Viagem nas falsas verdades
Se “atraso”, “reforma” e “abertura” constituíram as palavras-chave do pensamento dominante dos últimos trinta anos, as fake news parecem resumir sua obsessão atual. Um fio vermelho une, aliás, os dois períodos: apenas as notícias falsas que visam ao partido da reforma e da abertura deixam indignados os jornalistas profissionais e os líderes liberais. Nos Estados Unidos, na Alemanha e na França, estes últimos estão elevando a luta contra esse tipo de notícia ao status de prioridade política. “A ascensão das notícias falsas”, explicou Emmanuel Macron em sua fala à imprensa em janeiro passado, “hoje é totalmente gêmea desse fascínio nada liberal.” Durante esse tempo, a desinformação tradicional prosperou. Seu eco repercutido o tempo todo lhe confere um caráter de verdade – sem estimular o ardor das agências de checagem.
Bernard-Henri Lévy
Colunista do Le Point, Bernard-Henri Lévy iguala todos aqueles que lhe desagradam – a lista é infinita – a nazistas.1 Em dezembro de 2010, feliz demais para checar o fato, ele confundiu o jornalista do Le Monde Diplomatique Bernard Cassen com o panfletário antimuçulmano de extrema direita Pierre Cassen. O semanário recusou a publicação de um direito de resposta; ele foi condenado a fazê-lo pela 17a Câmara Correcional (acórdão de 23 de abril de 2013), a qual, destacando “a insuficiência de rigor e a falta de substância” de Bernard-Henri Lévy (“BHL”), “a gravidade e a virulência” de sua difamação, considerou que “o benefício da boa-fé não poderia ser concedido” e também impôs ao Le Point o pagamento de 3.500 euros de multa. No entanto, no mesmo jornal, o mesmo falsificador lançou a ideia, em 7 de fevereiro, de um hall of shame (hall da vergonha), que “listaria em tempo real as fake news que fossem mais globalmente devastadoras”. BHL convida “as pessoas da web a propor o texto, o vídeo, a obra cujo poder de verdade ou de comicidade destruiria as fake news mais nocivas”…
Significa, para Bernard-Henri Lévy, correr um risco… Em vez de recordar a lista de suas imposturas – uma página deste jornal não seria suficiente2 –, vamos nos limitar às suas últimas palhaçadas. Sua obra L’Empire et les cinq rois [O Império e os cinco reis] acaba de ser traduzida nos Estados Unidos, no momento em que os líderes daquele país procuram sufocar o Irã. Ano passado, jornalistas ou colunistas franceses tão preocupados com a precisão e a checagem dos fatos quanto Patrick Cohen (na Europe 1, em 30 de março), Ali Baddou (na France Inter, num 1o de abril) e Laurent Ruquier (na France 2, em 7 de abril) o deixaram vender “uma história incrível que muito poucas pessoas conhecem”. Em 1935, contou o ensaísta, “a Alemanha nazista ofereceu aos persas o acordo do século. Ela disse a eles: ‘Vamos fazer […] uma ótima aventura comum, vamos dominar o mundo’. E os iranianos aceitaram o acordo”. E é por isso que, segundo ele, a Pérsia mudou de nome para se tornar o Irã, terra dos arianos.
Vários especialistas do Irã reclamaram imediatamente, a tal ponto que, alguns dias depois, BHL invocou outros, e alguns destes, horrorizados por estarem envolvidos nessa perigosa farsa, desmentiram as análises que o cronista lhes atribuiu.3 Publicada em fevereiro passado, a edição em inglês de seu livro acrescenta em consequência um elemento de prova que o autor considera irrefutável: “um artigo do New York Times de 26 de junho de 1935”. Mas o artigo em questão fala de uma “sugestão” da embaixada alemã, sem basear essa explicação da mudança de nome – a propósito, bastante vaga – em nenhuma fonte. De qualquer forma, ele certamente não falou, como afirmou BHL, “em uma ordem de Berlim para a embaixada iraniana que foi transmitida ao xá”. E esse artigo do New York Times, publicado na seção Viagens-Cruzeiros-Excursões do jornal, relata o caso iraniano entre muitos outros – Santo Domingo tornou-se Ciudad Trujillo; Esmirna, Izmir; Christiania, Oslo etc. Basta dizer que a força probatória do pedaço de texto (150 palavras) ao qual Bernard-Henri Lévy se agarra como um mexilhão à sua rocha é nula. Seu autor está morto, e nosso autoproclamado especialista em Irã não é capaz de citar precisamente sua prova, já que a informação do New York Times, destinada a seus leitores que eram viajantes frequentes, foi publicada em 26 de janeiro de 1936, e não em 26 de junho de 1935.4
E qual é a relação, de fato, entre a decisão do xá de 1935 e a atual República Islâmica do Irã, alvo dos Estados Unidos, da Arábia Saudita e de Israel? Uma ligação clara, de acordo com BHL: o aiatolá Ruhollah Khomeini teria se recusado a retomar o nome “Pérsia” quando assumiu o poder porque havia ao seu redor três “teóricos que viviam no fascínio absoluto pelo pensamento heideggeriano”. Como ele sabe? Graças a “um dos cinegrafistas do meu filme, um intelectual curdo iraniano dotado de uma sólida cultura filosófica”.
Desde 1978, todos os presidentes franceses, sem exceção, receberam e ouviram Bernard-Henri Lévy. Uma vez que agora ele elogia Macron com a regularidade de um metrônomo, este último faria bem em lhe confiar uma missão de averiguação das fake news.
Robert Menasse
Escritor austríaco, vencedor do Prêmio do Livro Alemão em 2017 pela obra La capital [A capital] (Verdier, 2019), Robert Menasse luta por uma Europa livre dos arcaísmos nacionais. Mas o romancista também é um ensaísta que há anos detalha suas convicções em artigos publicados pela imprensa de referência em língua alemã. Assim, em um texto inflamado escrito em coautoria com um cientista político e intitulado “Viva a República europeia”, publicado em 24 de março de 2013 no Frankfurter Allgemeine Zeitung e, no mesmo dia, nas colunas do Die Presse sob o título “Manifesto para a fundação de uma república europeia”, Menasse escreve: “O primeiro presidente da Comissão Europeia, Walter Hallstein, um alemão, declarou: ‘A abolição da nação é a ideia europeia’”. Antes de adicionar, numa bravata: “Uma frase que nem o atual presidente da Comissão nem o atual chanceler alemão ousariam pronunciar. Sem dúvida, eles nem ousam pensar nisso. E, no entanto, essa frase é a verdade, mesmo que ela tenha sido esquecida”. Problema: Hallstein, que morreu em 1982, nunca pronunciou essa frase.
Em outubro de 2017, o grande historiador Heinrich August Winkler expressou suas dúvidas no semanário Der Spiegel e desafiou Menasse a citar fontes. Em vão. Na esteira de outras observações atribuídas por Menasse a Hallstein, destaca-se: “O objetivo é e continua sendo organizar uma Europa pós-nacional”, ou ainda: “O objetivo do processo de unificação europeu é a superação dos Estados-nação”. Haja! “Não só não existe prova alguma de que essas frases foram pronunciadas, como elas contradizem diametralmente o que Hallstein de fato afirmou.”5 Definitivamente inventivo, o ensaísta-romancista também disse que Hallstein, em 1958, pronunciou seu primeiro discurso como presidente da Comunidade Econômica Europeia em Auschwitz. “É um fato”, martelava Menasse, ansioso para demonstrar quanto “a Comissão Europeia é a resposta para Auschwitz”. Era falso.6
Para Winkler, essas adulterações são “produto de uma visão pós-factual da história”.7 Fake news ainda mais graves porque, apesar das advertências do historiador, elas são regularmente retomadas por figuras políticas e intelectuais, como o fez, em novembro passado, Manfred Weber, presidente do grupo conservador no Parlamento Europeu e candidato à presidência da União Europeia.
