Você com um smartphone na mão é um bicho feroz…*
Estamos dando ao ódio uma dimensão muito maior do que a que ele realmente tem
O artigo do El país, publicado no final de 2017, Fernando Holiday, o vereador incendiário nas redes e cordial na Câmara nos faz refletir sobre um fenômeno extremamente curioso. O texto de Felipe Betim diz que “a postura de Holiday durante toda a votação [na Câmara] contrasta com seu modus operandi nas redes sociais, nas quais aborda, sobretudo, temas nacionais e pouca coisa sobre seu mandato ou a cidade de São Paulo. Elas são constantemente atualizadas, principalmente o Facebook, com postagens contundentes e por vezes agressivas contra a esquerda, o PT e seus adversários”.
Esse tipo de atitude não é contraditória. Na verdade ela é fruto de um fenômeno social que assola a humanidade nas últimas décadas: o de darmos ao ódio virtual uma dimensão que ele não tem no mundo real.

A separação entre lazer e trabalho
Os indivíduos das sociedades pré-industriais não continham sua excitação. Não existia um esforço em controlar sentimentos e emoções em público. Mas o processo civilizador, segundo Norbert Elias, interferiu diretamente nesse padrão comportamental.
Tal processo, que culminou na sociedade industrial e que, por sua vez, atribuiu relevância inestimável ao trabalho, determinou que a excitação ficaria apenas reservada aos momentos de lazer. “Rituais sociais e cerimônias de casamentos e funerais, por ocasião do nascimento das crianças ou da entrada na maioridade e situações semelhantes, dificilmente proporcionam já assinalável excitação pública como acontecia nas sociedades mais simples”.[1]
O sociólogo alemão diz que nas sociedades industriais o futebol, o teatro, a música, o cinema etc. provocam essa excitação. Tais atividades de lazer possibilitam o contato com o inesperado e com a imprevisibilidade execrada nas ações laboriosas. Dessa maneira, o trabalho ficou atrelado a nossa rotina racional diária, enquanto o lazer, onde é permitida a excitação, ao tempo livre.
Mas é lógico, destaca Elias, que “seja qual for o seu caráter, a excitação e a emoção compensadora, reclamada em algumas atividades de lazer, nestas sociedades são limitadas igualmente por restrições civilizadas”. E é ainda mais curioso quando Elias use o termo “mimético” para designar o tipo de excitação provocada pelo lazer. É uma excitação que imita a “vida real”, não sendo seriamente perturbante e perigosa. Certas emoções “incendiárias” experimentadas na “realidade” poderiam provocar distúrbios irreparáveis. O que nos faz pensar nos games violentos e na fúria despejada nas redes sociais, locais, aparentemente, reservados para isso.
No entanto, essa fronteira é tênue porque há “uma relação muito especial e muito direta entre os sentimentos com os quais os fatos miméticos estão de acordo e os sentimentos que se encontram em harmonia com situações críticas reais”. E na crítica situação política que nos encontramos, a linha que separa o mimético do sério quer nos convencer que está prestes a se romper, mas isso, contudo, não passa de uma ilusão.
A excitação e o ciberespaço
Quando o indivíduo está “rolando” a sua timeline no Facebook, ele também se encontra em tempo livre, em um momento de lazer realizando uma atividade não remunerada e, com frequência, depara-se com algo imprevisível: uma notícia polêmica ou um post chocante. Muitas postagens buscam este fim, são polêmicas e chocantes propositalmente para assim seduzir as mentes ávidas por prazer.
O problema é que para Elias, o desporto, a música, o cinema etc. são contrapontos a situações sérias. Esses tipos de atividades não podem provocar excitações que tumultuem o mundo real. No entanto, em razão da crise pela qual passamos, criamos a ideia de que essa restrição parece sucumbir-se nas redes sociais. O que se pensa atualmente é que lá a excitação é capaz de provocar tumultos no mundo concreto, incitando um comportamento político reacionário, agressivo, linchamentos etc. Contudo, o que acontece na verdade é que estamos dando ao ódio uma dimensão muito maior do que a que ele realmente tem, seja por necessidades psicanalíticas ou sociais.
Lacan não acreditava no grande Outro, um espírito que tudo forma, como pensava Hegel. No entanto, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek, “para que um indivíduo mergulhe no espaço virtual, o grande Outro tem de estar lá, mais poderoso do que nunca sob o disfarce do próprio ciberespaço, essa forma diretamente universalizada de socialidade que nos permite nos conectar com o mundo inteiro enquanto estamos sentados sozinhos diante de uma tela”.
