Viagem ao coração da guerrilha
Reportagem sobre as FARC, o grupo guerrilheiro mais antigo da América Latina: as relações entre os combatentes e o povo, as suspeitas de envolvimento com o narcotráfico, a escalada militar norte-americana, as saídas para pacificar um país onde lutar por justiça social pode ser sinônimo de estar condenado à morteMaurice Lemoine
Popayán (Cauca), seu centro colonial, seu parque recreativo; Colgate-Palmolive, seus grafites: “Sim à globalização… das lutas populares”, “USA nos USA”… Quando, avançando um pouco mais, abandonamos a decantada estrada Panamericana e surgem as estradas de terra com seus lugarejos decadentes, ouve-se o surdo lamento dos campesinos. “Lembro-me que meu pai comprava um leitão por 20 mil pesos e vendia o porco por 320 mil. Hoje, o leitãozinho custa 80 mil pesos e depois de engordá-lo, você o vende por 200 mil”. [1] Com as vacas acontece a mesma coisa. Uma vaca que valia 500 mil pesos há cinco anos, hoje continua valendo 500, mas tudo que é preciso para criá-la aumentou.
Todo mundo vive na beira da estrada. Um pedacinho de terra onde se instala a casa. Os donos das encostas ricas e fofas das fincas [2] são pessoas de fora. Este agricultor que fala sozinho, os olhos fixos na xícara de café, vende sua força de trabalho nessas terras. “Eles me pagam o mínimo, 235 mil pesos [117 dólares, Nota da Tradução] . Só dá para comer”. Um outro, felizardo, possui um pedaço de terra. “Não tenho contas muito precisas, mas a cada mês ela deve me render 180 mil pesos”.
Assim é o interior da Colômbia, que nunca muda. Seus conflitos de demarcação de terras, suas disputas rurais, suas histórias de terra tomadas dos poderosos sempre com lutas sangrentas. O grupo que se organiza para escapar de sua triste sorte e que alguns querem desunir. “Como em toda comunidade, algumas pessoas têm problemas. Nós lhes demos tempo para resolvê-los, lhes explicamos as coisas. Alguns melhoram, outros não”. A velha prudência do campo manda falar as coisas discretamente, evitando explicitá-las. “Tudo isso chega aos ouvidos dos outros. E então acontece o que tem que acontecer. Colocados pra fora, alguns vão embora. Outros morrem. Mas saber quem os matou… são forças desconhecidas do povoado. É possível que algumas pessoas os vejam, mas não sabemos quem são. São forças que surgem para solucionar os problemas em algumas ocasiões”.
“Eu acho que a guerrilha é o exército dos pobres”
Entre eles, há poucos conflitos armados. Fala-se que arrumam “lá em cima” matadores sem eira nem beira, por conta do exército, dos grandes proprietários… “A pessoa que resolve denunciar as injustiças, transforma-se em bucha de canhão. Mais cedo ou mais tarde, os paramilitares vão agarrá-la”. Quanto à guerrilha… silêncio que as queixas de um camponês de repente perturbam. “Quando ela ataca um pueblo, o destrói e mata civis, e com os postes que derruba, o preço da eletricidade aumenta. Quem paga? Nós!”. Tudo isso é dito aos solavancos, como um desabafo. Novo silêncio entre os companheiros. Um homem jovem e forte não se contém: “Eu acho que a guerrilha é o exército dos pobres”. Seu vizinho concorda discretamente. Olhar inquieto, um outro prefere mudar de assunto.
Nessa região, entre 1o e 25 de novembro de 1999, mais de 50 mil camponeses, professores e índios bloquearam a Panamericana (na época ela ligava a Colômbia ao Equador). Queriam protestar contra os cortes feitos pelo presidente conservador Andrés Pastrana em programas sociais copiados de seus antecessores. “Forças ’obscuras’ estão por trás desse movimento”, decreta o exército. Chegam cinco batalhões, a polícia militar, dois generais. “Um deslocamento de forças inacreditável, parece que estamos no Vietnã!” Enquanto choramos os primeiros feridos, os movimentos popular e indígena anunciam a ocupação iminente de Popayán. Na noite do dia 25, uma comissão governamental negocia, concedendo 100 bilhões de pesos (50 milhões de dólares) e desativa in extremis a explosão anunciada. Desde então, para salvar a pele, todos os dirigentes do movimento foram passar uns tempos no campo e evitam dormir duas noites na mesma casa. Mas continuam desenvolvendo sua militância.