No início deste ano, a notícia falsa de que os signatários do tratado franco-alemão de Aix-la-Chapelle de 22 de janeiro último pretendiam entregar a Alsácia-Lorena à Alemanha foi imediatamente negada pela mídia francesa, e seu autor, um deputado europeu do partido Debout la France, ridicularizado. Finalmente destacadas e levadas a sério pela imprensa alemã mais de um ano após serem lançadas, as fake news de Menasse não abalaram nem os jornalistas franceses, que não pouparam elogios a elas, nem o próprio falsário. “Do ponto de vista científico, as aspas foram um erro”, admitiu este último após ter invocado um filósofo relativista para justificar sua falsificação (Die Welt, 5 jan. 2019). Em 19 de janeiro, ele recebeu a Medalha Carl-Zuckmayer, uma distinção literária outorgada pelo ministro-presidente da região da Renânia-Palatinado, o qual saudou “a luta engajada em favor da ideia europeia” por parte do falsificador.8
France Inter
Em 7 de fevereiro, Nicolas Demorand e Léa Salamé, cuja antipatia pelos “coletes amarelos” é evidente, receberam na France Inter um professor do Collège de France, Patrick Boucheron, que também não gosta muito dos manifestantes. Os três também comungam no ódio às notícias falsas. Durante a entrevista, Boucheron defendeu a “pequena insurrecional” dos intelectuais favoráveis aos “coletes amarelos” e citou um desses negociadores, especialista em movimentos populares: “Achei interessante ouvir Gérard Noiriel dizer: ‘É uma jacquerie’ [revolta camponesa do século XIV], enquanto outros historiadores medievalistas diziam: ‘Não, não é a jacquerie’”. No entanto, algumas semanas antes, Noiriel havia sido questionado se a “comparação do movimento dos ‘coletes amarelos’ com as jacqueries ou pujadismo [movimento corporativista com tendências reacionárias da classe média] era justificada. E ele respondeu: “Nenhuma dessas referências históricas realmente tem sentido. Falar, por exemplo, de jacquerie em relação aos ‘coletes amarelos’ é tanto um anacronismo quanto um insulto. […] A grande jacquerie de 1358 foi uma explosão desesperada de mendigos prestes a morrer de fome, num contexto marcado pela Guerra dos Cem Anos e pela peste negra”.9
Em seguida foi a vez da revista de imprensa da France Inter. Claude Askolovitch dedicou uma grande parte à denúncia das fake news de Donald Trump e da mídia russa, e então emendou: “E, no Le Monde Diplomatique, o teórico do movimento Nuit Debout, Frédéric Lordon, acha que [o canal russo] RT, mesmo fazendo uma propaganda putiniana um pouco excessiva, é ‘a única mídia audiovisual respeitável’”. Existem apenas dois probleminhas na citação da France Inter. Primeiro, não é um artigo do Le Monde Diplomatique, mas do blog de Frédéric Lordon no site do Le Monde Diplomatique. Segundo, seu texto foi falsificado. Lordon na verdade escreveu isto: “A vergonha do jornalismo francês é medida por esse paradoxo totalmente inesperado de a RT ter se tornado quase a única mídia audiovisual respeitável!”. Graças à principal rádio pública francesa, o “paradoxo totalmente inesperado”, o “quase” e o ponto de exclamação (destinados a enfatizar o paradoxo inesperado) desapareceram.10
Uma semana depois, Demorand só precisa lembrar as virtudes de sua profissão para os ouvintes de seu programa matinal: “Estamos lidando com jornalistas, pessoas cujo negócio principal é produzir fatos verificados e hoje fazer a checagem dos fatos para lutar contra o fluxo de notícias falsas”.
*Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é da direção do Le Monde Diplomatique.
1 Ler Serge Halimi, “Tous nazis” [Todos nazistas], Le Monde Diplomatique, dez. 2007.
2 Ler nosso volumoso dossiê on-line “L’imposture Bernard-Henri Lévy” [A impostura Bernard-Henry Lévy]. Disponível em: <www.monde-diplomatique.fr>.
3 Ardavan Amir-Aslani, “N’en déplaise à BHL, la Perse n’est pas devenue l’Iran pour faire plaisir à Hitler!” [“Sem ofensa a BHL, a Pérsia não se tornou o Irã para agradar a Hitler!”], L’Opinion, Paris, 23 maio 2018.
4 Oliver McKee Jr., “Change of Santo Domingo to Trujillo City recalls others” [Mudança de Santo Domingo para a cidade de Trujillo lembra outras], The New York Times, 26 jan. 1936.
5 Heinrich August Winkler, Zerbricht der Westen? Über die gegenwärtige Krise em Europa und Amerika [O oeste está quebrado? Sobre a atual crise na Europa e na América], CH Beck, Munique, 2017.
6 Patrick Bahners, “Menasses Bluff” [O blefe de Menasses] e “Fall Menasse. Psicopathologue” [A queda de Menasse. Psicopatológico], Frankfurter Allgemeine Zeitung, 2 e 6 jan. 2019.
7 Der Spiegel, Hamburgo, 21 out. 2017
8 Der Spiegel Online, 7 jan. 2019.
9 Le Monde, 28 nov. 2018.
10 Depois de ser denunciada nas redes sociais, essa falsificação desapareceu da retranscrição da crônica no site da France Inter.