Viva a crise política!
O princípio da representação política e o voto universal, símbolos maiores da democracia, perdem o sentido quando “exigências” externas – da União Européia, da OMC, do mercado – limitam, e até impedem, o exercício do poder políticoAnne-Cécile Robert
O intervalo entre os dois turnos da eleição presidencial francesa, em maio de 2002, foi marcado por manifestações populares de grande amplitude. Elas traduziriam, na opinião de algumas pessoas, um “desejo de política1“. Entretanto, essa excepcional mobilização e o que a provocou – a presença da extrema-direita no segundo turno do escrutínio – revelam, principalmente, uma crise profunda do sistema de representação. Os corpos intermediários, em especial os partidos, funcionam num descompasso crescente em relação à realidade do corpo social. A atual crise é o resultado de um longo movimento de deslegitimação do poder político, intrinsecamente destruidor da democracia.
Há vinte anos, os chamados partidos de governo citam, teorizam e organizam o limite da ação pública. O enfraquecimento do Estado-nação, a inserção na globalização e a construção européia justificariam, segundo eles, uma diminuição do papel da política, para não dizer a sua “morte2“. Recentemente, Michel Barnier, representante na Comissão Européia, citou também a “mentira por omissão”, o “grande segredo”, que esconderia dos cidadãos que “os compromissos assumidos pelos candidatos à eleição presidencial dependem de um poder compartilhado com a União Européia3“. Após adotarem a “política da austeridade”, em 1983, os dirigentes socialistas popularizaram esse fenômeno, cunhando-o com a expressão “exigências externas”.
O Estado ausente
O enfraquecimento do Estado-nação, a inserção na globalização e a construção européia levariam à diminuição do papel da política, segundo os partidos
Embora nenhum observador sério ousasse negar que “os tempos são duros e [que] a margem de manobra não é grande4“, nem ousasse sugerir um “recuo covarde” em âmbito nacional, como tentam ameaçar os arautos do pensamento único, o discurso sobre as exigências não é neutro. Velho como a democracia, sempre serviu para legitimar a ordem estabelecida. Já em 1791, Barnave tentava, em seu nome, “pôr fim à revolução”, pois a superação das conquistas de 1789 implicava o questionamento do direito da propriedade privada. De todo modo, essas exigências sempre foram impostas à esquerda, como uma maneira de frear seus ímpetos reformistas. Não havia o discurso, em 1936, de que a semana de 40 horas e as férias remuneradas iriam levar as empresas francesas à falência5? Entretanto, havia, naquela época, um presidente do Conselho socialista – Léon Blum – que, interpelado por um presidente da República recalcitrante, respondeu: “Está no meu programa.”
Atualmente, esse realismo foi levado tão longe, que passou sistematicamente a se opor a qualquer luta social. Em 1999, por exemplo, o primeiro-ministro Lionel Jospin causou espanto ao confessar sua impotência para enfrentar uma onda considerável de demissões: “O que se passa na empresa Michelin não nos deve fazer esquecer a atual tendência econômica… Não creio que, hoje, se possa administrar a economia… Não é por meio da lei, nem através de textos, nem tampouco pela administração que será possível regular atualmente a economia6.”
Os excluídos da política
O reconhecimento dos limites do poder público antecipa a violência que esses limites exercem sobre um corpo social enfraquecido. Na realidade, quem poderia deixar de constatar que as exigências, o “contexto cada vez mais globalizado e europeizado”, sobrecarregam constantemente as mesmas categorias sociais, e que o “fardo”, como enfatizava John Kenneth Galbraith, não é senão “o que atende aos interesses de cidadãos que não fazem parte da maioria satisfeita; o que – verdade incontornável -serve para os pobres7“? Justificando, em nome do realismo, as opções conservadoras, as “exigências” uniformizam a “oferta” política, privando de representação uma parte significativa da sociedade: os “pobres”, os operários, os excluídos da ordem social, os “dominados”…
O discurso das “exigências externas” não é neutro. Sempre serviu para legitimar a ordem estabelecida e para frear os ímpetos reformistas da esquerda
E sua representação também não é garantida quando as classes dominantes, às vezes com as melhores intenções do mundo, pretendem falar em seu nome e defender seus interesses. Essa evolução substitui a luta do explorado pela assistência ao pobre. Essa mudança de tom era evidente num panfleto socialista parisiense em 2001: “Para nós, o socialismo – em seu sentido literal – significa integrar às nossas vidas os valores fundamentais que nos foram legados por um Jaurès, um Blum, e até um Marx, um Zola e, mais próximo de nós, um abade Pierre ou um Coluche.”
