Vítimas de um contexto de genocídio
O que mudou em relação a esse contínuo processo de erradicação das culturas indígenas do Brasil? A sistematização do genocídio indígena pelo Estado, especialmente a partir de 2019.
A mais recente tragédia que se abateu sobre o país envolve o desaparecimento do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira, bem como do jornalista inglês Dom Phillips. Via de regra o cidadão comum que acompanhe minimamente as notícias diárias e que ainda mantenha um mínimo de alteridade, bom senso e capacidade crítica, tende a se sensibilizar por dramas humanos como esse. Afinal, pessoas desaparecidas normalmente passam a representar sombras ou fantasmas de um passado ao qual, normalmente , familiares, pessoas amigas e, a depender do caso, as sociedades democráticas precisam retornar. Afinal, como escreveu Faulkner, o passado não é passado; ele sequer existe.
É exatamente a compreensão tanto de nosso passado mais remoto, quanto de um tempo não tão distante assim, que precisamos considerar para entendermos e interpretarmos corretamente o que ocorre atualmente no Brasil, proposição que temos insistentemente defendido ao longo dos anos e que guarda relação com o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips.
Como escreveu o filósofo e professor português Mendo Castro Henriques em seu prefácio à edição brasileira da obra do pensador alemão Eric Voegelin, Hitler e os alemães (Editora É Realizações, São Paulo, 2007, p.10), “o desafio mais importante não é fazer história narrativa e ‘dominar o passado’ (vergangenheitsbewältigung), mas sim fazer história crítica e ‘dominar o presente’…”.
De fato, a incompreensão ou a “falta de domínio” sobre o próprio passado vem condenando o Brasil a ocupar um locus à parte da própria “civilização”, em seu significado mais autorizado.
Sob o contexto ora proposto, importa afirmar que o desaparecimento de indigenistas e jornalistas, indígenas, defensores dos direitos humanos e outras categorias profissionais de vítimas que defendem os biomas brasileiros, assim como seus povos originários, não é novidade, conforme atestam as histórias e as memórias de Chico Mendes, Dorothy Mae Stang, Maxciel Pereira dos Santos, do Guarani-Kayowá Alex Vasques Lopes (assassinado com oito tiros há poucas semanas, no Mato Grosso do Sul), dentre tantas outras vítimas dos criminosos que querem tomar a Amazônia, transformá-la em terra de ninguém e despovoada de seus povos originários, assim como nas demais terras indígenas de todo o território brasileiro. Nesse sentido, o próprio governo afirmou que a região na qual desapareceram Bruno Pereira e Dom Phillips é perigosa, atestando sua incompetência.
O que mudou, então, em relação a esse contínuo processo de erradicação das culturas indígenas do Brasil? Respondo: a sistematização do genocídio indígena pelo Estado brasileiro, especialmente a partir do ano de 2019.
Já de há muito foi ultrapassado o estágio “culposo” apenas e tão somente marcado pela negligência, pela imprudência ou pela imperícia da sociedade e do Estado brasileiros (sim, a sociedade brasileira é também responsável por seus governantes e suas decisões). O que se pode afirmar sob a mais clara definição jurídica, histórica e sociológica de genocídio, é que o governo do Brasil vem atuando em suas decisões com a clara intenção de suprimir aos povos indígenas as condições fundamentais de vida capazes de manter e preservar suas existências física e cultural, em especial, suas terras originárias.
Bruno Pereira e Dom Phillips, para além da tragédia em si mesma considerada – a perda provável de duas vidas –, representam também mais um capítulo escrito nesta obra dantesca vendida ao povo brasileiro como busca pelo “desenvolvimento” (verdadeiro engodo), iniciada em 2019 e que está levando o país a um futuro obscuro e tenebroso, para as atuais e futuras gerações.

A destruição dos biomas brasileiros significa, também, o fim das culturas indígenas, aquelas que mais protegem o patrimônio ambiental brasileiro.
O desmonte das estruturas administrativas, como a Funai; o afastamento de agentes públicos comprometidos com suas funções republicanas, como o próprio indigenista Bruno Pereira, exonerado da “Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato” (CGIIRC- FUNAI) em outubro de 2019; como também o diretor do Inpe Ricardo Galvão, também exonerado em 2019 ou, ainda, o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva, responsável pela coordenação das investigações da Operação Handroanthus GLO, na qual apreendeu madeira extraída ilegalmente da Amazônia em quantidade recorde, além de outras medidas de ordem administrativa anti-indígenas, exemplificam parte do caminho trilhado até que o Brasil atingisse o momento atual, um dos mais destrutivos de sua história.
Como é sabido, a violência de Estado pode ser imposta de formas variadas e distintas. O extermínio físico direto não constitui a única possibilidade para se matar alguém ou destruir um grupo humano, no todo ou em parte. O ataque amplo e coordenado aos pilares fundamentais para a manutenção da vida com qualidade e dignidade pode impor o fim de uma cultura; permite-se e se controla quem e por quanto tempo deve viver. As bases econômicas e sociais dos grupos humanos vulnerabilizados e atacados são anuladas, exatamente o que ocorre com as invasões de terras indígenas por criminosos, estimuladas pelos desmonte do aparato fiscalizatório, pelo atual governo.
