Wikipédia, o fim da excelência
Na enciclopédia gratuita escrita por seus usuários, os redatores são classificados de acordo com o número de contribuições e o tipo de artigo sobre o qual se debruçam. Porém, a liberdade de colocar online qualquer conteúdo que quiserem nem sempre é bem-vinda: se algumas páginas são excelentes, outras são péssimas
Restrita a especialistas e hackers em seu início, a produção na internet está hoje muito mais aberta ao público leigo: a chamada “Web 2.0”1 inaugurou possibilidades totalmente novas de engajamento online, num processo de elaboração independente e sem amarras.
Nos blogs e na plataforma “wiki”2, a legitimidade do conteúdo publicado depende inteiramente dos próprios internautas. Na Wikipédia, a enciclopédia gratuita escrita por seus usuários, os redatores são classificados de acordo com o número de contribuições, o tipo de artigo sobre o qual se debruçam e uma série de outros critérios.
Porém, se todos podem se exprimir, como distinguir o joio do trigo digital? Para os aficcionados do software livre e para os gigantes do comércio online Amazon e eBay existe uma solução: avaliar quantitativamente as consultas dos internautas à determinada página. O mesmo pode ser aplicado às “mídias sociais” que permitem o armazenamento e o compartilhamento coletivo de informações, tais como o Reddit e o Digg e, evidentemente, com o algoritmo PageRank, que produz os resultados do Google.
“Wiki” significa “rápido” em havaiano. O princípio wiki é o de que qualquer pessoa pode criar uma página, modificar outra já existente ou alterar a organização de um site, criando links, por exemplo. Os autores cadastrados conseguem ainda desenvolver uma página pessoal catalogando seus trabalhos e registrando os sinais de estima recebidos de seus pares, além de utilizá-la para troca de mensagens. Assim podem também vigiar as modificações feitas nos artigos que lhes interessam, por meio de uma lista de vigilância.
Os wikis são dotados de um mecanismo de back-up único, pois cada modificação feita em uma página gera uma nova versão e arquiva a precedente. Isso permite verificar o histórico de evolução das páginas ou de facilmente retornar a uma versão anterior caso haja qualquer problema. O resultado, claro, é uma vasta proliferação de conteúdos. As páginas de discussão (“talk pages”) constituem uma parte imensa desse iceberg: os redatores debatem aí tanto os conteúdos dos artigos como a política geral dos sites.
O modelo de desenvolvimento da Wikipédia, que o professor de direito israelense Yochai Benkler batizou como “produção coletiva entre pares” (“peer production”), exige uma grande autonomia dos participantes, que se autoatribuem tarefas. É verdade que alguns acabam por exagerar ou ludibriar os demais no tocante às suas competências reais, mas Benkler estima que o controle, seja pelos pares ou pela média estatística, é suficiente para sua regulação3.
Baseada na comunicação entre iguais, essa produção de massa se opõe à posição isolada do especialista. O fundador da Wikipédia, Jimmy Wales, declarou em junho de 2008 que uma enciclopédia aberta requer uma “precisão extraordinária de pensamento”, pois, ao contrário dos “autores confortáveis de uma enciclopédia hierárquica clássica”, as pessoas que trabalham em projetos abertos estão sujeitas “ao contato e à contestação caso utilizem argumentos ruins ou se baseiem em premissas errôneas4”.
Em outras palavras, na Wikipédia, a excelência não está mais encarnada em uma “pessoa”, mas em um “processo”, na aglomeração de múltiplos pontos de vista e na sabedoria da multidão. Por isso a criação de esboços de artigos é encorajada: com um pouco de trabalho coletivo esses textos podem muito bem se transformar em pérolas do conhecimento.
A chave do sucesso é, portanto, o recrutamento. Mas para que este seja intenso e constante, é preciso que a experiência wikipediana torne-se imediata, uma qualidade obtida por meio do seguinte princípio fundador: “você pode editar esta página imediatamente.”