Um povoado de Cauca dilacerado por uma chuva lancinante (pouco importa o lugar). Uma mulher com muito frio enrolada em seu xale; “Com esse frio, as pessoas ainda têm filhos! Ai, a vida, que dor de cabeça!…” Sindicalistas visitam o lugar (pouco importa a orientação política). Uma salinha onde dois camponeses falam da dureza da vida: o preço do leite (imposto pela multinacional), os professores (que substituem o governo), as mães (em pé desde às 4 da manhã)…
Os sindicalistas tomam a palavra depois de terem ouvido bastante. Nos conflitos mundiais, fala-se em Fundo Monetário Internacional, G-7, dívida externa… “E o que faz Pastrana? Obedece ordens! Compañeros, ou vocês se organizam, ou as coisas vão piorar”. A assembléia lamenta suas articulações: “Há seis anos, lança o dirigente, a guerrilha do M-19 depôs as armas. Isso resolveu os problemas do povo?” A pergunta é significativa, num momento em que se alardeia a existência, em todo o país, de um clamor pela paz. É um coro unânime que responde: “Não, claro que não!” A conclusão parece tão séria que uma camponesa manifesta seu constrangimento. “É verdade que o sindicato possui ligações com a guerrilha?”
“Escutem. Há diferentes maneiras de estar com a guerrilha. Engajando-se, colaborando ou simpatizando. Ela escolheu seu caminho, nós o nosso. Mas ela não atrapalha o movimento popular. Ela o apóia”. Depois dessa resposta obscura, cada um forma sua opinião. Parece que todos tiraram mesmo sua conclusão. Congratulações, abraços, as pessoas se separam marcando a próxima reunião, “pois é preciso”, arrisca um participante, “que o sindicato nos oriente”.
Na capital, os dois lados negociam
Entre Bogotá (4 milhões de habitantes) e San Vicente del Caguán (21 mil), capital do Caquetá e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo (FARC-EP), há apenas uma hora de vôo a bordo do avião Dornier 328 da Satena, “a linha que integra a Colômbia”. Nunca esse slogan foi tão pertinente. A Satena é dirigida por militares. Em San Vicente, a tripulação da Aeronáutica e seus passageiros civis são recebidos por guerrilheiros. No entanto, estamos em guerra. Os militares não se demoram quase nada, decolam imediatamente.
O exército vem sofrendo fracassos fenomenais — a capacidade ofensiva da guerrilha cresceu espetacularmente nos últimos anos. [3] Desde sua chegada ao poder, o presidente Pastrana (eleito em 21 de junho de 1998) decidiu negociar com a guerrilha mais poderosa, a FARC-EP, e encontra-se pessoalmente com seu chefe, Manuel Marulanda. [4] Apesar das virulentas críticas do Ministério da Defesa, dos generais e da administração americana, o presidente reconhece implicitamente que os revolucionários tomaram as armas por uma causa justa e prevê mecanismos de diálogo. Para conduzi-lo garantindo a segurança dos chefes rebeldes, desmilitarizou cinco municípios: San Vicente del Caguán, La Macarena, Vista Hermosa, Mesetas e Uribe. Uma zona de 42 mil km2 (do tamanho da Suíça ou El Salvador), de onde o exército retirou-se em 7 de novembro de 1998. Onipresente nos arredores, a FARC-EP invadiu pacificamente as cidades e fez de San Vicente seu porto seguro.
No vilarejo, não há aparentemente nenhuma tensão particular. Na vila, mais limpa que outras do seu porte, caminhonetes, taxis amarelos, cantinas barulhentas e alguns guerrilheiros de guarda diante da Casa da Cultura, o PC de lá. Quando chega a noite, eles se retiram.
Sutiã e Kalachnikov
San Vicente ainda está dormindo. Na traseira do veículo que parte rasgando as franjas da noite, uma pequena mulher não para de contar sua vida. Ela nasceu em 1951 e se lembra de um homem que teve sua cabeça cortada — e como se lembra! Recorda-se também da finca. Era preciso buscar água, madeira, trabalhar, trabalhar e trabalhar. Ela vai tagarelando, o carro pulando mais do que o razoável e o motorista dirigindo com uma só mão. “O governo nunca fez nada. A estrada foi arrumada pela guerrilha. Agora as coisas estão tranqüilas”, suspira a señora . “Antes, a essa hora, nós seríamos degolados por delinqüentes”. Acrescenta que esses guerrilheiros são muito jovens e que, nos seus bandos, há muitas mulheres, bastante elegantes. “Você viu, elegantíssimas!”. Um pouco mais adiante ela desce do veículo diante de um sítio isolado. O carro continua por um trajeto de mais de cem quilômetros, em direção a um “ponto de encontro”.
Escondido pela floresta, o acampamento guerrilheiro vive sua existência cotidiana, mistura de disciplina e descontração. Nas ruas que separam os alinhamentos de cambuches — habitações individuais — os rebeldes se exercitam, vestidos em seus uniformes impecáveis, embora um pouco desajeitados. Verde exército com preto, passando por trajes camuflados. Aqui todos são marxistas-leninistas, haja o que houver. Entre eles, não se chamam de compañero, como em todos os movimentos armados da América Latina, mas de camarada.
Vestido com sua eterna camiseta preta com o rosto de Che Guevara, um belo sorriso rasgando sua barba grisalha, o comandante Raúl Reyes — o número um da delegação da FARC-EP na mesa de negociações — se explica: “Por mais que haja problemas no socialismo, a miséria não desapareceu nem da Colômbia nem do mundo. O capitalismo não resolveu nada. Hoje, mais que ontem, existem as condições para continuar a luta. A América Latina está asfixiada pelo modelo neoliberal. A globalização afeta a todos nós”.
Dizer que os combatentes, no seu todo, articulam um discurso “marxistamente” elaborado seria mentir. Eles são jovens demais. Saídos de famílias camponesas de dez filhos que não têm o que calçar, aos doze anos começam a ajudar seus pais na propriedade minúscula, a finquita. E quando freqüentam o primário e aprendem a ler e escrever, não há emprego. Aos 16 anos, encontram uma mulher e lhe fazem dez filhos, os quais educarão na mesma miséria. Em seu Caquetá natal, o pequeno Manuel via passar a guerrilha. “Eu era entusiasmado. Com meus amigos, por causa da situação do país, nós brincávamos de guerra. Eu era sempre guerrilheiro”. Claro, o exército também vigia o campo. “Mas essa era outra história. Os militares sabiam que minha mãe pertencia à oposição. Eles bateram nela por causa disso”. Com catorze anos (hoje ele tem vinte), Manuel uniu-se à FARC. “Com catorze anos, para nós, você não é mais criança. Já tem uma visão bastante clara da situação”.
Caldeirão de excluídos
As coisas são assim, confirma a camarada Olga Marin (membro da comissão político-diplomática), sem querer idealizar a situação. “No setor menos consciente, evidentemente, não se sabe nada sobre o marxismo-leninismo. Eles vêem passar nossos combatentes, bem armados, bem alimentados, que organizam reuniões com a população, lhes explicam o sentido da luta. Eles não têm muitas perspectivas, vive-se melhor na guerrilha do que no campo. Então, eles juntam-se a nós”. Nela encontram um grande número de camponeses chegados sob pressão dos terratenientes, mas também habitantes das cidades e profissionais oprimidos pela situação social, militantes e sindicalistas que abandonaram a oposição legal para escapar ao assassinato.