A ideia de que a coletividade se desmanchou em pequenos mundos, que ficamos reduzidos a átomos sociais, é interessante, mas esses átomos, isto é, os indivíduos em suas redomas, precisam de um lugar onde todos possam se encontrar. Neste espaço, todos sabem que estão sendo observados, melhor dizendo, há um desejo comum de quem penetrou nesse ambiente de ser vigiado. Esse local apresenta-se como neutro, o que permite “que o espaço ‘privado’ das idiossincrasias pessoais, imperfeições, fantasias violentas etc. não transborde numa dominação direta dos outros”.[2] É um lugar perfeito para descarregar o ódio.
Isso explica por que se pode ser incendiário nas redes sociais, xingar todo mundo, mas no mundo “real” ser comportado. Lembra até o estereótipo do psicopata hollywoodiano, o assassino em série que se comporta como um gentleman em público, mas no porão de sua casa sempre há alguém sendo torturado até a morte. As redes sociais trouxeram o porão para a luz do sol.
É preciso repetir que, embora seja um fenômeno perigoso, as redes sociais dão ao ódio uma dimensão muito maior do que a que ele realmente tem. Um estudo publicado pelo Valor Econômico revela que a maioria dos brasileiros, em cifras de mais de 60%, defendem os direitos humanos, inclusive para bandidos. O Datafolha assegura que “os brasileiros que apoiam os direitos dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%”, embora sejamos os primeiros no ranking de assassinatos de travestis. Mas, ainda assim, as redes sociais querem nos fazer crer em uma realidade um tanto quanto diferente que a concretude do mundo real confirma. Não foram as redes sociais que criaram o ódio, este, na verdade, sempre existiu, e só esperava um momento de crise para vir à tona.
Também podemos ser enganados por uma suposta dimensão ampliada desse ódio pelo fato dele pertencer a uma classe que tem maior (em número) acesso à internet. De acordo com os dados da TIC Domicílios, do Núcleo de Informação e Comunicação do Comitê Gestor da Internet (CGI-Br), ainda há desigualdade no acesso à internet. Ela “está em 29% das casas com famílias com renda de até um salário mínimo, contra um índice de 97% naquelas que ganham até 10 salários mínimos. Enquanto na classe A a penetração é de 98%, nas classes D e E ela fica em 23%”. Conforme destaca a pesquisa feita pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomercio-RJ) e o Instituto Ipsos em 2016, a classe C atinge 69% do acesso à internet. Existindo essa classe em maior número (cerca de 49% da população), tudo indica que ela, ao lado da classe dominante que a seduz e que compartilha dessa raiva, é, provavelmente, o principal caminho por onde o discurso de ódio é transmitido.
Mas essas palavras agressivas que salpicam na ecranosfera não chegam nem perto da violência praticada no mundo real, onde se sepulta negros assassinados, violenta-se mulheres e se trata com vilipêndio os cidadãos dos morros e das favelas. Essa violência é histórica, e está muito além do discurso que circula nas redes sociais. Estas deram virtualidade ao que sempre existiu, mas não intensificaram a prática. Até porque o ódio nas redes sociais pertence, em grande parte, a um grupo de adolescentes frustrados com as dificuldades de comprar um novo game ou um celular de última geração (adolescentes que aumentaram consideravelmente devido ao crescimento da classe C), enquanto o ódio e a violência praticada no mundo real é fruto da luta de classes, da necessidade moral de manter a reputação dentro de um quadro moral arcaico, dos 135 estupros em média por dia, das 5.012 mortes cometidas por policiais por ano, das classes dominantes que, cada vez mais, concentram a renda. Aliás, a crise é sempre uma oportunidade para aumentar a concentração de renda e para legitimá-la, como demonstram as medidas que buscam retirar os direitos trabalhistas.
Mas, seja como for, diferente de outros momentos de lazer, as redes sociais estão abrigando indivíduos que buscam por uma excitação agressiva gratuita. As pessoas estão rindo de absurdos com maior frequência sem precisar demonstrar suas bocas escancaradas entorpecidas por uma emoção explosiva. Muitos aplaudiram quando as redes sociais levaram multidões às ruas para derrubar ditadores no Oriente Médio, hoje às condenam por disseminar o ódio a torto e a direito, independente da posição política. Mas uma coisa é certa, as excitações provocadas nas redes sociais só ganharam força porque foram convenientes para a estrutura vinculada aos interesses capitalistas, porque caso contrário, a boa e velha repressão agiria sem pudor. A excitação no mundo virtual reflete a falta dela no mundo real (onde todos estão preocupados com as contas, salários e doenças). A repressão que aumenta, cada vez mais, no mundo real nos faz migrar para o virtual levando-nos a refletir a partir deste; um mecanismo perfeito para dar um novo gás às engrenagens do sistema.
*O título deste texto é inspirado em um sucesso de Bezerra da Silva que pode parecer um tanto quanto homofóbico, por isso, no trocadilho que aqui fizemos, preferimos não complementar a frase da composição do sambista carioca.
**Raphael Silva Fagundes é doutorando em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.