O que entra na enciclopédia
O critério oficial para determinar o que é ou não enciclopédico e quais assuntos merecem figurar no projeto é a “notoriedade”. Contudo, o exemplo de um expert em novos meios de comunicação fala por si: Jason Mittel, professor do Middlebury College, é o tema de uma página na Wikipédia e tentou, sem sucesso, apagá-la. Acredita “não ser notório o bastante”. “Por que Jason Mittel e Alexander Halavais, professor na Quinnipiac University, são temas da Wikipédia, enquanto docentes universitários americanos tais como Steve Jones ou Susan Herring, mais eminentes por terem publicado vários livros e artigos influentes, não o são?”, questiona.
Para Alexander Halavais, duas razões explicam sua presença na Wikipédia: em primeiro lugar, o fato de ter participado da Wikimania, a conferência anual da Wikipédia, em 2006; em segundo lugar, pela experiência que o levou a introduzir informações falsas em 13 artigos da Wikipédia, com a finalidade de descobrir o tempo necessário para que elas fossem corrigidas5.
Em todo o caso, figurar na enciclopédia parece depender de critérios bastante subjetivos. Jason Mittel concorda: a notoriedade é um valor bem mais relativo do que afirmam os wikipedianos, já que pode ser completamente dependente “da opinião e do julgamento de um redator em particular”. Inúmeros são os autores que viram seus trabalhos apagados por força de uma sentença implacável: “falta de notoriedade”.
Além dos critérios de inclusão dos artigos, os conflitos de opinião também chacoalham o projeto. O Tae-Kwon-Do seria uma arte marcial autenticamente coreana ou um requentado de práticas japonesas? A Turquia pertence à Europa ou ao Oriente? Essa e outras questões demoram algum tempo – talvez anos – para serem resolvidas. Os wikipedianos são obrigados a obedecer a uma longa lista de procedimentos democráticos e a regras de decoro. Como a maior parte dos protagonistas é anônima, somente a qualidade dos argumentos deveria prevalecer. No entanto verifica-se que outros fatores exercem um relevante papel. Kransky, redator laureado, afirma que um atributo essencial do wikipediano é a paciência: “no momento do conflito, quando as pessoas persistem no erro, é preciso dedicar algum tempo para a explicação de nossas regras, e em geral tudo se arranja.”
De fato, com frequência são os wikipedianos mais resistentes ou aqueles que dominam melhor o jargão e os procedimentos que vencem a partida, desencorajando os seus adversários. Além disso, apesar da ética igualitária do projeto, os redatores invocam repetidamente suas competências ou títulos exteriores.
Nem sempre, porém, essas referências são verdadeiras. O caso Essj
ay é o mais notório de todos: a atividade incansável desse usuário lhe deu acesso a quase todos os níveis de responsabilidade existentes na Wikipédia. Seu trabalho era tão reconhecido que ele foi escolhido para ser entrevistado, em nome da enciclopédia, para um artigo na prestigiosa revista The New Yorker. A ele foi oferecido igualmente um posto de administrador de comunidade (“community manager” ou moderador) no site Wikia, a organização com fins lucrativos lançada por Jimmy Wales em 2004.
Mas Essjay cometeu um erro fatal: a informação biográfica que ele incluiu no Wikia não tinha nada em comum com o perfil apresentado aos wikipedianos ou aos leitores da The New Yorker. Na entrevista, foi possível perceber que ele não era um professor de estudos religiosos com doutorados em direito e em filosofia, mas somente um homem de 24 anos sem qualquer diploma. Essjay, todavia, invocara frequentemente seu status de especialista para vencer uma discussão.
Numa divergência sobre o uso do termo “imprimatur” na religião católica, por exemplo, ele defendeu a utilização do livro Catholicism for Dummies6 declarando: “Muitas vezes eu exijo que meus estudantes leiam esse livro e eu apostaria tranquilamente meu doutorado na sua credibilidade7”. Uma vez desmascarado, Essjay alegou que havia criado uma identidade falsa para se proteger dos psicopatas que “empesteiam a internet”. No entanto, a explicação não convenceu ninguém e ele foi obrigado a sair do Wikia e da Wikipédia.
