma vez seus membros, optando, assim, por focar nos benefícios sociais e políticos alcançados por eles durante esses anos. Assim, Ramaphosa, desde 2018, busca estabelecer novamente sobre a sociedade os princípios da solidariedade, equidade, transparência e harmonia.
A África do Sul é tida como um dos principais atores do continente africano, tendo em vista que é um dos países mais desenvolvidos e com uma das maiores economias, o que a coloca numa posição diferenciada frente aos outros Estados. Nos últimos anos ela atuou de forma proativa e decisiva nas questões existentes em quase todo o território da África, principalmente na busca pela estabilidade em regiões com conflitos e por meio de ajuda financeira. No entanto, parte da comunidade africana acredita que suas ações durante esse período não estão sendo claras e suficientes. Assim, Ramaphosa busca levar os valores de equidade, solidariedade e transparência não apenas para o território nacional, mas também para o continente africano, lutando contra o necroliberalismo que assola essa região por décadas. Mbembe afirma que ao olhar para o neoliberalismo, que, segundo ele, pode ser chamado de necroliberalismo, será possível perceber que há uma noção de que quem não tem valor pode ser descartado, no entanto, os mais atingidos são as mesmas raças, os mesmos gêneros e as mesmas classes sociais de sempre.[37] Dessa forma, pode-se encontrar nas performances e discursos do presidente sul-africano fundamentos e características que se posicionam contrárias a essa tendência, em especial no seu pronunciamento em comemoração ao Freedom Day, quando afirmou que na África do Sul que nós queremos, nenhum homem, mulher ou criança passará fome porque eles terão os meios para ganhar uma renda.
Assim, a resposta da África do Sul, por meio de Ramaphosa, no combate à Covid-19 priorizou a saúde, a segurança e o bem-estar da população, além de fornecer o tratamento necessário para os que forem infectados pelo vírus. Pode-se afirmar, então, que o presidente adotou um discurso científico, enfatizando sempre que necessário que nunca antes na história de nossa democracia o nosso país foi confrontado com uma ameaça tão grave, e por esse motivo era necessário adotar medidas extraordinárias. Dessa forma, a resposta do país ficou conhecida pelo seu rigoroso lockdown, o qual permitiu a saída de casa apenas para atividades importantes, como idas aos supermercados, ao hospital e a trabalhos essenciais. Por esse motivo, a curva de infecção da doença no território sul-africano demorou um pouco mais para atingir seu pico, e especialistas acreditam que ela ocorreu por volta do mês de agosto, cerca de 5 meses após a primeira confirmação de caso de Covid-19 no país. No dia 14 de outubro, a África do Sul já estava totalizando 694.537 pessoas infectadas e 18.028 óbitos pelo vírus, o que mostra uma taxa alta de recuperação da doença, mas é um dos países com maiores números de casos do continente africano. Além do que, por apresentar um sistema de saúde pública debilitado, acredita-se que haja uma subnotificação dos números de casos, o que dificulta o conhecimento do verdadeiro cenário. É importante ressaltar também que a comunidade internacional esperava, desde o início das infecções nessa região, e no continente africano de maneira geral, uma situação que fugisse do controle das autoridades. Mas surpreendentemente nos primeiros meses da pandemia o número de casos confirmados nesses territórios era consideravelmente menor do que na Europa e nas Américas, e mais uma vez acredita-se que isso seja graças a baixa capacidade dos sistemas de saúde locais de realizar testes suficientes. Contudo, alguns especialistas argumentam que esse fenômeno também pode ser explicado pelas reações rápidas dos países africanos, como foi o caso da África do Sul
Durante esses meses, o presidente sul-africano se posicionou, por meio de sua revista semanal, seus pronunciamentos oficiais e entrevistas, de maneira objetiva e calma, o que acabou por transmitir uma maior confiança e por tranquilizar de maneira geral a população. Enfatizou também que o medo e o pânico eram vistos como sentimentos perigosos nesse momento, e por mais desafiadora que a Covid-19 seja, o país possui os recursos e os conhecimentos necessários para garantir a segurança e o bem-estar da sociedade. Contudo, percebe-se que o vírus colocou em suspense sua hegemonia no território nacional, esta que no momento pré-pandemia já se encontrava abalada, além de reduzir de forma considerável sua popularidade. Argumenta-se que uma das razões para esse fenômeno foram suas ações extraordinárias durante esse período, principalmente em relação ao lockdown, que impôs rígidas restrições, sem contar as agressões que alguns cidadãos sofreram de militares, o que acabou relembrando o tempo de apharteid. O escândalo de corrupção envolvendo o pacote financeiro emergencial destinado ao combate à Covid-19 também corroborou para que sua aprovação política sofresse uma queda. Assim, mesmo com os diversos desafios encontrados durante esse período de pandemia, percebe-se que sua resposta, de alguma forma, superou as expectativas tanto da comunidade nacional quanto da internacional.
