Vítimas invisíveis: pessoas LGBT+ na pandemia de Covid-19

Vítimas invisíveis: pessoas LGBT+ na pandemia de Covid-19

por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia e Emerson Erivan de Araújo Ramos
9 de julho de 2020
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A ordem de distanciamento físico entre os indivíduos e a determinação de recolhimento no espaço doméstico são mais difíceis de serem cumpridas pelas pessoas LGBT+ e, mesmo quando cumpridas, acabam muitas vezes por se tornar fatores de risco em outros âmbitos

Em virtude do alto poder de contágio do novo coronavírus, as autoridades públicas da maior parte do mundo passaram a conjugar dois importantes métodos no combate à pandemia de Covid-19: o distanciamento físico e os protocolos de higiene. A redução do contato físico através de uma nova gestão do espaço e os protocolos sanitários tornaram-se métodos essenciais para diminuir a velocidade com a qual o vírus se alastra, amenizando a pressão que este causa sobre os sistemas de saúde dos países onde se instala.

Ao passo que a gestão do espaço e os protocolos de higiene são importantes formas de proteção da vida e da saúde em meio à crise sanitária, são também medidas que só conseguem ser cumpridas com a existência de uma rede de amparo social que permita às pessoas em situação de vulnerabilidade as condições necessárias para segui-las. Isso porque o combate ao novo coronavírus, para ter sucesso, exige uma engenharia social que necessita do cumprimento de demandas primárias como segurança alimentar, boas condições sanitárias, ambiente doméstico seguro, etc. Esse conjunto de demandas indica que a experiência pandêmica põe à prova as redes de solidariedade necessárias para a sobrevivência da própria espécie humana.

É por isso que, mesmo em tal momento em que a vulnerabilidade de toda a vida humana é exposta pela pandemia de maneira tão cruel, alguns sujeitos possuem mais recursos do que outros para o enfrentamento à doença. Com efeito, ainda que a primeira onda de coronavírus no Brasil tenha se dado entre as pessoas mais abastadas que viajaram aos países afetados pela doença no início do ano, os riscos de exposição a Covid-19 não são iguais entre todas as pessoas em um país tão desigual quanto o Brasil. Com as recomendações para isolamento social em vigor, as desigualdades de raça, classe e gênero apresentaram-se gritantemente diante de nós[1]. É nesse sentido que vale lembrar o que escreveu Judith Butler[2] na mesma época em que nosso país começou a adotar medidas de distanciamento físico pelo início dos casos de transmissão comunitária: “A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo”.

Desastres naturais

Dentre as discriminações levantadas por Butler como relevantes, acrescentamos outras duas: o gênero e a sexualidade. A experiência social tem nos mostrado que os grandes desastres costumam ampliar a vulnerabilidade da população LGBT+, intensificando problemas preexistentes aos cenários de crise. Um forte exemplo disso foi o aumento da violência contra essa população após o terremoto que atingiu o Haiti em 2010, onde morreram cerca de 220 mil pessoas e mais 1,5 milhão ficou sem abrigo.

Com a morte de amigos e familiares, bem como a devastação dos meios de subsistência, as pessoas LGBT+ perderam boa parte de sua rede de proteção social. Muitas tiveram que se abrigar em campos de refugiados superlotados, com banheiros púbicos e pouca segurança. Conjugando esses fatores com a suscetibilidade desses grupos às diversas formas de violência, o estupro corretivo tornou-se frequentes nos campos de refugiados, impondo readequações na performance de gênero desses sujeitos, a fim de evitarem ser reconhecidos como lésbicas, gays, bissexuais ou transgêneras/os[3].

O terremoto no Haiti, entretanto, não foi um episódio isolado. O tsunami de 2004 no Oceano Índico, a erupção de 2010 no monte Merapi (Indonésia), o ciclone Winston que atingiu o Pacífico Sul em 2016[4], entre outros desastres de iguais dimensões, afetaram sobremaneira as pessoas LGBT+. Em especial, isso esteve relacionado às consequências comuns dessas tragédias: os meios de subsistência desses sujeitos foram atingidos com maior intensidade e a ruptura social proporcionada por esses eventos gerou novos contextos mais propícios à violência.

Pandemia

Fenômeno semelhante acontece no atual momento da pandemia de Covid-19. A ordem de distanciamento físico entre os indivíduos e a determinação de recolhimento no espaço doméstico são mais difíceis de serem cumpridas pelas pessoas LGBT+ e, mesmo quando cumpridas, acabam muitas vezes por se tornar fatores de risco em outros âmbitos.

Por serem sujeitos que costumam encontrar mais dificuldades de inserção no mercado de trabalho, são mais facilmente absorvidos por empregos precários do mercado informal. O caso das prostitutas e drag queens representa bem as condições de trabalho das pessoas LGBTs. A falta de proteção laboral e a renda dependente do dia trabalhado levam essas pessoas à completa falta de recursos para suprir as condições básicas de existência, tais que alimentação e moradia[5]. Para se ter ideia desse quadro, basta citar um exemplo: segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% da população trans está na prostituição ou utilizou-se dela como fonte de renda algum dia[6]. Sobrerrepresentadas no mercado de trabalho informal e sem proteções laborais garantidas por lei, boa parte da comunidade LGBT+ não consegue se abrigar em casa, ainda que o governo venha distribuindo um auxílio emergencial no valor de R$ 600. A escolha acaba sendo entre a fome provocada pelo isolamento físico e o risco de contaminação do trabalho nas ruas.