Num artigo bombástico anti-Web 2.0, Andrew Keen questionou a exaltação contemporânea do “amador nobre”, que ele julga tão inculto quanto perigoso. Keen se apoia no exemplo de William Connolley para pintar um retrato apocalíptico de um mundo que está banindo a excelência. Quando Connolley, climatologista do British Antartic Survey de Cambridge, tentou corrigir alguns erros na página da Wikipédia que tratava aquecimento global, foi acusado de ter “promovido seu próprio ponto de vista e de ter sistematicamente apagado todo o resto”. Seu opositor anônimo o levou à instância suprema da Wikipédia, o Arbitration Committee (Comissão de Arbitragem), onde Connolley foi punido: ele teria direito somente a uma contribuição por dia.
Sem dúvida, o anonimato abre as portas a todo tipo de manipulações e inserções mentirosas, que podem ser motivadas não só por interesse como por malícia. Em 2007, Virgil Goode criou o Wiki Scanner, um software que identifica as organizações que editam os wikiartigos. Muitos casos de autopromoção foram logo revelados: por exemplo, alguém que editou uma página da Wikipédia a partir de um endereço IP8 − do fabricante americano de máquinas de voto eletrônico Diebold − tinha aparentemente apagado longos parágrafos os quais faziam referência às sérias reservas exprimidas por profissionais de segurança de informação quanto à confiabilidade dos aparelhos comercializados por aquela empresa, bem como à informação de que o dirigente da firma tinha arrecadado fundos para o presidente George Bush9.
A sabotagem também fez suas vítimas. O caso de vandalismo mais famoso envolveu John Seigenthaler, um jornalista, escritor e antigo assistente de Robert Kennedy. Com a intenção de divertir um colega, um engraçadinho criou, em maio de 2005, uma página biográfica onde afirmava que Seigenthaler, “diretamente implicado” no assassinato de John Kennedy, tinha emigrado para a União Soviética em 1971. O embuste foi descoberto somente em setembro. Em outubro, Seigenthaler contatou Wales, que apagou as antigas versões do artigo. Esse exemplo constitui um caso extremo. Mas quantas informações falsas ou ao menos grosseiras sobre pessoas reais ainda não foram corrigidas, seja porque os interessados não tomam conhecimento, seja porque não dispõem dos meios para remediar a situação?
O caso Seigenthaler mostra um viés desagradável do modelo wikipediano. Uma vez revelado o trote revelado, ao invés de se compadecerem da vítima, inúmeros comentadores se indignaram pelo fato de Seigenthaler ameaçar a Wikipédia no lugar de simplesmente restabelecer a verdade. Assumir a responsabilidade de corrigir os equívocos dos usuários constitui uma resposta apropriada quando alguém escolhe participar de um projeto, como é o caso com os softwares livres. Mas essa exigência se torna absurda quando as pessoas são forçadas a tomar parte.
Na Wikipédia, a verificabilidade substitui a verdade. Porém, se a demonstração instantânea da afirmação de um autor sustentada por uma fonte hipertextual é recompensada, as culturas marginais ainda não digitalizadas estão sujeitas a se tornarem invisíveis. E o fato de que uma página da Wikipédia aparece invariavelmente dentre os primeiros resultados de qualquer busca no Google reforça a confusão entre a excelência e a popularidade10.
Sobre a questão da exatidão, a revista Nature comparou 42 artigos científicos retirados da Wikipédia e da Encyclopaedia Britannica. Concluiu que eles eram de qualidade equivalente. A Britannica, claro, contestou a análise11. O fato é que, em termos de rigor científico, não pode haver um denominador comum entre a confiabilidade da Wikipédia e da Britannica. Afinal, a exatidão das contribuições da primeira não se evidencia imediatamente. Por isso, um projeto onde o editor aceita a responsabilidade (incluso juridicamente) por aquilo que publica é objetivamente preferível a um perpétuo canteiro de obras onde falta consistência: se algumas páginas são excelentes, outras são péssimas12.
*Mathieu O’Neil é pesquisador da Australian National University e da Université Stendhal – Grenoble 3, autor de Cyberchiefs: Autonomy and authority in Online Tribes. Londres, Pluto Press, 2009.