Contestação do conformismo
É a democracia inteira que é atingida pelas limitações do poder político: o próprio princípio da representação, o sufrágio universal, perde seu sentido se as opções políticas forem barradas por uma “exigência objetiva”. A violência da dominação pode então surgir por vias inesperadas. Os resultados da eleição presidencial francesa o confirmam: os partidários das “exigências”, fossem eles de esquerda ou de direita, foram penalizados no primeiro turno (Jacques Chirac obteve um resultado excepcionalmente baixo para um presidente em fim de mandato: menos de 20% dos votos; o primeiro-ministro socialista foi eliminado), enquanto o candidato que questionava – de maneira absurda e xenófoba – o fatalismo econômico, chegou pela primeira vez ao segundo turno, conseguindo uma parte importante do voto popular, principalmente operário8.
Em 1999, o primeiro-ministro Lionel Jospin causou espanto ao confessar sua impotência para enfrentar uma onda considerável de demissões na Michelin
Subestimou-se o que havia de destruidor da democracia – o fato de adotar, em nome da esquerda, políticas anti-sociais. A extrema-direita ocupou, com seu programa social e cultural retrógrado, o campo político abandonado pelos democratas. Além disso, outras formas de contestar o conformismo político se fizeram presentes: abstenção, recorde de votos brancos e nulos, multiplicação e sucesso de pequenas candidaturas aproximando-se ou afastando-se do patamar dos 5% do total de votos. No entanto – sinal do profundo mal-estar que se apossou da representação política – neste último caso, quantos eleitores desejariam realmente ver seu candidato ou candidata chegar à presidência da República?
O poder com o mercado
Na realidade, a crise está simultaneamente vinculada à definição dos campos de ação pública (local, nacional, européia, mundial) e à impotência do construtivismo político, isto é, a capacidade de pensar o real e elaborar soluções para os problemas que daí decorrem. Pois, a diluição do poder político é mecânica – a inserção na globalização – e ideológica, no sentido que Claude Lefort, corroborando Marx, analisou a ideologia como aquilo que tem como função, ao se impor como discurso racional, impedir o questionamento sobre os fundamentos, a legitimidade e a evolução da ordem social9.
Aliás, esses dois problemas alimentam-se entre si: uma vez que o político é impotente, transfira-se o poder para a sociedade e para seu “acionista majoritário”, o mercado; uma vez que o real nos escapa, oficialize-se a morte da ação pública. A profissionalização da política, tornando-se ofício ao invés de um mandato, é a conseqüência lógica desse processo. Administrar não é representar.
Justificando as opções conservadoras, em nome do realismo, as “exigências” padronizam a “oferta” política, privando de representação uma parte do povo
No entanto, o caráter mecânico e ideológico da perda do poder político deriva, em grande parte, de uma supervalorização das exigências impostas. Decorre do que Claude Lefort chama o “desconhecimento ideológico da ideologia”. Na verdade, no início da globalização, encontram-se decisões adotadas primeiramente pelos Estados Unidos (a decisão, por exemplo, do presidente Richard Nixon de desvincular o dólar do ouro, em 1971, desencadeando a volatilidade dos movimentos de capitais), em seguida pela Comunidade e pela União européias (por exemplo, a livre circulação dos capitais acelerada pelo Decreto Único).
A degenerescência da democracia
E os próprios dirigentes políticos atam voluntariamente as mãos, adotando tratados que esvaziam sua capacidade de agir, em proveito do mercado. A criação e o constante reforço de instituições como a Organização Comercial do Comércio (OMC), assim como acordos internacionais que subjugam os governos, fazem-se sempre com seu consentimento. Se o Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) tivesse vingado, teria conseguido impor o “ferrolho jurídico”, impedindo os países de se oporem às opções das empresas. Os tratados europeus, principalmente o Tratado de Maastricht e o Pacto de Estabilidade Orçamentária e de Crescimento, adotados e ratificados por unanimidade, também preenchem idêntica função de imobilizar o poder político.
O direito tornou-se uma arma temível pela qual os representantes do povo se protegem contra si próprios. Diferentemente do internacionalismo operário originário das lutas sociais do século XIX, a globalização não é, portanto, um projeto democrático. Significa, ao contrário, a morte da representação política e do sufrágio universal em nome de uma concepção “objetiva” do real. A confusão estabelecida entre os dois termos – internacionalismo e globalização – contribui para essa degenerescência da democracia.
