Woody Allen e as mulheres
A base do discurso cinematográfico de Woody Allen não é senão a da neurose do protagonista masculino (geralmente interpretado por ele próprio), que na verdade é “um inocente” mais digno de pena do que aqueles e aquelas que o rodeiamAlain Brassart
A leitura das críticas francesas do novo filme de Woody Allen, “Sweet and Lowdown”, informa sobre a miopia (poderia dizer-se pudor) de quem se recusa a abordar o discurso misógino do filme. Contudo, todos os filmes do diretor norte-americano “repetem incansavelmente a tocante inocência do homem, que não consegue abster-se de utilizar as mulheres para seu proveito”. [1] A base do discurso “alleniano” não é senão a da neurose do protagonista masculino (geralmente interpretado pelo próprio diretor), que na verdade é “um inocente mais digno de pena do que aqueles e aquelas que o rodeiam”. [2] Tentemos compreender esta curiosidade francesa.
Se os comentários do último trabalho de Woody Allen não são elogiosos, são, entretanto, reveladores da atitude respeitosa da crítica parisiense para com este diretor nova-iorquino, pouco apreciado em seu próprio país. Na França, os espíritos cinéfilos avalizaram a idéia de que o diretor que alcança o estatuto de autor constrói sempre o mesmo filme — que representa sua própria visão do mundo — e não pode ser julgado senão pelo conjunto de sua obra. A “política de autores”, que proporcionou o surgimento da Nouvelle Vague, elaborou-se em torno de um sentimento de amor e respeito para com o cineasta-autor. Prova disto é a pequena frase que fecha o artigo de Olivier Séguret (Libération, 26 de janeiro): “Enfim, “Sweet and Lowdown” não figurará sem dúvida entre os melhores filmes do mestre, mas, nos tempos atuais, mesmo um Woody Allen fora de forma não se recusa”. Antes, o crítico notava que “o verdadeiro prazer” deste filme estava principalmente relacionado à astúcia do roteiro, mas também da direção, nos apresentando uma verdadeira-falsa biografia de Emmet Ray (interpretado por Sean Penn), talentoso guitarrista, porém pretensioso e egocêntrico, exagerado e… singularmente misógino.
O distanciamento das personagens
A “política de autores”, que proporcionou o surgimento da Nouvelle Vague, elaborou-se em torno do amor e respeito para com o cineasta-autor É claro que o filme convida o espectador a manter um certo distanciamento da personagem, pois as passagens de sua vida nos são contadas por alguns “apaixonados do jazz”, cujos comentários conduzem a narrativa. Entretanto, também nos convida a abstrair-nos de todas as taras do “artista”, valorizando o seu “talento” em relação a elas. “Apesar de todos seus defeitos, Emmet encontrou uma amiga”, ressaltou Bernard Génin em Télérama (26 de janeiro). “Para ela — continua — o gênio de Emmet justifica tudo”. Dessa forma, o discurso de “Sweet and Lowdown” parece manter uma certa distância da misoginia do protagonista, minimizando-a e, finalmente, reduzindo-a a um mero detalhe picante da biografia do “herói”, cuja música encanta as personagens e os espectadores.
Primeira constatação: a “política de autores” privilegia, de fato, a forma como objeto de análise (a direção), em detrimento do roteiro. A crítica que endossa esta teoria deseja principalmente analisar a maneira como o filme fala de cinema. Por isso, para a revista Cahiers du cinéma (fevereiro/2000), a questão por trás do filme de Woody Allen é a seguinte: “Que é que faz de uma personagem, mesmo sendo real, uma personagem de cinema?” Para os cineastas considerados “autores”, o verdadeiro projeto é estético e auto-reflexivo.
Uma “autobiografia disfarçada”
Segunda constatação: nos filmes de autor, o ator principal representa o alter ego do diretor. Em “Acossados”, a roupa de Belmondo, idêntica à do diretor Jean-Luc Godard (que tem um pequeno papel como delator), ressalta esse ponto. Tomando emprestado o título da revista Les Inrockuptibles, “Sweet and Lowdown” é uma “autobiografia disfarçada” e Emmet Ray uma projeção do próprio diretor, mesmo que este o negue. É compreensível, portanto, que a narrativa se preocupe exclusivamente com o destino do protagonista masculino.
Última constatação: os filmes de autor, na tradição da Nouvelle Vague, perpetuam o “grande esquema da literatura romântica” [3] que incentiva, por definição, a exclusão das mulheres do ato de criação. Esta concepção coloca em primeiro plano o Eu criador, que, aplicado ao cinema, nega de certa forma o trabalho coletivo da criação cinematográfica.
Um misógino e suas duas mulheres
Emmet Ray, que acredita em sua própria genialidade, não se atrapalha com as mulheres. Para ele, elas representam pelo menos um ganha-pão (o protagonista masculino é proxeneta nas horas vagas). O fato nem mesmo é motivado por qualquer verdade histórica, já que o músico é inteiramente fictício. Se recolocarmos o filme no contexto da cultura norte-americana, a opção de construir o protagonista masculino como um ser misógino deve ser percebida como um meio de satisfazer um público masculino que já “suportou” a emancipação feminina. Duas mulheres, entretanto, compartilham a vida da personagem masculina. A primeira, Hattie, é uma jovem muda; e uma das ambições da segunda, Blanche, é escrever uma biografia de seu marido-artista. Hattie, que por causa de sua deficiência não tem outra possibilidade senão a de escutar Emmet Ray, corresponde maravilhosamente ao ditado “seja bela e fique de boca fechada”, contrastando assim com a verborragia de seu amante.
