Vigilância integrada para a saúde humana, animal e ambiental
O desmatamento, o comércio de animais e a urbanização desordenada têm consequências diretas para a saúde pública. Ouvir esses alertas e agir rapidamente por meio da vigilância em saúde é a chave para prevenir novas pandemias. Esse é um dos fundamentos da Saúde Única
Quando pensamos em vigilância em saúde, é comum imaginarmos hospitais e laboratórios monitorando doenças em seres humanos. No entanto, o papel dos animais silvestres e de seus ecossistemas é crucial para a detecção precoce de riscos e a prevenção de doenças emergentes. O conceito de Saúde Única, que integra saúde humana, animal e ambiental, destaca como esses três elementos estão profundamente interligados. Proteger a fauna e seus habitats naturais é, portanto, uma medida essencial para a saúde pública global.

O que é vigilância em saúde e como ela funciona?
A vigilância em saúde consiste no monitoramento contínuo de vírus, bactérias e parasitas, ou seja, de patógenos, em seres humanos, animais e no ambiente, com o objetivo de identificar riscos e prevenir surtos. Existem dois tipos principais:
- Vigilância ‘alvo’ – direcionada a patógenos específicos, como o vírus da febre amarela. Por meio do monitoramento contínuo, é possível detectar sua circulação em primatas não humanos, considerados sentinelas naturais, e prevenir a transmissão para humanos.
- Vigilância “ampla” – Busca novos agentes infecciosos em um escopo mais abrangente. Foi esse método que permitiu identificar o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, demonstrando a importância da vigilância global na antecipação de epidemias.
As origens do problema
A destruição de habitats naturais, a urbanização acelerada e o comércio global de animais selvagens têm criado condições ideais para que doenças antes restritas a animais silvestres entrem em contato direto com seres humanos.
Animais silvestres, como macacos, capivaras e araras, pertencem à fauna nativa de uma região e são importantes para o equilíbrio dos ecossistemas. Já os animais selvagens, que incluem espécies não domesticadas como tigres e elefantes, podem ser tanto nativos quanto exóticos. O contato frequente com humanos, muitas vezes causado pela invasão de ecossistemas ou pelo comércio ilegal, amplia o risco de doenças zoonóticas.
Um caso emblemático é a doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida pelo barbeiro, um inseto hematófago, ou seja, que se alimenta de sangue. O desmatamento força esses insetos e seus hospedeiros naturais, como gambás e tatus, a se aproximarem de áreas urbanas. Em ambientes domésticos, cães e gatos também podem atuar como reservatórios do parasita, aumentando os riscos de transmissão e apresentando desafios adicionais para a saúde pública.
Vigilância local com impacto global
Localizado no coração de São Paulo, o Instituto Adolfo Lutz desempenha um papel fundamental na vigilância em saúde no Brasil. Todos os dias, chegam ao instituto amostras de animais silvestres encontrados mortos, como primatas, aves e gambás. Cientistas analisam os tecidos para identificar patógenos como os vírus da febre amarela e da toxoplasmose, além de outras doenças zoonóticas.
Esse monitoramento permite a detecção precoce de agentes infecciosos, ajudando a evitar surtos em humanos e preservando espécies animais ameaçadas. As informações coletadas são compartilhadas com redes internacionais, como as coordenadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA), fortalecendo o combate global às epidemias.
Saúde Única: por que monitorar animais silvestres é essencial?
Estudos mostram que 75% das doenças infecciosas emergentes que afetam os humanos são de origem animal. Quando habitats naturais são destruídos, patógenos que antes circulavam apenas entre animais silvestres podem começar a infectar seres humanos e animais domésticos. A vigilância de animais silvestres é, portanto, uma medida preventiva crucial, pois:
- Permite a detecção precoce de vírus, bactérias e parasitas.
Exemplo: Macacos atuam como sentinelas da febre amarela, alertando para a circulação do vírus antes de surtos em humanos. - Protege a fauna nativa e ajuda a conservar ecossistemas inteiros.
- Fortalece a saúde pública ao possibilitar respostas rápidas, como a vacinação e o controle de vetores.
Um desafio global com soluções locais
Embora o Brasil seja um dos países mais biodiversos do planeta, ele enfrenta situações desafiadoras, como o desmatamento acelerado e a falta de infraestrutura para vigilância em saúde. Apenas 8% dos laboratórios de referência estão localizados na América Latina e na África, regiões críticas para o surgimento de novas doenças.
Para enfrentar esses desafios, é necessário:
- Fortalecer redes de vigilância, como as do Instituto Adolfo Lutz.
- Investir em laboratórios descentralizados, capazes de analisar amostras com qualidade e agilidade.
- Capacitar profissionais para atuar em uma abordagem integrada entre a saúde humana, a animal e a ambiental.
- Implementar políticas públicas que integrem os setores de saúde, o meio ambiente e a agricultura.
Vigilância em Saúde Única: proteger a natureza é proteger a vida humana
A implementação da Saúde Única no Brasil não é apenas uma estratégia emergencial, mas uma necessidade preventiva e sustentável. Monitorar a saúde dos animais silvestres, proteger seus habitats e investir em ciência, tecnologia, inovação e comunicação são ações que garantem um futuro mais seguro para os humanos, os animais e o meio ambiente.
A natureza nos envia sinais claros. O desmatamento, o comércio de animais e a urbanização desordenada têm consequências diretas para a saúde pública. Ouvir esses alertas e agir rapidamente por meio da vigilância em saúde é a chave para prevenir novas pandemias e promover um mundo mais equilibrado e saudável.
Natália C. C. de A. Fernandes é pesquisadora científica no Instituto Adolfo Lutz, médica veterinária patologista e doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenadora do projeto Vigifauna, que realiza vigilância de doenças zoonóticas em animais silvestres, e entusiasta da implantação do conceito da Saúde Única dentro do ambiente público da Saúde Pública.
Márcia Aparecida Sperança é bióloga com doutorado em Biologia da Relação Patógeno-Hospedeiro pela Universidade de São Paulo (USP), docente da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora em biologia molecular de agentes patogênicos causadores de doenças infecciosas negligenciadas, incluindo Doença de Chagas, leishmaniose, malária e arboviroses.