Uma camponesa magra de cabelos longos, Argeni, diz ter 22 anos. No campo, quem sabe sua idade? Lá reina o machismo: a mulher é duplamente explorada. Sexualmente, nem se fala. Miséria e analfabetismo raramente produzem homens dignos. Quando a guerrilha passava, Argeni, sem outro futuro que o de reproduzir a vida, via mulheres capazes de discutir e argumentar, tratadas de igual para igual pelos combatentes. Ela tinha apenas 15 anos. Quando seus pais perceberam que havia partido, ela já estava longe. [5] Desde então, nunca mais largou sua arma.
Quando chega a época de descanso, num acampamento cheio de casais de mãos dadas, com armas na cintura (e contraceptivos no bolso) é de sutiã e Kalachnikov que ela faz sua ocupações. “Se temos um problema e o fuzil está a cem metros, antes de alcançá-lo, você já está morta”. Mas não se importa muito com a morte. Sonha em ver um dia uma Colômbia onde reinará a justiça social e onde as mulheres serão tratadas dignamente. “Aqui temos igualdade. Há mulheres até comandantes. O guerrilheiro que discrimina uma mulher é punido”. Há dois anos nota-se um afluxo espetacular de mulheres (de 30% a 35% do efetivos) a essa guerrilha com uma reputação tão detestável.
Caminhonetes e 4×4 estacionadas sob árvores são testemunhas: a FARC-EP não respira miséria. A comida é abundante na mesa dos combatentes. Sob a barraca do “PC informações” e coberta pelo ronco discreto de geradores, uma bateria de computadores conectados à Internet faz barulho o dia inteiro. Para o alto comando militar e seus mentores norte-americanos, a explicação para tanto conforto tem um só nome: narcotráfico!
Se San Vicente del Caguán está situada no Caquetá, os quatro outros municípios da zona de despeje (zona desmilitarizada) pertencem ao departamento vizinho, o Metá. Uma região grande como a França, povoada de 1,5 milhão de habitantes, com um aeroporto e uma estrada. Ninguém vive lá porque quer. A pobreza leva ao fracasso. A fronteira agrícola avança: um camponês, em plena Metá, encontra-se a cinco dias de marcha da aldeia mais próxima. “Sua única alternativa é a guerrilha ou as culturas ilícitas. O conflito armado constitui uma opção para aqueles que não têm nada. Quanto à coca, ao contrário das caixas de banana, você pode carregá-la a pé”. Esse é o argumento clássico que será ouvido da boca dos rebeldes que querem se desculpar. Só que quem nos conta isso é Alan Jara Urzola, o governador do Metá…
Coca, problema social
A guerrilha viu a coca desenvolver-se com força na época (anos 80) em que os militares e elites politico-econômicas levavam vantagem no tráfico de cocaína. Depois disso, o Estado e sua classe política romperam com seus velhos aliados mafiosos. [6] Mas os camponeses continuam pobres. “Eles são nossa base social”, revoltam-se os dirigentes da FARC-EP, irritados com a acusação de que são comandantes de uma narcoguerrilha. “Não cabe a nós condená-los à fome erradicando as culturas ilícitas. Além disso, as máfias ajudam o exército a financiar os paramilitares. Por que deveríamos ser os únicos a considerar esse flagelo por um ângulo ético? É antes de mais nada um problema econômico-social”. “Se possuíssemos a fortuna que nos atribuem”, reclamam os comandantes, “a revolução já teria terminado há muito tempo!”
Num lugar onde não estão assegurados nem o desenvolvimento nem a segurança alimentar, é a filosofia neoliberal da vantagem comparativa que leva o país à guerra e à narcoeconomia. Regularmente acusada de não ser mais que um amontoado de bandoleiros sem qualquer ideologia, a FARC-EP, recebe um imposto sobre a coca — algumas vezes sobre a pasta básica [7] — e sobre os raspachines (intermediários), que podem negociar sem ser incomodados. Os camponeses nunca pagam impostos. Mas, segundo os especialistas, eles não possuem uma rede de importação de solvente ou de exportação do produto manufaturado, nem infraestrutura de laboratórios, menos ainda sistema de lavagem de dinheiro. [8] “Se possuíssemos a fortuna que nos atribuem”, reclamam os comandantes, “a revolução já teria terminado há muito tempo!”
Quando a zona de despeje foi abandonada pelo exército, no fim de 1998, quase não houve mais campanhas. Há muito tempo que a guerrilha, autoridade presente embora invisível, impõe sua lei. Mas quando as tropas de elite da FARC-EP irrompem nos vilarejos, em particular em San Vicente del Caguán, um vento de pânico sopra sobre a população. Como aconteceu com mais de 700 pueblos em todo o país, há muito tempo abandonados pelo poder público, e nos quais os prefeitos não podem trabalhar enquanto não tiverem conversado com esse Estado dentro do Estado, o povoado descobre a ordem guerrilheira. Quando a FARC-EP diz que não se pode pescar com dinamite ou devastar a floresta, os que transgridem essas ordens sofrem as conseqüências. Como acontece nas cidades…
A lei da guerrilha
Quem mata é condenado à morte. Quem bate em alguém deve pagar uma multa (de 25 a 50 dólares). Dois ou três meses de trabalho de interesse social para os ladrões. Os bazuqueros (drogados) e revendedores, assim como os estupradores, são intimados a corrigirem-se ou se exilarem (duas advertências antes da solução definitiva). Proibição aos menores de beber álcool ou vagar pelas ruas depois da meia noite. Em San Vicente, onde havia seis mortos por semana — acertos de contas, rixas, delinqüência — foram registrados seis mortos em um ano desde a intervenção da FARC-EP (ajudada nas tarefas mais leves por uma polícia cívica formada por voluntários civis da região).
Balanço social: duas empresas funerárias fecharam. “Em compensação, não tiramos o pão das camaradas trabalhadoras sexuais, simplesmente pedimos para que trabalhem com discrição nas ruas”. Apesar de aplicado com flexibilidade, o método é firme. Muitos habitantes (não todos e menos ainda o prefeito, que teve sua autoridade seriamente limitada) gostam da situação: “Agora vivemos de portas abertas!” Numa Colômbia despedaçada pela violência comum (25 mil mortos por ano) a volta de um Estado não tem preço.
Uma parte, e apenas uma parte, é conivente com isso. Na época da chegada dos guerrilheiros, o povoado contava apenas com cinco ruas asfaltadas. Com base em um trabalho comunitário, na maior parte das vezes recebido com alegria, os guerrilheiros comprometeram-se a urbanizar o lamaçal, fornecendo asfalto e ferramentas. De fato, eles sabem administrar. Nessa região de criação de animais, os caminhões que partem com o gado são intimados a não voltar sem carga, mas carregados do asfalto que lhes é fornecido no caminho de volta.
A liberdade individual sofre um golpe, mas a cidade se transforma — para a evidente satisfação dos habitantes. O padre Miguel protesta no púlpito. “Ninguém lhes pediu para pavimentar as ruas! Seu trabalho comunitário é trabalho forçado. Eles estão reproduzindo o que foi feito na Sibéria”. O comandante Jairo Martinez diverte-se. “É claro. Antes de nossa chegada, havia seis mortos por semana com os enterros custando 130 mil pesos, além da esmola no fim da missa. Nós desbaratamos esse pequeno comércio. Esses são nossos dissidentes…
Excessos da guerrilha
Mas a história não tem só o lado bom. Durante os primeiros meses, as denúncias sobre os excessos da guerrilha se multiplicavam: exploração, detenção de civis, assassinatos seletivos… “Hoje tudo vai bem”, ameniza o comandante Raul Reyes, sem no entanto negar os fatos. Era preciso administrar, no sentido próprio do termo, um território grande como El Salvador. “O que não teriam dito se tivéssemos deixado que o caos se instalasse ou continuasse na nossa zona?” Estamos falando de ordem e delinqüência.
A verdadeira guerra continua. Antes da desmilitarização, San Vicente abrigava o batalhão Cazadores. Durante anos, seus homens trabalharam psicologicamente a população. Quando partiu, deixou atrás de si simpatizantes, mas também agentes, com a missão de multiplicar os obstáculos e provocar a ruptura do diálogo de paz. “Possuíamos a informação e tivemos que tomar medidas sérias. O problema é que os agentes infiltrados não usam uniforme. Isso gerou reclamações da parte daqueles que não compreenderam que essas pessoas, aparentemente inofensivas, coletavam informações, localizavam nossos quadros e simpatizantes, preparavam sabotagens e atentados”.
Cerca de quinze “desaparecimentos” na zona desmilitarizada, segundo a Anistia Internacional… Estamos no coração de uma tragédia que bem poucos ousam chamar pelo nome correto: guerra civil. [9] A mesma lógica prevalece para os paramilitares, mas com uma importante diferença. Esses últimos surgiram no final dos anos 60, dentro de uma política recomendada pelos conselheiros americanos para “quebrar” qualquer desejo de transformação social. Grupo armado dos narcotraficantes a partir de 1985 e complemento do exército para realizar as funções mais sujas, [10] eles massacram as bases sociais, reais ou supostas, da guerrilha reunidos desde abril de 1997 nas Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). “Nessa guerra, muitos civis sucumbem, admite o chefe Carlos Castaño. Sabem por quê? Porque dois terços da força efetiva da guerrilha não possui armas e age como população civil”. [11]
“Nunca mais nos deixaremos matar”
Em 28 de maio de 1984, quando foi assinado um cessar-fogo entre o governo de Belisario Betancur e a FARC-EP, o poder comprometeu-se a lançar uma série de reformas políticas, econômicas e sociais. Estabeleceu um prazo de um ano para permitir ao movimento armado organizar-se politicamente. Em novembro de 1985 a FARC-EP lança um novo e extenso movimento, a União Patriótica (UP), que participa com sucesso das eleições de 1986: 350 conselheiros municipais, 23 deputados e 6 senadores eleitos no Congresso. Uma onda de assassinatos sem precedentes faz desaparecer mais de 4 mil dirigentes e militantes da UP (e do Partido Comunista). “Não incidiremos nunca mais nesse erro”. Desde então a guerrilha anunciou que, mesmo assinados os acordos de paz, ela conservará suas armas.
Nessa Colômbia da exclusão social, onde tanto o Partido Liberal quanto o conservador defendem os interesses econômicos oligárquicos, a guerra continua. Uma guerra da qual não é possível contabilizar com precisão as vítimas, e com uma guerrilha que não se opõe aos métodos mais duros, impõe a vacuna (imposto revolucionário), realiza seqüestros exigindo resgates (o que a torna antipática aos olhos das classes médias), elege prefeitos e conselheiros municipais a sua escolha por meio de intimidações e, quando decide pela tomada de um pueblo, utiliza bombas de gás e dinamite, armas que matam também civis.
Esse é o único ponto do qual a guerrilha se defende. Num documento intitulado “Recomendações a população civil”, orienta: “Não permitam que casernas e bases militares sejam construídas nas proximidades de suas residências, pois estamos em guerra”. Porém, como impedir, quando se é um simples cidadão, que as forças armadas venham estabelecer-se justamente no meio da população?
O exército esbraveja: protegida pela zona de despeje, a FARC-EP estoca armas, recruta e forma combatentes. A camarada Olga Marín não se importa: “As tropas que estão nessa zona sempre estiveram lá. Sempre recrutamos e treinamos. O que acontece, e que eles nunca perceberam, é que tem muita gente aqui!” Num vai e vem permanente entre Bogotá e Washington, a alta hierarquia militar dá mais um passo: a desmilitarização dessa zona estratégica permite às tropas de elite da guerrilha proteger-se dos combates futuros e em seguida refugiar-se em seu santuário.
A pressão é tal que o presidente Pastrana retoma ele mesmo as acusações. A reação é imediata: “Dissemos ao chefe de Estado que se ele não pode continuar dialogando porque os gringos (norte americanos) não deixam ou porque o exército e os grupos econômicos o impedem, nós lhe devolveremos os povoados, interromperemos o diálogo e retomaremos os confrontos nesses cinco municípios do mesmo jeito que acontece no resto da Colômbia”. Em seguida, para que as coisas fiquem claras, a FARC-EP lança violentíssimas ofensivas que abalam o exército nos quatro cantos do país, a centenas de quilômetros da zona desmilitarizada.
Escalada norte-americana
Em setembro de 1999, o presidente Pastrana voltou de Washington depois de ter obtido uma promessa de ajuda de 1,6 bilhão de dólares por três anos para enfrentar o narcotráfico — na verdade, a guerrilha.. Sob o pretexto dúbio da guerra contra a droga, os Estados Unidos possuem na Colômbia entre 300 e 400 conselheiros civis e militares. Foi criado o primeiro batalhão “antinarcótico”, formado por 67 instrutores gringos. Devem seguir-se a esse dois outros, cuja verdadeira missão é tomar os territórios controlados pela FARC-EP. Apesar das negociações, a guerra se desenvolve, irremediavelmente, numa Colômbia mais dividida do que parece…
Nesses últimos meses houve uma vontade de brecar a manifestação em massa de 24 de outubro de 1999, a qual lançou nas ruas milhões de colombianos com um lacinho verde na lapela gritando “No mas!” (Basta!). Não se percebeu — e isso não é uma crítica aos participantes de boa fé — que essa aspiração pela paz foi instrumentalizada por um establishment que procura acabar rapidamente com a guerrilha para poder continuar gozando a ordem tradicional sem riscos. Uma campanha publicitária massacrante sem precedentes, conduzida pelos jornais El Tiempo e El Espectador, e pelas cadeias de rádio e televisão, propriedades de uma oligarquia que, aliás, financia e alimenta o conflito, convocou à manifestação. Muito poucas pessoas pensaram em consultar a outra “sociedade civil”, aquela que, esquecida pelas classes médias, vive diariamente a monotonia da miséria.
Num bairro marginalizado de Popayán, ri uma velha senhora, que durante toda sua vida lutou para sobreviver: “É isso? A paz dos ricos? Não, eu não participei da manifestação”. Também ri um dirigente de organização não governamental: “As pessoas estão cansadas da guerra, mas também estão cansadas da fome. A paz não se resume ao silêncio dos fuzis” São os muitos dirigentes de organizações populares que, secretamente, mantém um diálogo e um contato constante com a guerrilha.
Um outro dirigente de uma grande organização sindical sugere: “Se organizássemos amanhã uma manifestação sobre o tema da justiça social, haveria uma multidão muito maior nas ruas, mas não podemos fazer isso”. Quando houve a última greve geral, em setembro de 1999, dois de seus companheiros foram mortos, mais de duas centenas foram presos (vinte e sete líderes sindicais foram assassinados em 1999, 3 mil desde 1986). Mesmo sustentando algumas divergências em relação ao movimento armado — “… seu funcionamento muito vertical, sua ação muitas vezes brutal sobre a população…” — ele não deixa de concordar que a paz não se reduziria à assinatura de um pedaço de papel ou à deposição das armas, mas deve levar a uma real transformação do país. “Na nossa situação, a guerrilha deve continuar pressionando”.
Novas saídas?
“O marxismo-leninismo deve ser renovado e ajustado à nova realidade do mundo”, afirmava em dezembro de 1999, na floresta, o comandante Raul Reyes. “Não se pode mais pensar em construir um socialismo à moda soviética, chinesa, vietnamita ou cubana. Estamos num outro momento da história, na época do ciberespaço e da Internet. É preciso colocar os instrumentos da ciência e das técnicas ao serviço dos processos econômicos, políticos e sociais”. No começo de fevereiro de 2000 ele trocou seu uniforme de campanha por
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.