A anestesia das relações sociais
Os resultados da eleição presidencial francesa confirmam que os partidários das “exigências” (esquerda e direita) foram penalizados no primeiro turno
Entretanto, a supervalorização das exigências não é isenta de contradições. O governo dos Estados Unidos, principalmente, sabe superar as barreiras da ordem globalizada quando seus interesses estão em jogo. Em março de 2002, por exemplo, aumentou consideravelmente as tarifas alfandegárias para proteger o aço norte-americano. Também na União Européia, os governos conservam importantes meios de agir: exemplo disso é o papel determinante desempenhado pelo Conselho Europeu, em que os chefes de Estado e de governo são representados paritariamente e decidem, por consenso, a necessidade de ratificar qualquer tratado por unanimidade, assim como a persistência do direito ao veto, cujo jogo político foi revelado, em dezembro de 2000, na reunião de cúpula de Nice10. O presidente francês poderia, caso desejasse, fazer uso disso na reunião do Conselho Europeu em Sevilha, em junho de 2002, para exigir as reformas, apoiando-se na legitimidade singular, adquirida graças ao expressivo resultado eleitoral (82% no segundo turno).
É nesse hiato entre o dogma e a realidade que se instala a crise política e que, certamente, se encontram as vias para sua solução. Na realidade, a desvalorização do poder político e o retorno da fatalidade social prosperam sobre a destruição de um elemento essencial para a democracia: a existência de um “futuro” possível ou utópico que ajuda a suportar o sofrimento do presente, carregando consigo as perspectivas de sua superação. Ou seja, de maneira simétrica ao processo totalitário, a vitória ideológica do liberalismo instaura uma ditadura dos fatos em que os interesses econômicos e sociais de curto prazo de um grupo prevalecem sobre os interesses de longo prazo da coletividade. Pouco importa a injustiça do mundo, não há solução “futura”. E a retórica da “aldeia global”, por sua convivência e neutralidade aparentes, tem por função anestesiar as relações sociais.
Evitando a fatalidade social
A atual crise está vinculada à definição dos campos de ação pública e à impotência de elaborar soluções para os problemas que decorrem do real
A reconstrução da oferta política não se fará sem uma reconquista desse futuro, baseada numa análise crítica do mundo e nas relações de dominação existentes. Isso implica – principalmente para a esquerda que, no entanto, jamais o assimilou – superar a derrota e o medo inspirado pela lembrança dos sistemas totalitários que se opuseram à lógica capitalista. Na verdade, como enfatiza o economista antiutilitarista Alain Caillé, a auto-limitação do político ocorre precisamente no momento em que “o capitalismo começa verdadeiramente a se encaixar na descrição marxista; tendo conseguido se livrar de toda regulamentação, não somente política, mas também moral, ética ou cultural, deixou de ser compensado por outros princípios, não tendo mais de prestar contas senão a ele próprio11“.
É um verdadeiro processo de aculturação política que é preciso refazer, sob o risco de ver o “desejo de política” se traduzir num tribalismo fraterno desarticulado – numa das manifestações de 1º de maio de 2002 contra a extrema-direita, por exemplo, uma jovem exprimia essa confusão cultural exclamando: “Isto me lembra a Copa do Mundo!” Mas a aculturação refere-se ao conjunto de um corpo político sobre o qual o discurso das exigências “desaprendeu” a pensar como seres livres. “O que me desconcerta”, dizia Pierre Bourdieu em 1992, “é o silêncio dos políticos. Eles têm uma formidável carência de ideais mobilizadores. (…) Urge criar as condições para um trabalho coletivo de reconstrução de um universo de ideais realistas, capaz de mobilizar as vontades sem mistificar as consciências12.”
Resta determinar as modalidades e os lugares em que será exercida – local, nacional, europeu – a regulamentação pública. Sua definição não pode ser mais realizada às escondidas, fora do debate democrático. É em torno dessas opções fundamentais que a oferta política deve ser redefinida, em total liberdade. Porque, no momento, pouco importa se não existe um projeto-chave que se oponha à globalização liberal; resta sempre aos cidadãos a possibilidade – e mesmo o dever – de enveredar por um outro caminho que não o indicado pela fatalidade social.
(Trad.: Marinilzes Mello)
1 – Ler, de Michel Wievorka, “Donnez-nous envie de voter à gauche”, Libération, 10 maio de 2002.
2 – Declaração de Pascal Perinneau no Canal TF1, 21 de abril de 2002.
3 – Ler, de Michel Barnier, “Le grand secret de l?élection présidentielle”, Libération, 12 de fevereiro de 2002.
4 – Le Monde, 14 de janeiro de 1992.
5 – Ler, de Serge Halimi, Quand la gauche essayait, ed. Arléa, Paris, 2000.
6 – Canal France 2, 14 de setembro de 1999.
7 – Ler, de John Kenneth Galbraith, La République des satisfaits, ed. Seuil, Paris, 1993.
8 – Ler, por
Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).