Vidas amarelas por vidas negras
No final dos anos 60 nos EUA, essa minoria ganha uma especificação e passa a ser chamada de minoria modelo, ou seja, um case de sucesso a ser seguido e replicado no sistema produtivo capitalista. De acordo com essa visão, a população asiática conseguiu ascender social e economicamente devido ao seu próprio esforço e a um conjunto de características, dentre elas, obediência, empenho e produtividade. Esse pensamento poderia ser considerado inofensivo, já que denotaria um preconceito “positivo” em relação a esse grupo, mas, com a comparação com outras minorias, o racismo fica evidente
Homem amarelo, olhos puxados, óculos, livros na mão e estudante de medicina: uma combinação que não gera estranhamento e que confirma o estereótipo do asiático dedicado e inteligente. Como os indivíduos negros e indígenas, os chamados orientais também fazem parte de um grupo racializado. Porém, ao contrário de uma história de genocídio que se estende até o momento em que escrevo esse artigo, o que se destaca é uma superestima direcionada a essa comunidade, em particular aos imigrantes advindos de países do leste asiático como Japão, China e Coreia do Sul.
No final dos anos 60 nos EUA, essa minoria ganha uma especificação e passa a ser chamada de minoria modelo, ou seja, um case de sucesso a ser seguido e replicado no sistema produtivo capitalista. De acordo com essa visão, a população asiática conseguiu ascender social e economicamente devido ao seu próprio esforço e a um conjunto de características, dentre elas, obediência, empenho e produtividade. Esse pensamento poderia ser considerado inofensivo, já que denotaria um preconceito “positivo” em relação a esse grupo, mas, com a comparação com outras minorias, o racismo fica evidente. Com base nesse mito que delimita a vivência asiática, pessoas negras não são bem-sucedidas por questões e falhas pessoais. Assim, a culpa se concentra no indivíduo e motivos estruturais e a história de escravidão brasileira que durou mais de 300 anos permanecem invisíveis.
Nesse sentido, esses estereótipos são extremamente violentos e contribuem para perpetuar uma cadeia de associações, em que o indivíduo negro é tido como inferior e incapaz. É emblemático como esse termo ganhou notoriedade mais especificamente em 1966, durante o movimento negro por direitos civis no artigo “Success Story, Japanese American Style”, em português “História de sucesso, estilo japonês-americano”, publicado no jornal New York Times, em que uma falsa meritocracia é exaltada. Ser amarelo é refletir, de que forma nós lucramos ao sermos considerados de antemão confiáveis e qualificados. Isso não só implica em uma visão bidimensional de quem somos e que invisibiliza a pluralidade de culturas e realidades asiáticas, mas também contribui para criar uma hierarquia de vidas consideradas mais inferiores e mais descartáveis ao comparar pessoas asiáticas e negras. Com uma família interracial, essas dinâmicas em um contexto menor emergem. Em um conflito de rua, em que um policial apontou sua arma para o meu primo negro de dois metros de altura, o meu posicionamento em sua frente com meu corpo amarelo, mesmo sendo menor e mais fraco, agiu como um escudo. O policial não atiraria em mim, meu corpo e minha vida valiam e valem mais.
Desse modo, é fundamental que o indivíduo amarelo recuse a atribuição dessas qualidades ilusórias. As ideias de atingir o sucesso por um esforço individual e de se manter obediente e calado contribuem para uma desmobilização da comunidade amarela. A supremacia branca é ingrata e dependendo do contexto aceita ou nega os indivíduos do leste asiático, algo que pode ser observado ao longo da história brasileira. Em 1908, a vinda de imigrantes japoneses se deu como solução para substituir a mão de obra europeia branca que tornara-se escassa. Com isso houve um crescente medo por parte de teóricos eugenistas de uma possível degeneração racial ou de uma falta de assimilação por parte da comunidade asiática que seria como o enxofre, insolúvel. Esse perigo amarelo, termo utilizado para designar essa desconfiança e receio, ganha uma nova dimensão com a modernização e militarização do Japão, em que a ameaça passa a ser a de dominação japonesa do território brasileiro. Na atual pandemia essa visão negativa também ganha forma, quando os indivíduos asiáticos são vistos como portadores do vírus em razão de seus traços. Assim, procurar uma independência da validação da branquitude de que padrões e características seguir é um ato revolucionário, já que essa vê asiáticas e asiáticos quando lhe convém como ameaças ou instrumentaliza suas existências para reforçar uma concepção racista de inferioridade negra.
Os meus privilégios como mulher amarela, me possibilitam escrever, porém minha voz não é a voz de meu primo. Na luta antirracista minha voz é coadjuvante e meu artigo é secundário. Acredito que vidas amarelas devem se responsabilizar para que esses estereótipos que têm impactos brutais na comunidade negra não se propaguem e devem questionar de que modo a crença neste mito da minoria modelo também sustenta seus próprios preconceitos em relação a indivíduos negros que têm sua humanidade negada e se tornam só estatísticas. Após a morte de João Pedro e depois a de George Floyd, várias postagens foram feitas na mídia social Instagram para divulgar produções intelectuais e culturais de negrxs (algumas delas inclusive violando direitos autorais). Ouvir essas histórias pode mudar nossa visão e dão complexidade às vidas negras. Com o assassinato dessas vidas, e aqui pontuo vidas transsexuais e com deficiências também, histórias continuam só em suas potencialidades, mortas em cada barriga vazia e em cada tiro. Ao lado do policial Chauvin que asfixiou George Floyd havia o policial amarelo Tou Thao que se manteve passivo e com isso, é necessário se perguntar: até quando vamos ser cúmplices?
Para meu primo Naná, para minha vó Antônia, que por falta de oportunidades não refletiram com profundidade sobre sua negritude e para Sofia, minha amiga, que com seu processo de se reconhecer negra também me ajudou no meu questionar em ser amarela.
Um agradecimento especial para as referências amarelas utilizadas nesse artigo que já estão na luta antirracista a bem mais tempo que eu:
“Narrativas asiáticas brasileiras” em “Ensaio sobre racismos: pensamento nas fronteiras” por Caroline Ricca Lee, Juily Manghirmalani, Laís Miwa Higa
“O duplo perigo amarelo: o discurso antinipônico no Brasil (1908-1934)” por Luana Martina Magalhaes Ueno
“Para além da fábula das três raças: uma introdução à percepção racial do amarelo e do japonês no Brasil” por Gabriela Shimabuko
“Model Minority” Seems Like a Compliment, but It Does Great Harm
E em memória de Miguel, João Pedro, Ágatha Félix, Kauê Ribeiro e Kauã Rosário e de suas histórias que nunca viverão.