Pâmella Silvestre de Assumpção, Jorge O. Romano, Ana Carolina Aguiar Simões Castilho, Caroline Boletta de Oliveira Aguiar, Érika Toth Souza, Juana dos Santos Pereira, Larissa Rodrigues Ferreira, Myriam Martinez dos Santos e Vanessa Barroso Barreto, Thais Ponciano Bittencourt, Liza Uema, Paulo Augusto André Balthazar, Annagesse de Carvalho Feitosa, Eduardo Britto Santos, Daniel Macedo Lopes Vasques Monteiro, Daniel S.S. Borges, Juanita Cuellar Benavídez, Renan Alfenas de Mattos e Ricardo Dias são pesquisadoras e pesquisadores do grupo de pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)” vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade e ao Curso de Relações Internacionais do DDAS/ICHS da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, registrado no CNPq e com apoio de ActionAid Brasil.
[1] LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987. LACLAU, E. A Razão Populista Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013.
[2] Metodologicamente, ao longo do texto, colocamos em itálico palavras ou significados tanto expressos nas práticas discursivas dos atores como aquelas que achamos adequadas, em termos de significado, pelo trabalho analítico e que gostaríamos de destacar. Como referencia neste caso ver: EL PAÍS. Ramaphosa, um ex-sindicalista convertido em bilionário no comando da África do Sul. El País, 15 fev 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/15/internacional/1518698794_406467.html
[3] ENGLAND, Andrew. Cyril Ramaphosa defends role in run-up to ‘Marikana massacre’. Financial Times, 11 ago 2014. Disponível em: https://www.ft.com/content/44d49cd4-2164-11e4-a958-00144feabdc0
[4] PISANELLO, Laura. President Ramaphosa highlights importance of striving for equality in Freedom Day address. Fourways Review, 27 abr 2020. Disponível em: https://fourwaysreview.co.za/347712/president-ramaphosa-highlights-importance-of-striving-for-equality-in-freedom-day-address/
[5] THE PRESIDENCY. President Cyril Ramaphosa: Measures to combat Coronavirus COVID-19 epidemic. South African Government, 15 mar 2020. Disponível em: https://www.gov.za/speeches/statement-president-cyril-ramaphosa-measures-combat-covid-19-epidemic-15-mar-2020-0000
[6] RAMAPHOSA, Cyril. #COVID19. 2020. (06m47s). Disponível em: https://www.pscp.tv/w/1jMJgQZangmKL
[7] BBC NEWS. Coronavirus: South Africa reports first deaths as lockdown begins. BBC, 27 mar 2020. Disponívem em: https://www.bbc.com/news/world-africa-52058717
[8] Termo utilizado por Cyril Ramaphosa para tratar da ida do exército às ruas para ajudar na fiscalização do lockdown. Como referência neste caso ver nota 6.
[9] THE PRESIDENCY. President Cyril Ramaphosa visits Mpumalanga COVID-19 Coronavirus facilities, 3 Jul. South African Government, 2 jul 2020. Disponível em: https://www.gov.za/speeches/president-cyril-ramaphosa-visits-mpumalanga-covid-19-coronavirus-facilities-3-jul-2-jul
[10] RAMAPHOSA, Cyril. Visit to Mpumalanga #COVID19 #CoronaVirusMP. 2020. (04m14s). Disponível em: https://www.pscp.tv/w/1zqKVegkqrPxB
[11] Ibid., nota 5.
[12] THE PRESIDENCY.President Cyril Ramaphosa: Additional Coronavirus COVID-19 economic and social relief measures. South African Government, 21 abr 2020. Disponível em: https://www.gov.za/speeches/president-cyril-ramaphosa-additional-coronavirus-covid-19-economic-and-social-relief
[13] Ibid., nota 4.
[14] Ibid., nota 5.
[15] THE PRESIDENCY. Statement by President Cyril Ramaphosa on progress in the national effort to contain the Covid-19 pandemic, Union Buildings, Tshwane. The Presidency Republic of South African, 15 ago 2020. Disponível em: http://www.thepresidency.gov.za/speeches/statement-president-cyril-ramaphosa-progress-national-effort-contain-covid-19-pandemic%2C-union-buildings%2C-tshwane-1
[16] ISILOW, Hassan. Africa launches medical supplies platform for COVID-19. AA, 17 jun 2020. Disponível em: https://www.aa.com.tr/en/africa/africa-launches-medical-supplies-platform-for-covid-19/1880710
[17] eNCA. COVID-19: Ramaphosa applauds media for informing the public. eNCA, 31 mai 2020. Disponível em: https://www.enca.com/news/sanef-highlights-covid-19-impact-media-industry
[18] BRATT, Michael. Cyril Ramaphosa and the media: Will he modernise the ANC’s relationship with the press? The Media Online, 20 dez 2017. Disponível em: https://themediaonline.co.za/2017/12/cyril-ramaphosa-and-the-media-will-he-modernise-the-ancs-relationship-with-the-press/
[19] IPSOS. Cyril Ramaphosa popular amongst South Africans, but political parties questionable. Ipsos, 11 fev 2020. Disponível em: https://www.ipsos.com/en-za/cyril-ramaphosa-popular-amongst-south-africans-political-parties-questionable
[20] MAIL & GUARDIAN. “A new dawn”- President Cyril Ramaphosa’s maiden SONA in full. Mail & Guardian, 16 fev 2020. Disponível em: https://mg.co.za/article/2018-02-16-a-new-dawn-president-cyril-ramaphosas-maiden-sona/
[21] EVANS, Sarah. Covid-19: News24 readers approve of government, president’s handling of pandemic – new poll. News24, 27 jun 2020. Disponível em: https://www.news24.com/news24/southafrica/investigations/covid-19-news24-readers-approve-of-government-presidents-handling-of-pandemic-new-poll-20200627
[22] HEAD, Tom. Ramaphosa’s ‘popularity’ plummets – which groups distrust him the most? The South African, 20 ago 2020. Disponível em: https://www.thesouthafrican.com/news/how-popular-ramaphosa-ratings-dislike-trust-which-groups-most/
[23] Ibid., nota 15.
[24] CHOTHIA, Andrea. Live stream: Ramaphosa to address the nation on Thursday 23 July. The South African, 23 jul 2020. Disponível em: https://www.thesouthafrican.com/news/watch-live-stream-free-cyril-ramaphosa-address-nation-what-time-thursday-23-july-2020/
[25] ISILOW, Hassan. South Africa to firmly act on COVID-19 corruption cases. AA, 05 ago 2020. Disponível em: https://www.aa.com.tr/en/africa/south-africa-to-firmly-act-on-covid-19-corruption-cases/1931823
[26] THE PRESIDENCY. From the desk of the President, Monday, 03 August 2020. The Presidency Republic of South African, 03 ago 2020. Disponível em: http://www.thepresidency.gov.za/from-the-desk-of-the-president/desk-president%2C-monday%2C-03-august-2020
[27] MADIA, Tshidi. ‘History will absolve me’ – Ramaphosa on fight against corruption. News24, 09 set 2020. Disponível em: https://www.news24.com/news24/southafrica/news/history-will-absolve-me-ramaphosa-on-fight-against-corruption-20200909
[28] NEWS24. Cyril Ramaphosa | The ANC is ‘accused number one’ for corruption. News24, 23 ago 2020. Disponível em: https://www.news24.com/news24/opinions/voices/cyril-ramaphosa-the-anc-is-accused-number-one-for-corruption-20200823
[29] EVERATT, David. Lockdown is riling black and white South Africans: could this be a reset moment? The Conversation, 10 mai 2020. Disponível em: https://theconversation.com/lockdown-is-riling-black-and-white-south-africans-could-this-be-a-reset-moment-138044
[30] FELIX, Jason. Help to grow an inclusive economy – Ramaphosa tells white South Africans. News24, 19 jun 2020. Disponível em: https://www.news24.com/news24/southafrica/news/help-to-grow-an-inclusive-economy-ramaphosa-tells-white-south-africans-20200619
[31] HEAD, Tom. Ramaphosa’s contentious ‘white South Africans’ remarks: Here’s the context. The South African, 08 ago 2020. Disponível em: https://www.thesouthafrican.com/news/ramaphosa-white-south-africans-comments-what-context-george-floyd/
[32] Ibid., nota 31.
[33] ADEBAYO, Bukola. South Africa has the continent’s highest Covid-19 cases. Now it has another pandemic on its hands. CNN, 19 jun 2020. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/06/19/africa/south-africa-gender-violence-pandemic-intl/index.html
[34] THE PRESIDENCY. President Cyril Ramaphosa: South Africa’s response to the COVID-19 Coronavirus Pandemic. South African Government, 17 jun 2020. Disponível em: https://www.gov.za/speeches/president-cyril-ramaphosa-south-africa%E2%80%99s-response-covid-19-coronavirus-pandemic-17-jun-2020
[35] Ibid., nota 34.
[36] Ibid., nota 34.
[37] BERCITO, Diogo. Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’. Folha de S. Paulo, 30 mar 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml