Van der Keuken, cineasta solidário
Cineasta, fotógrafo, crítico e escritor holandês, nascido em 1938, Johan van der Keuken dirigiu cerca de 50 filmes em quarenta anos. Filmes de fusão ? fusão de mundos, fusão de corpos ? que nos lembram que “fazemos parte do mesmo tecido”Philippe Lafosse
Com a mesma atenção, a mesma determinação em captar a imagem, a câmera passa de moedas e notas de jogadores clandestinos em uma rua de Nova York aos inúmeros telefones e à agitação de uma Bolsa de Amsterdã. Ali, o jogo e o ganho também são causas de atividade febril, mas o dinheiro se escuta, não se vê. “Acho que o dinheiro, o capital, o ouro, tudo o que tenha relação com a cupidez, é a única coisa que te autoriza a acordar as pessoas no meio da noite”, diz um consultor de investimentos, sentado em sua poltrona. Fora, atrás da vidraça: a neve, a lama, o frio… Mais adiante, por trás da realidade do escritório: operários com capacete trabalham, são vistos em contra-luz. Depois, é a escultura de um leão que ruge ou a carne pendurada num abatedouro que pontuam o discurso calmo de um presidente de banco de Hongkong explicando que o dólar não aumentará mais do que o preço do bife enquanto houver gente para comprá-lo…
Estamos em Catmandu, em Burkina Faso, em Paris, no Rio, depois na Palestina, no Tibete, em Sarajevo e no Peru, em Amsterdã e no Mali… Por toda parte, trata-se de “estar presente” onde estiver o homem, onde se escoam o tempo e o mundo, e de “conservar alguma coisa de durável nos rostos, nos seres”. Cineasta, fotógrafo, crítico e escritor holandês, nascido em 1938, Johan van der Keuken dirigiu uns cinqüenta filmes (curtas, médias e longas-metragens) em quarenta anos. Filmes, muitas vezes de grande amplitude, feitos de entrelaçamentos e de incessantes idas e vindas, pobres, mas nunca exóticos. Filmes de fusão ? fusão de mundos, fusão de corpos ? que nos lembram que “fazemos parte do mesmo tecido”.
Voando acima da realidade
Sensível e honesta, a câmera enquadra, reenquadra devagar. Tenta aproximar-se, captar uma luz, uma verdade. Animada pela vontade de “tocar o real”, escuta e torna visível. Nunca exibe. “O que é captado é uma presença e nada mais”, declara o diretor em 1993. “Estávamos por ali, por acolá. Alguma coisa acontece e nós assistimos, alguma coisa acontece porque nós estamos assistindo.E isso basta para criar um elemento de tensão, de confronto: não se trata somente de acompanhar e reter os acontecimentos, mas também deixar-se provocar e interpelar pelo que acontece. É fundamental ser receptivo à tensão do acaso provocado. Cinema-verdade: a verdade de nosso próprio corpo no meio do que se pôs em movimento à nossa volta. O cinema ao vivo: o corpo e a câmera se confundem no ato de uma tomada, enquanto se estiver afinado com o imprevisto que nós próprios iniciamos1“.
Sensível e honesta, a câmera enquadra, devagar. Aproxima-se, capta uma luz, uma verdade. Quer “tocar o real”, escuta e torna visível. Nunca exibe
Numa parede, um buraco negro permite a passagem de um homem; sobre ele, uma pixação adverte: Death. Aqui, é comunidade hispânica de Nova York, impotente de miséria, que luta para sobreviver; sonha-se, todavia, e às vezes improvisa-se um baile na calçada. Momentos de fuga e de alegria junto aos prédios incendiados, para serem reconstruídos para os ricos. Ali, são as crianças de uma favela; depois, asas-delta no céu, que deslizam lentamente como pássaros cansados: “As asas-delta sobrevoam cortiços e favelas”, comenta o diretor. “Os habitantes das favelas vêem as asas-delta sobre suas cabeças. Mas nunca voarão nelas. Só os privilegiados voam de asa-delta. Observam as favelas do alto, mas nunca porão os pés ali.” E prontamente estamos no céu, com o cineasta: “Neste filme, eu queria também desafiar o perigo. Afinal, nada tinha a perder. Agora, estou voando, não há nada de atemorizante. É até confortável estar tão acima da realidade. Sem a dor da pobreza e com um risco mínimo de cair.”
Um olhar jamais saciado
E ainda, aqui e ali, rostos que se contam em off, ou que o cineasta conta. Uma boca, um olho, um perfil… Aquele ali faz pose, esta outra ignora a câmera. Um navio passa lentamente pelo porto de Marselha. Rostos desconhecidos espiam outros, conhecidos: um presidente, um ministro. Um fotógrafo ajeita a posição de casal de noivos. Fala-se de trabalho, da contracepção e do desemprego, da discriminação contra as mulheres e da guerra vista pela CNN… O depoimento do neto de um homem que “achava que os socialistas estavam muito à direita” se desfia com perseverança; cada momento é o elo de uma corrente, cada filme uma sucessão de anéis que compõem um laço em volta do planeta. As línguas se entrecruzam ? inglês, francês, holandês, português, espanhol, linguagem de sinais ? e depois dão lugar aos gestos, ao silêncio, a um saxofone que sobe como um lamento. Descobrem-se cidades, montanhas, desfilam desertos, todas as cores e o preto-e-branco do mundo, sua respiração e o sopro do vento nos galhos.
Em Praga, estes dois homens exibem suas tatuagens, falam da sua miséria. Torcedores de futebol invadem um campo e, de volta a Marselha com o cineasta, escutamos agora jovens falarem da religião islâmica, enquanto que em Amsterdã uma mulher luta com sua surdez. E o otimismo a toda prova deste financista ? porque ele crê na capacidade de adaptação de todos ? antecede estas pessoas que se vê catando nos montes de lixo os restos dos outros. De um continente a outro, em um mesmo movimento, um mesmo olhar jamais saciado, passa-se das multidões aos grupos, dos grupos à família, da família ao indivíduo, volta-se para dentro de um grupo…
O lugar e a finalidade do “eu”
A propósito da trilogia que forma o conjunto “Norte-Sul”, van der Keuken declarava, em 1974: “O sentimento que me perseguiu durante toda a filmagem era o de que eu também poderia ter sido um estudante negro de Camarões (no episódio Dagboek, ou Diário) ou uma mulher frágil, velha antes da idade, no gueto de Colombo, no Sri Lanka (episódio La Forteresse Blanche, ou O Forte Branco), ou um desses Índios sem futuro das montanhas dos Andes, que ficam o dia inteiro sob a influência da coca ou da bebida; ou ainda um habitante da favela El Salvador, no deserto próximo de Lima, a capital peruana (episódio Le nouvel âge glaciaire, ou A Nova Era Glacial). Também eu poderia fazer o que faz esse escravo de colarinho branco perambulando através de um corredor em Dagboek, mas, olhando mais de perto, esse homem me parece mais desconhecido do que muitos outros que moram a léguas de distância2.”
As línguas se entrecruzam ? inglês, francês, holandês, espanhol, linguagem de sinais ? dando lugar aos gestos, ao silêncio, a um saxofone que chora
Já que estamos no mundo, como preocupar-nos com ele? Como não nos preocuparmos com os outros? Já que estamos vivos ao lado dos outros, na mesma canoa, como não vê-los, escutá-los? Como estar com eles, definir sua identidade e a minha? Como testemunhar sobre o nosso presente, sobre o que é e o que será depois deles, depois de mim? Toda a obra de van der Keuken está irrigada por essas perguntas, pelo lugar e finalidade do “eu”, e com toda a humildade.
Tecnologias sexy e expectativas fixas
Acometido por um câncer, o diretor não desiste. Como “observador descontraído”, ele continua a desafiar o mundo, com Nosh, sua companheira há trinta anos, e uma câmera digital: “Tenho que continuar a filmar. Quando não puder criar imagens, morro.” E então, ele segue com imagem e som, “como se faz há anos, rumo a condições de vida distintas, quentes e frias, desertas e povoadas, com a onipresença do homem que supera todos os obstáculos graças às belas histórias que conta a si mesmo para se reconfortar diante do vazio”. O nome do filme será Férias prolongadas. Para ficar vivo até o fim. Até o fim, ficar na luz.
Por iniciativa do programa de televisão francês “Documentaire sur grand écran”, quinze de seus filmes vêm sendo (re)apresentados na França e na Bélgica desde 24 de outubro. “O mercado só recompensa as tecnologias sexy, em detrimento da siderurgia, da metalurgia e de outras indústrias cujos lucros já não são o que eram”, declara um homem de negócios em I love $. Os filmes de Johan van der Keuken não são sexy, não respondem a “expectativas fixas”, mas querem ser “um instrumento de mudança” em nossa sociedade que “visa a limitar o homem”, como dizia ele em Le Chat, curta-metragem de 1968.
Sobre os canais, o sol faz estrelas. Johan van der Keuken, operário do cinema e traço-de-união fundamental, faleceu em 7 de janeiro de 2001. “A arte poderia ser um instrumento de libertação”, pensava ele. (Trad.: Maria Elisabete de Almeida)
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