Se, de início, sua deficiência parece perturbar a personagem masculina, rapidamente ela vira uma qualidade aos olhos dele, permitindo a reificação da personagem feminina. Aliás, quando, despindo-se rapidamente, Hattie exprime seu desejo, ela deixa seu amante paralisado, privado da imagem da mulher passiva. Hattie depende fisica e financeiramente de seu amante. E quando este a convida a beber, anuncia “à nossa saúde”, mas é o único a ser servido.
As relações entre os sexos
O filme é hábil: a ironia, o distanciamento, estão sempre presentes na representação das relações entre os sexos. Mas, se a resignação e a mudez do personagem feminino revelam a vaidade e o narcisismo de seu parceiro, seu talento o reabilita rapidamente. Ao contrário, Blanche se apresenta como uma mulher forte, instruída, ambiciosa, que tenta decifrar a genialidade do “herói” em seus gestos inofensivos. É uma personagem ambígua, ao mesmo tempo independente e fascinada pela “inteligência” masculina.
Encontramos aí o discurso da maioria dos filmes de Woody Allen: como seduzir as mais belas mulheres do mundo quando se é pequeno, fraco e feioso? A persistência deste esquema tão natural não choca ninguém.
A criação e a vida amorosa
As personagens femininas aparecem, portanto como uma deficiência do poder criativo masculino. Os narradores do filme, em sua maioria homens — inclusive o próprio Woody Allen —, aparecem como verdadeiros “especialistas” do jazz. Para eles, que possuem o saber, o talento prevalece acima das contingências da vida cotidiana. E, respondendo sobre as relações entre a criação e a vida amorosa, Woody Allen diz: “Imagino que seja difícil para a maioria das pessoas, exceto se a gente tiver muita sorte. Alguns homens do mundo da arte têm sorte: encontram uma mulher — às vezes, ainda são jovens —, casam-se, ou vivem juntos, e têm uma bela vida, um casal que se dá muito bem. Mas isso, em geral, é difícil. Se sofremos na nossa vida pessoal, criar pode tornar-se extremamente doloroso”. [4] Façamos por compreender: o artista não pode realizar seu trabalho senão na solidão. A mulher o atrapalha, faz perder sua capacidade criadora.
O esquema narrativo da maioria dos filmes de Woody Allen é comparável ao de “Sweet and Lowdown”. Tomemos o exemplo de “Manhattan”, de 1979. A narrativa confronta o “herói”, pequeno intelectual cheio de humor (Woody Allen), com as mulheres: uma adolescente, uma jovem jornalista e sua ex-esposa. Ao nobre projeto masculino de escrever “um verdadeiro romance”, apresentado no filme como um ato de coragem (o herói masculino é obrigado a largar o emprego e ficar desempregado), se opõe o trabalho feminino de “novelização”, apresentado como vulgar. Uma vez mais, o filme nos mostra que o ato de criação — masculino, evidentemente — não se pode se realizar senão no isolamento. O “herói” tem muito medo de gastar a energia de que necessita para criar numa relação amorosa. Por outro lado, se ele é detestável para com as mulheres, seu humor e sua inteligência que lhe dão um charme “irresistível”, [5] sugerindo este, um defeito secundário. Somente sua ex-mulher (agora lésbica!) o vê com um olhar lúcido.
Um cinema de conivência com o cinéfilo
Diante do último filme de Woody Allen, a miopia ou o mutismo dos comentaristas franceses foi exemplar. Mas o cinema de autor, incentivando a empatia do espectador “culto” para com os sofrimentos do artista, cria um clima de conivência com um cinéfilo que se distinga “da massa”. Sem dúvida para evitar comentários negativos sobre o filme, Grégory Valens, na revista Positif (fevereiro de 2000), fica dando voltas e, como para se justificar de tão singular atitude, adianta que o filme se presta menos a uma análise do que ao prazer puro. Este “prazer puro”, tão comentado por Pierre Bordieu, [6] seria somente reservado a um círculo de iniciados. E não seria, evidentemente, transmissível. [7] Opõe-se, assim, ao “prazer puro” — ascético, refinado —, o “gozo inferior”, grosseiro, vulgar. E o espectador encontra-se, assim, engrandecido: “afirma sua inteligência e sua importância através da empatia inteligente dos grandes autores”.
Uma figura emblemática da “política de autores”
Procuramos compreender por que, na França, certas características deste filme de Woody Allen não são destacadas, nem sequer mencionadas pelos críticos. Além de uma misoginia bem enraizada, aquela de que falamos aqui está mais especificamente vinculada à criação artística. Se na França Woody Allen aparece como uma figura particularmente emblemática da famosa “política de autores”, a razão é simples: o trabalho da criação atravessa o conjunto de sua obra e o distanciamento da sua direção afirma seu Eu autoral.
Decifrando o texto cinematográfico e revelando “a visão do mundo” (e a inteligência) do autor, o crítico parece realizar um trabalho criativo, libertando-se do prazer imediato que qualifica como vulgar. Por outro lado, influenciados pela “política de autores”, os críticos franceses recusam-se a levar em conta o discurso do filme. Isto é esquecer que “as opiniões que [o cineasta] emite, suas aprovações ou recusas perceptíveis, são apenas a parte visí