Não sem razão, Raphael Lemkin, o criador do base teórica do genocídio, escreveu que “…a destruição das fundações para a existência econômica de um grupo de cidadãos conduz, por necessidade, a uma paralisação do seu desenvolvimento, incluindo um retrocesso. O declínio do nível de vida cria dificuldades para cumprir os seus requisitos culturais e espirituais…” (Raphael Lemkin, A Europa sob o domínio do eixo, p.161. Buenos Aires, Del Rey, 2017).
Martin Shaw, sociólogo de política global, guerra e genocídios do Institut Barcelona d’Estudis Internacionals (IBEI) e professor de Relações Internacionais e Direitos Humanos na Roehampton University (Londres), também afirma que o crime de genocídio implica no plano coordenado de distintas ações visando a destruição das bases essenciais da vida de grupos nacionais e sua aniquilação.
Não foram poucas as medidas adotadas pelo atual governo brasileiro para extirpar do ordenamento jurídico toda e qualquer proteção a tais povos e ao meio-ambiente. A começar pela tentativa de transferir a competência para demarcação das terras indígenas para o Ministério da Agricultura e Pecuária por meio da Medida Provisória n° 870/1.1.2019. Devem ser lembradas outras tentativas, algumas ainda em curso, como o PL 2.633/20 (regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União); impulsionamento da PEC 187/2016 (exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas) e da PEC 343/2017 (abertura das terras indígenas para a exploração de terceiros, para a mineração e construção de hidrelétricas e hidrovias nas terras demarcadas); Projeto de Lei n° 191/2020, que regulamente mineração em terras indígenas; tese do marco temporal em debate no Supremo Tribunal Federal e também objeto de proposta legislativa em curso no Congresso Nacional; corte de orçamento e esvaziamento dos órgãos indigenistas e ambientais etc.
O estímulo às invasões em terras indígenas, como recentemente ocorrido nas terras Yanomamis e nas terras do povo Xipaya, bem como as políticas de rearmamento dos setores historicamente anti-indígenas, são também incentivos ao recrudescimento da violência contra os povos originários do Brasil. Não sem razão, como exemplo, as terras indígenas Yanomamis completaram trinta anos de sua demarcação com a maior devastação já vista imposta pelo garimpo ilegal (hoje, mais de 20 mil garimpeiros invadiram e permanecem nas terras Yanomamis, causando a destruição do meio-ambiente local e sob a omissão do governo). Como resultado, em torno de 3.272 hectares, frente aos 2.234 hectares de 2020, encontram-se degradados, ou seja, 1.038 hectares a mais, destruídos em apenas um ano.
Outro fator que vem contribuindo para o recrudescimento da violência na região amazônica, dentre outras, decorre do próprio discurso de algumas autoridades e que reproduzem o racismo em relação aos povos indígenas.
As instituições vêm se mostrando frágeis e incapazes de frear a invasão das terras tradicionais pertencentes a tais povos, antes mesmo da fundação do Estado brasileiro, deixando claro que os povos indígenas do Brasil se encontram ainda submetidos a um Estado “conquistador” e “colonizador”.
Bruno Pereira e Dom Phillips representam um capítulo a mais na tragédia de um país que optou pelo crescente autoritarismo, jamais ocultado de ninguém. Afinal, o atual governo sempre deixou claro que jamais voltariam a ser demarcadas terras indígenas, se eleito fosse. A promessa vem sendo cumprida, na mesma medida em que a Amazônia vem sendo destruída.
Dom Phillips era consciente em relação ao desastre que marca a atual política ambiental brasileira. Antes de desaparecer no dia 5 de junho, escrevia seu livro no qual refletia sobre como salvar a Amazônia. Bruno Pereira, desligado da Funai, prosseguiu sua luta pela defesa dos povos indígenas da Amazônia. Não são vítimas isoladas, mas parte de um amplo e organizado sistema para supressão das bases fundamentais para a existência dos povos indígenas e do bioma amazônico, em todas as suas dimensões (mineral, animal, vegetal, aquífera etc.), em nome de um desenvolvimentismo predatório e míope.
O escárnio da atual gestão ou, ainda, pura incompetência na questão, levou a um pedido de desculpas por parte do Embaixador brasileiro responsável pela comunicação, à esposa de Dom Phillips, de que os corpos do indigenista e do jornalista, teriam sido encontrados, informação que teria partido das estruturas investigatórias brasileiras.
Uma das mensagens que fica de seus legados caso, entretanto, não venham jamais a ser encontrados ou se comprove que foram assassinados, é o seu amor pelos povos indígenas, pela natureza e pelas futuras gerações.
A Amazônia vem sendo dominada por grupos criminosos, organizados, resultado do desmonte das políticas públicas protetivas. Um crime de genocídio está em curso. A luta dos povos indígenas é a luta de cada brasileiro.
Devemos conhecer e dominar nosso passado por meio de sua adequada compreensão. Caso contrário, não teremos futuro, menos ainda nossos filhos e netos.
Flávio de Leão Bastos Pereira é pós-doutorado em Direitos Humanos, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em genocídios pelo Instituto Zoryan e Universidade de Toronto, pesquisador da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade – Folha de São Paulo e Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP) e coordenador do Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP.