Você também pode ser como eu
Para Michelle Obama, sua história é indiscutivelmente fascinante, e ela teve êxito para transformá-la em um capital que não parou mais de dar frutos – 10 milhões de exemplares de Becoming vendidos no mundo durante os primeiros seis meses, um sucesso inédito para memórias
Uma vela perfumada decorada com as palavras: “Descubra sua chama e a mantenha acesa”; uma caneca com a inscrição: “Descubra sua voz”; uma camiseta com a famosa frase: “Quando eles [nossos adversários] afundam, nós nos erguemos” (When they go low, we go high), pronunciada na Convenção Democrata de 2016; um caderno intitulado “Transformando-me” – slogan que se encontra em roupinhas rosas ou azuis… Esses artigos da loja on-line1 dedicados às memórias de Michelle Obama revelam muito bem a conversão da ex-primeira-dama dos Estados Unidos em um império do desenvolvimento pessoal. De fato, podemos imaginar uma inspiradora mais digna de confiança do que essa mulher que, de acordo com a expressão consagrada, “partiu do nada” e chegou ao pico do mundo?
Becoming,2 além de título de sua autobiografia, se desdobra em um conceito do qual todos são convidados a se apropriar. Para acompanhar o lançamento do livro, em novembro de 2018, ela se jogou numa turnê mundial digna de uma estrela do rock – na França, com uma passagem pela AccorHotels Arena, em 16 de abril de 2019. Em sua chegada ao palco, telões difundiam as palavras de anônimos que diziam, com uma mistura de seriedade e humor, o que eles próprios estavam prestes a se tornar. Michelle Obama alterna habilmente inacessibilidade e proximidade. Ela se apresenta ora como única, ora como totalmente comum, suscitando ao mesmo tempo a reverência e a identificação. Engraçada, carismática, ela cuida da imagem de sua família ideal, mas conta também a terapia de casal para a qual ela arrastou o marido, e suas vontades ocasionais, após os clichês enamorados, de “jogar o outro pela janela”.
“Compartilhemos nossas histórias”, “Valorizem sua história”… A palavra “história” reaparece sem parar em seu discurso e em sua escrita. “Jamais pensei que entrar na universidade seria fácil, mas aprendi a me concentrar e a confiar em minha própria história”, escreve. Ou ainda, a propósito da campanha para a eleição presidencial de 2008: “Quanto mais contava minha história, mais minha voz se fortalecia. Eu adorava minha história. Eu me sentia à vontade ao contá-la”. Ela relata também o modo como o jovem Barack Obama, quando ele era militante de uma associação, animou uma reunião com habitantes de um bairro pobre de Chicago: “Ele estava lá para convencê-los de que nossas histórias nos ligam uns aos outros e que, por meio dessa união, é possível acabar com o ressentimento e transformá-lo em algo útil”.3
Não há nada de surpreendente nessa confiança ilimitada no storytelling.4 Para Michelle Obama, sua história é indiscutivelmente fascinante, e ela teve êxito para transformá-la em um capital que não parou mais de dar frutos – 10 milhões de exemplares de Becoming vendidos no mundo durante os primeiros seis meses, um sucesso inédito para memórias. Trata-se da história de Michelle Robinson, descendente de escravos, jovem de uma família modesta do South Side, os bairros populares de Chicago, que, graças a muito trabalho e tenacidade, teve acesso às universidades de Princeton e Harvard, antes de se tornar advogada e encontrar um colega brilhante cheio de futuro. Em seu casamento, em 1992, uma amiga interpretou uma canção de Stevie Wonder, “You and I (We Can Conquer the World)” [Você e eu (Nós podemos conquistar o mundo)]…
Seu destino de primeira negra ocupante da Casa Branca torna sensacional, retrospectivamente, toda a narrativa de sua juventude. Em Princeton, por exemplo, a mãe de uma de suas colegas, insatisfeita por sua filha coabitar com uma estudante negra, pediu a ela que mudasse de quarto; o leitor pode se deleitar com o pensamento de que essa mulher impediu que sua filha convivesse com uma futura primeira-dama dos Estados Unidos. Michelle Obama dá um testemunho com muita acuidade sobre os mecanismos da discriminação racial e social. Quase quarenta anos depois, ela continua magoada particularmente com as palavras cheias de desdém de uma coordenadora do liceu: “Penso que você não foi feita para Princeton”. É possível que essa experiência humilhante seja significativa para todos os seus leitores provenientes de minorias e/ou classes populares com os quais ela for compartilhada.5 “O fracasso é um sentimento durante muito tempo antes de ser um fato”, ela observa.
“Quando queremos, podemos”? Oficialmente, essa não é a mensagem que Michelle Obama quer passar. Ela própria viu muitos membros de sua família não poderem realizar seus sonhos, apesar de seus esforços. Seu irmão mais velho e ela receberam a missão de enfrentar essas ambições frustradas. “Nossos pais jamais iam à praia, nunca saíam para jantar. Não tinham casa própria. Nós éramos seu investimento, Craig e eu. Tudo era para nós”, ela escreve. Dramas que ocorreram ao seu redor lhe confirmaram que, às vezes, a vida era injusta e que o mérito não resolvia tudo. Mas, com frequência, a força de seu exemplo pessoal parece varrer as restrições e as nuances.
Em seu livro, ela salienta várias vezes a total indiferença de seu marido para com os bens materiais, no início da relação entre eles, como se ela quisesse sugerir que a virtude acaba sempre atraindo uma recompensa ressonante e tilintante – como diz o provérbio “aux innocents les mains pleines” [aos inocentes, muito dinheiro]. Segundo ela escreve: “Eu não estava preparada para a possibilidade de ele jamais ganhar dinheiro”. Ela descobriu em contato com ele uma ideia nova: “Uma coisa é se livrar de um lugar desfavorecido; outra é fazer que perca seu caráter desfavorecido”. Após a união deles, ela abandonou o escritório de advocacia em que trabalhava e ocupou postos que lhe davam um sentimento maior de utilidade. Às vezes, à noite, na cama, seu companheiro fita o teto; quando ela lhe pergunta em que está pensando, ele responde: “Nas desigualdades de renda”. Aparentemente, esse asceta idealista tem experiência de vida. O ex-presidente pode a partir de então embolsar US$ 400 mil por uma fala diante dos empregados de Wall Street. O editor da Penguin Random House pagou um adiantamento de US$ 65 milhões por sua autobiografia (enquanto escrevia) e pela de sua esposa. Desde 2009, ano de sua entrada para a Casa Branca, o casal multiplicou sua fortuna por trinta, ou até mesmo por cem.6
“Com muito trabalho e uma boa educação”, disse Michelle Obama em Paris, “tudo é possível, até mesmo se tornar presidente.” “Presidente” aparece, assim, como o modelo do êxito supremo, logo acima de superstar da música ou criador de uma grande empresa. A vocação de um eleito – melhorar as condições gerais, pelo menos em termos ideais – cai no esquecimento. Obviamente, a ex-primeira-dama às vezes fala de “construir um mundo melhor” (blusão por US$ 60 na loja on-line). Mas, no palco e em seu livro, ela faz em poucas frases o balanço da presidência de seu marido, imputando todos os seus fracassos à obstrução dos republicanos.7
Por desencargo de consciência, ela jamais quis ter sensibilidade política. Ela diz não gostar desse mundo para o qual, apesar de relutante, foi levada. A clivagem entre democratas e republicanos lhe parece um divisor inútil. Apesar de sua imensa popularidade, ela rejeita a ideia de uma candidatura à eleição presidencial de 2020. Outrora demonizada, definida pelo establishment conservador com o estereótipo agressivo da “mulher negra raivosa”, ela se tornou hiperconsensual. Michelle Obama não esconde seu afeto por George W. Bush, responsável – entre outras coisas – pelo abandono dos habitantes negros e pobres de Nova Orleans durante e após o furacão Katrina, em 2005.
Sua obsessão é a educação, mas, para promovê-la, ela se contenta com um voluntarismo etéreo (“acreditar em si”, “trabalhar bastante”). Sua iniciativa Reach Higher (“alcançar um patamar mais alto”), lançada quando ela estava na Casa Branca e destinada a favorecer o acesso aos estudos superiores, não colocava em questão as matrículas delirantes cobradas dos estudantes. Além disso, esse objetivo basta?8 O que pensar sobre todos aqueles que não irão para a universidade? Se a questão é “valorizar sua história”, é possível notar o uso muito diferente que faz dessa ideia a célebre representante da ala radical do Partido Democrata de Nova York, Alexandria Ocasio-Cortez. Garçonete, foi eleita para o Congresso, também é carismática e também tem um percurso que faz pensar. Mas se beneficia dele para iniciar seus concidadãos nos arcanos da democracia norte-americana, seja em sessões do Congresso, seja por meio das redes sociais. E, em maio, ela passou para trás do balcão de um restaurante durante uma noite para sustentar o projeto de lei “Aumentem os salários” (Raise the Age Act).9 Submetido ao voto em julho, o projeto introduz um salário mínimo federal de US$ 15 por hora (em lugar dos US$ 7,25 atuais) até 2024, uma reivindicação lançada pelos trabalhadores dos fast-foods.10
Por mais sedutores que permaneçam Michelle e o marido, o Partido Democrata, sem dúvida, terá uma evolução mais interessante se a tendência representada por Ocasio-Cortez, Bernie Sanders e seus aliados for reforçada. Os primeiros apresentam de forma sedutora para seus admiradores uma entrada para o clube dos vencedores; os segundos lutam para que não haja mais perdedores – uma maneira mais convincente, é preciso reconhecer, de “construir um mundo melhor”.
Mona Chollet é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Disponível em: <https://becomingmichelleobamashop.com>.
2 Michelle Obama, Becoming, Penguin Random House, Nova York, 2018 (no Brasil, Minha história, Objetiva, São Paulo, 2018).
3 Michelle Obama, op. cit. Salvo menção diferente, todas as citações foram extraídas desse livro.
4 Ler, de Christian Salmon, “Une machine à fabriquer des histoires” [Uma máquina de fabricar histórias], Le Monde Diplomatique, nov. 2006.
5 Escutar, por exemplo, os “trois minutes de violence sociale” [três minutos de violência social] captados em um liceu profissional de Marselha: Pascale Pascariello, Voix de garage, Arte Radio, 28 maio 2013. Disponível em: <www.arteradio.com>.
6 Stéphanie Le Bars, “Les très riches heures du couple Obama” [As horas muito ricas do casal Obama], M – Le Magazine du Monde, 13 abr. 2019.
7 Ler, de Benoît Bréville e Serge Halimi, “Les limites du symbolisme” [Os limites do simbolismo]. In: “Affrontements américains” [Enfrentamentos americanos], Manière de Voir, n.149, out.-nov. 2016.
8 Ler, de John Marsh, “L’éducation suffira-t-elle?” [Basta a educação?], Le Monde Diplomatique, jan. 2012.
9 Fernanda Echavarri, “Alexandria Ocasio-Cortez walked into a bar… and poured scorn on the minimum wage” [Alexandria Ocasio-Cortez entrou em um bar… e ridicularizou o salário mínimo], Mother Jones, São Francisco, 1º jun. 2019.
10 Ler, de Thomas Frank, “Révolte américaine contre les ogres du fast-food” [Revolta americana contra os gigantes do fast-food], Le Monde Diplomatique, fev. 2014.