Além desse fato, o espaço doméstico pode ser um ambiente particularmente hostil para as pessoas LGBT+ em virtude da frequente discriminação que sofrem, aumentando a exposição à violência doméstica e familiar. O não reconhecimento da orientação sexual ou da identidade de gênero desses sujeitos os obriga a conviverem com situações cotidianas de violência física e psicológica, especialmente quando estão envolvidos contextos de lockdown ou toque de recolher. Fenômeno que se torna mais preocupante no Brasil em virtude de seus altos índices de violência contra a população LGBT+.

Um dado que ainda não foi suficientemente repetido sobre o Brasil é o de que, desde a criação do projeto Trans Murder Monitoring (Monitoramento de Assassinatos Trans) em 2008 pela ONG Trangender Europe (TGEU), ele tem sido apontado como o que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre outubro de 2018 e setembro de 2019, o Brasil foi responsável por 39% desses assassinatos[7], onde foram executadas 130 das 331 pessoas trans mortas em todo o globo nesse período.

Esses números, entretanto, tendem a ser maiores este ano. Os três relatórios sobre assassinatos de travestis e transexuais publicados pela ANTRA em 2020 revelam um considerável aumento no número de casos. No primeiro semestre deste ano, já foram executadas 89 pessoas trans, um número 39% maior do que no mesmo intervalo do ano passado. Além disso, são maiores também os casos de suicídios. Enquanto em todo o ano passado suicidaram-se 17 travestis e transexuais, já foram 14 vítimas só no primeiro semestre de 2020[8].

Ainda que a relação entre o aumento do número de crimes violentos contra pessoas trans e dos casos de suicídio, como efeitos sociais da pandemia de Covid-19, demande estudos mais precisos, há indícios suficientes que nos fazem acreditar em uma intensificação da vulnerabilidade das pessoas LGBT+ na atual crise sanitária. O acúmulo de experiências nesse sentido nos casos de desastres de grandes proporções é um padrão analítico importante para compreender o que está acontecendo com essa comunidade durante a pandemia.

A ausência de reconhecimento gera injustiças na distribuição de bens e serviços essenciais para a perpetuação da vida[9], injustiças que se tornam mais fortes em momento de catástrofe. Em épocas de escassez de recursos, aquilo que resta é distribuído entre aqueles que possuem maior reconhecimento social, entre as vidas que mais importam. Esse fenômeno enfraquece a rede de amparo social de uma população que já se encontrava mal inserida no mercado de trabalho e era frequentemente alvo de violências normativas[10], ampliando as assimetrias sociais preexistentes. É através desse movimento que o gênero e a sexualidade tornam-se fatores decisivos na distribuição dos recursos sociais necessários para a sobrevivência durante a crise sanitária. E é por isso que são categorias de análise indispensáveis para compreender a sociedade em tempos de pandemia.

 

Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia é Doutor em Direito (UFMG) é professor adjunto na UFOP e IBMEC-BH. E-mail: alexandre@ufop.edu.br.

Emerson Erivan de Araújo Ramos é mestre em Direito e doutor em Sociologia (UFPB). Prof. na UNIFIP. E-mail: eearamos@gmail.com.

 

[1] Como provoca Viviane Gonçalves Freitas: “Quem pode fazer home office? Quem pode comprar o básico que seja para se manter em meio a uma crise econômica que se aprofunda a cada dia? Quem pode seguir as regras de higienização constantes com água e sabão, uso de álcool gel e distanciamento dentro e entre moradias? Quem consegue atendimento adequado e a tempo de evitar uma piora no quadro ou até a morte? A quem cabe a maior parcela dos cuidados com a casa e com idosos e crianças em meio à pandemia?”. FREITAS, Viviane. As mulheres negras e a pandemia do coronavírus. In: Boletim nº 44: Cientistas Sociais e o coronavírus. Disponível em: http://www.aba.abant.org.br/noticia-16459. Acessado em 15 jun. 2020.

[2] BUTLER, Judith. O capitalismo tem seus limites. Blog da Boitempo, 20 de mar. de 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acessado em 22 jun. 2020.

[3] IGLHRC; SEROvie. The Impact of the Earthquake, and Relief and Recovery Programs on Haitian LGBT People. Disponível em: https://outrightinternational.org/sites/default/files/504-1.pdf . Acessado em 22 jun. 2020.

[4] OUTRIGHT Action International. Vulnerability amplified: the impact of the COVID-19 pandemic on LGBTIQ people. New York: [s.n.], 2020. Acessado em 22 jun. 2020.

[5] O relatório Vulnerability Amplified elaborado pela ONG OutRight Action International oferece uma excelente análise a nível mundial desse quadro preocupante.

[6] ASSOCIAÇÃO Nacional de Travestis e Transexuais. Governo anuncia R$ 200,00 mensais para autônomos de baixa renda. Disponível em: https://antrabrasil.org/noticias/. Acessado em 29 jun. 2020.

[7] TRANSGENDER Europe. TMM Update Trans Day of Remembrance 2019. Disponível em: https://transrespect.org/en/tmm-update-trans-day-of-remembrance-2019/. Acessado em 29 jun. 2020.

[8] ASSOCIAÇÃO Nacional de Travestis e Transexuais. Boletim nº 03/2020: Assassinatos contra travestis e transexuais em 2020. Disponíveis em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf. Acessado em 29 jun. 2020.

[9] Remetemos aqui aos conceitos de justiça por reconhecimento e justiça redistributiva em: FRASER, Nancy. Scales of justice: reimagining political space in globalizing world. New York: Columbia University Press, 2010.

[10] Conceito apresentado por Judith Butler no prefácio à edição de 1999 da obra Problemas de Gênero e que descreve uma forma de violência orientada para o enquadramento normativo dos sujeitos. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. London, New York: Routledge, 2002.



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