Vale do Anhangabaú: um palimpsesto sem valor?
Na reforma do Vale do Anhangabaú, a noção de projeto urbano surge com base em um tipo de cooperação, que persegue um consenso substantivo e prático entre administração pública e investidores privados.
Anhangabaú
Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora…
Oh larguezas dos meus itinerários!…
Estátuas de bronze nu correndo eternamente,
num parado desdém pelas velocidades…
O carvalho votivo escondido nos orgulhos
do bicho de mármore parido no Salon…
Prurido de estesias perfumando em rosais
o esqueleto trêmulo do morcego…
Nada de poesia, nada de alegrias!…
E o contraste
boçal do lavrador
que sem amor afia a foice…
Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,
onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?
“Meu pai foi rei!
– Foi.- Não foi. -Não Foi,”
Onde as tuas bananeiras?
Onde o teu rio frio escarnecido pelo nevoeiros,
contando histórias aos sacis? …
Meu querido palimpsesto sem valor!
Crônica em mau latim
cobrindo uma écloga que não seja de Virgílio!…
Mário de Andrade – Paulicéia Desvairada,1922
Pensar o Vale do Anhangabaú, ou Parque do Anhangabaú, na cidade de São Paulo significa pensar o caráter ambíguo e polissêmico do conceito de paisagem histórica, desenvolvido ao longo do século XX a partir de duas acepções fundamentais. A primeira refere-se à concepção estético-perceptiva, vinculada ao juízo estético e às teorias do belo, do pitoresco e do sublime. Os registros de viajantes (como o austríaco Thomas Ender -1817, os ingleses Burchell -1827 e Landser -1826, e o francês Lebret -1827), a descrição de Saint Hilaire e a sequência de litografias de Jules Martin (1877) materializaram a “consagração estética” da colina histórica, ladeada pelo Vale do Anhangabaú e pela Várzea do Carmo, e produziram imagens paisagísticas de grande relevância na iconografia histórica da cidade. A segunda, ao contrário, deriva de pressupostos da geografia física e das ciências naturais, tendo em vista as particularidades do sítio, segundo uma acepção “geoecológica” ou “ecogeográfica”, quando se coloca no centro do debate o projeto da metrópole contemporânea e os efeitos danosos da impermeabilização exacerbada do solo em função de projetos urbanísticos que, reiteradas vezes, utilizaram os fundos de vale como eixos de articulação regional.
Ao recorrer ao conceito grego de simetria, na defesa do primeiro projeto executado para o Vale do Anhangabaú pelo paisagista francês Joseph Antoine Bouvard, o engenheiro português Victor da Silva Freire, em 1911, então à frente da Secretaria de Obras da cidade de São Paulo, “consubstanciou a passagem de uma imagem natural de chácara de chá àquela de ‘representação’” (RETTO JR, 2003), o que reforçaria, em uma operação de estratificação das camadas de tempo, a hipótese de conceber essa paisagem como matriz cultural da cidade de São Paulo. Por um lado, esta demonstra o que, para muitos historiadores, marcaria o início do urbanismo na cidade de São Paulo (SIMÕES JR, 2004) e, por outro, uma evocação como “fundamento identitário”. No primeiro momento, o Parque do Anhangabaú, o Teatro Municipal e o Edifício Martinelli formariam a nova relação entre a escala da paisagem e a silhueta das construções, relação que configurou o cenário representativo da Metrópole do Café.
Uma terceira dimensão deriva da renovação do modo de fazer urbanismo e do desenvolvimento econômico a partir da década de 1980. No momento do lançamento do Concurso para o Parque do Anhangabaú, o urbanismo – naquilo que tem de específico – incorporou de fato no seu corpo disciplinar a questão das áreas internas à malha urbana como paisagem: reconfiguração de partes das cidades como paisagem a partir de projetos de reestruturação de áreas ferroviárias, tramas urbanas e centros históricos, ações que começaram a delinear um percurso gradual, colocando o projeto de espaços abertos como conectores das estruturas urbanas e territoriais.
(…) “Nessa cidade, ‘como lugar revestido de sentido’ e de valor simbólico, político, social e econômico, cada tentativa de projeto do fragmento internalizado na paisagem estabelecia um diálogo franco com as camadas de tempo, mesmo que estas fossem fluídas e mutantes e em condições de viver, regenerar-se e absorver novos significados (RETTO JR, 2015), mas também assumia um valor estratégico para mobilizar recursos para o marketing urbano.
Na época de sua implantação integral, o vencedor do concurso, o projeto de Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass, agora destruído para ceder espaço ao projeto de Biselli Katchborian Arquitetos Associados, assinalou um diferencial em resposta ao cenário político nacional de então: o viés político do espaço público privilegiado que se transformara em símbolo da retomada democrática. A formulação final do projeto Wilheim-Kliass levou a uma radical redefinição do fragmento urbano e a uma clara rediscussão sobre o espaço público moderno, o reposicionamento de problemas relevantes, o rearranjo de instrumentos e sobre o próprio campo disciplinar, a partir da associação entre urbanismo e paisagismo na figura daqueles dois protagonistas.
Na atual proposta em curso, a noção de projeto urbano surge com base em um tipo de cooperação, que – no respeito formal da pluralidade de interesses e papéis envolvidos – persegue um consenso substantivo e prático entre administração pública e investidores privados. Esta foi, desde o início, a opção para implementar o novo projeto. Além de ser o resultado de uma colaboração público-privada, o projeto – apesar de sensível à importância da paisagem simbólica – mira a continuidade da valorização urbana a partir de um solução que otimiza o uso do solo, em função de um quadro de proprietários e de necessidades, com vistas a realizações em fases articuladas em médio e longo prazos.
Segundo essa abordagem, o projeto urbano não só espelha a resposta formal da intenção ou desígnio da concessão, mas assume um modelo unitário que entende as colaborações como forma de fazer melhorias urbanas (infraestrutura e espaço público), mas também seguir um rigoroso cronograma de intervenções. O contrato com os agentes privados torna-se a estratégia central de regulação e controle público de uma visão unitária na sua articulação flexível no tempo.
Mário de Andrade já registrara essa política predatória e as inúmeras transformações da área em questão, em seu Pauliceia Desvairada (1922), quando ele se refere ao Vale do Anhangabaú como um “palimpsesto sem valor”. Benedito Lima de Toledo também, ao situar o Vale como “um laboratório privilegiado de estudos sinalizando as transformações da cidade no decorrer deste século. (São Paulo: Três cidades em um século. São Paulo: Duas Cidades, 1983)
Nesse sentido, refletir sobre a nova proposta para o Vale do Anhangabaú, é também expor as vísceras de uma política mesquinha que, em pleno século XXI, insiste em utilizar dinheiro público em obras de grande visibilidade com orçamentos exorbitantes, em vez de explorar possibilidades para garantir políticas públicas afirmativas e duráveis que qualifiquem a cidade e o território a partir de continuidades.
Portanto, qualquer proposta em torno do Vale do Anhangabaú demandaria uma reflexão que explorasse não só a polissemia intrínseca da paisagem histórica, mas a relação entre esta e o planejamento urbano. Os parâmetros históricos identificados, os quais deveriam reforçar seu significado e ressaltar a necessária relação entre política territorial e paisagem, parecem não estar produzindo efeito.
O modo como a paisagem vem sendo tratada dentro dos instrumentos de planejamento e o papel a ela designado suscitam perplexidades, quando não insatisfação, mesmo em um país como o Brasil, com grande tradição de planejamento urbano e de paisagismo. Todavia, falar genericamente de insatisfação a propósito da paisagem não parece suficiente, sobretudo quando daí derivam posições muito diversas com dois significados diferentes: insatisfação pela implantação do novo projeto, suas fases, formas de consultas e configuração formal, etc.; e insatisfação pelo modo de gerir as paisagens e pelo não entendimento de como o tema se enquadra no processo do planejamento territorial e urbano, apesar dos inúmeros estudos já realizados.
Boa parte dos problemas de planejamento ligados à paisagem parece derivar da incapacidade de considerar o significado (cultural, simbólico e material) de um lugar de relevância histórica. Em geral, muito se fala de paisagem, mas o planejamento, até o momento, ocupa-se muito mais de sistemas e redes de bens, projetando sobretudo espaços verdes. Enquanto isso, a superação das formas de tutela relativas à “singularidade” parece impensável, considerando o nosso sistema jurídico e o nosso aparato normativo. Se cada forma de planificação e cada projeto urbano respondem a uma demanda específica, vale indagar como o Plano Diretor, entendido na forma de instrumento técnico “tradicional”, poderia ser o instrumento mais adequado para acolher uma dimensão tão complexa como a paisagística?
O importante não é apenas ver como óbvia a necessidade de incluir a paisagem entre os objetos do planejamento urbano, mas entender que os instrumentos para geri-la devem ser mais incisivos e condicionar majoritariamente as políticas públicas do território. Há os que entendem que os mesmos instrumentos sejam não só escassamente úteis, mas até mesmo negativos para o planejamento, além de ineficazes para a paisagem. Dentre os que sustentam esse ponto de vista não faltam os que se perguntam se a paisagem pode ser verdadeiramente planificada.
Dessa forma, dois parecem ser os caminhos a serem percorridos. Se a paisagem deve fazer parte da planificação no sentido tradicional e, assim, traduzir-se em um plano codificado, isso não poderia acontecer através de uma pré-codificação do objeto ou de uma definição clara e unívoca de paisagem, de qualquer modo que se queira entender. Ou o contrário, se o que se quer administrar são as transformações de um sistema altamente complexo, o instrumento de gestão não pode ser um plano tradicional de tipo ordenador-prescritivo. Exigem-se, assim, modos de planificação que podem acolher em si e trabalhar com a complexidade e a riqueza da dimensão paisagística, e os modos nos quais o processo de redução e seleção, necessário para a tradução em normativa, seja compartilhado com a sociedade e se distancie o quanto possível das simplificações e do risco de tipificações.
Deveríamos, portanto, questionar: o que se pretende gerir e o que exatamente se administra, incluindo a paisagem nos diversos tipos de instrumentos urbanísticos? E ainda como pode a paisagem ser objeto da planificação? Na tentativa de responder a essa pergunta crucial, cabe aqui uma indagação complementar. Se a paisagem é uma chave interpretativa para o território ou o paradigma de novas demandas sociais e repleto de nostalgias e esperanças, que sentido há na sua planificação? Segundo essa noção, “não existe paisagem sem projeto”, ou seja, a paisagem (como também o ambiente e o território) não é um “dado” neutro e indiferente às escolhas da sociedade contemporânea. Essa questão traz embutidas duas perguntas-chave: ela deve mesmo ser planificada e governada? Por que?
Paradoxalmente, a dificuldade parece surgir justamente enquanto amadurece a consciência do imprescindível significado sociocultural expresso por qualquer paisagem, mesmo a aparentemente “mais natural”, como resultado de complexos processos de “edificações” antrópicas que não se limitam a modelar o solo em função das exigências produtivas, mas projetam, sobre o território, novas imagens, novas esperanças e novos olhares. Estes, de um modo ou de outro, “deixam signos”. Desse ponto de vista, o mesmo conceito de “paisagem cultural” (sobre o qual os últimos decênios registraram uma ênfase crescente), refletido nas novas listas do patrimônio mundial da Unesco, pode ter perdido, pouco a pouco, a própria capacidade originária distintiva para encontrar sempre uma aplicação mais ampla.
No fundo, como já observado, paisagens antrópicas também podem ser consideradas paisagens culturais, se considerarmos que sua fruição (em termos de estrada de acesso, pontos de observação, instruções para o uso, etc.) responde a um preciso desenho ordenador, que seu entorno reflete uma determinada interpretação do território interessado e uma concessão mais ou menos explícita à natureza. Se a criação da paisagem implica a inscrição de um princípio de ordem na materialidade dos lugares, cada paisagem é uma paisagem cultural. Isto é mais verdadeiro quando se constata que a crise da paisagem reflete a crise do habitar contemporâneo e do modo como a nossa sociedade habita a terra.
Mas as mesmas razões que motivam a planificação e que conferem centralidade ao binômio paisagem-planificação também obrigam a colocar em discussão as missões, os estatutos disciplinares, os métodos e as filosofias da própria planificação. Se aceitamos a ideia de que não se defende a qualidade da paisagem apenas com medidas específicas de vínculos ou limitações, e menos ainda com políticas plurissetoriais e convergentes de gestão territorial, deve-se redefinir o papel da planificação.
Diante do exposto, propõe-se outro movimento que implica um redimensionamento do objeto: da mesma forma que o planejamento estratégico (que não atua como substituto para outras formas de planejamento, mas, em geral, como quadro de referência de longo prazo), deve-se considerar a paisagem não como subproduto, mas como um constructo estratégico, o referencial de políticas e ações. Dessa forma, desde o início do processo de planejamento, escolhas específicas sobre aspectos específicos poderiam trazer resultados mais satisfatórios. No entanto, parece-me que dentro de tal processo em que diferentes “imagens da paisagem” são explicitadas e comparadas, mesmo a possível identificação de componentes estruturais como áreas de proteção e de projeto adquire um novo significado e valor. Dentro desse cenário, a paisagem da colina central deveria ser redefinida como um imaginário social e ser preservada com ações reais visando ao seu tombamento (volumétrico).
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Coordenador do Curso Internacional de Especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagismo, Território. Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza – IUAV di Venezia (2003) com a tese “Escalas de Modernidade: Vale do Anhangabaú. Estudo de uma estrutura urbana”, orientada pela Profa. Dra. Maria Cristina da Silva Leme (USP) e Profa. Donatella Calabi (IUAV). Professor-pesquisador Visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).