Zâmbia: privatização, poluição e pobreza
Com suas minas de cobre privatizadas, a Zâmbia não se beneficiou da alta dos preços das matérias-primas nesses últimos anos, apenas as empresas mineradoras e seus acionistas. Mas, agora, quem está pagando os custos da queda dos preços são os mineiros, suas famílias e o meio ambiente
Peter e Irene1 têm 30 anos. Engenheiros diplomados pela Universidade de Lusaka, trabalham, desde 2006, em Chingola, pequena vila do Copperbelt (cinturão do cobre) da Zâmbia. São empregados da Konkola Copper Mine (KCM), principal empresa de extração desse país da África Austral cuja metade do Produto Interno Bruto (PIB) vem da exploração mineral.
Produtora de 70% do cobre nacional, a KCM oferece salários líquidos de 5 milhões de kwachas (cerca de R$ 2.100) por mês e participação no capital da empresa – num país onde a renda média mensal dos 400 mil empregados formais gira em torno de 2 milhões de kwachas (R$ 840). Enquanto 68% dos 11 milhões de habitantes vivem com menos de R$ 4 por mês.
Mas Peter e Irene foram obrigados a fazer alguns sacrifícios. Em 2007, a jovem teve de abandonar marido e filho para fazer um curso na Índia. Isso porque desde 2004, a transnacional indiana Vedanta é a principal acionista da KCM. Desde o final dos anos 1990, 257 de 280 empresas da Zâmbia deixaram o setor público. Cerca de 100 mil trabalhadores foram demitidos ao longo do período, dentre eles os 40 mil da estatal Zambia Consolidated Copper Mine (ZCCM), progressivamente desmontada pelo setor privado. A Vedanta finalmente se apropriou da maior fatia do bolo ao comprar a instalação de Chingola.
Quando voltou à Zâmbia, Irene encontrou, na KCM, no lugar de alguns colegas zambianos demitidos nesse meio tempo, jovens expatriados indianos “com melhores salários para funções equivalentes, instalados em alojamentos especiais e com automóveis à disposição”. Durante a ausência de Irene, Peter enfrentou a alta não só dos preços dos produtos de primeira necessidade e do combustível, como do aluguel. Eles pagam 2 milhões de kwachas (R$ 840) por um apartamento de dois quartos, cheio de baratas e com constantes problemas elétricos.
No final do ano passado, com a queda no preço da tonelada de cobre – que passou de US$ 8.675 para US$ 2.817, o fantasma do fechamento de minas ressurgiu. O Natal foi sombrio para os cerca de 20 mil empregados do setor minerador – um contingente três vezes menor que o da época das estatais, no fim dos anos 1970.
Na filial da Vedanta da Zâmbia, que teve US$ 122 milhões de lucro em 2008 – metade do que faturava antes –, a primeira medida foi reduzir os contratos com empresas terceirizadas, majoritariamente sul-africanas. Assim, milhares de pessoas que recebiam salários baixos, não eram sindicalizadas e cuidavam das tarefas mais perigosas, foram dispensadas. Para garantir o máximo de rendimento, a Vedanta demorou a pagar seus fornecedores – o que levou muitos à falência – e intensificou os horários de trabalho: “Quatro dias com jornadas de 12 horas, seguidos de dois dias de repouso”, como explica um sindicalista do Sindicato dos Mineradores da Zâmbia (Miners Union of Zambia, MUZ). “Somos explorados ao máximo”, confessa Peter, embora seja considerado um funcionário modelo. “Temos de estar disponíveis 24 horas por dia, para qualquer chamada telefônica”, diz.
Professor da Universidade de Copperbelt, em Kitwe, o economista James Lungu questiona: “Quem se beneficiou com a alta dos preços das matérias-primas nesses últimos anos? As empresas mineradoras e seus acionistas. E quem vai pagar os custos da queda? Os mineradores, suas famílias e o meio ambiente. Estamos a ponto de vivenciar uma catástrofe social”.
No dia 6 de novembro de 2006, os habitantes das margens do rio Kafue presenciaram uma cena surpreendente: a água do rio se tornou verde-azulada. A Vedanta tinha despejado seus resíduos tóxicos no rio, acidentalmente. Durante pelo menos dois dias, 2 milhões de habitantes do distrito de Chingola, dos quais pelo menos 100 mil se abastecem de água diretamente do rio, ficaram sem água potável. Centenas de pessoas foram para o hospital depois de comer pescados do Kafue. As análises químicas revelaram que um litro de água continha 38,5 mg de manganês, 10 mg de cobre e 1 mg de cobalto. Ou seja, concentrações 1,7, 10 e 10,7 vezes, respectivamente, mais elevadas que os níveis recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Com pH de 1,5, o Kafue se tornou um rio ácido.
O funcionário da empresa que reconheceu a responsabilidade sobre o acidente foi imediatamente demitido. A multinacional ameaçou o jornal governamental Times of Zambia de não publicar mais anúncios se o fato se tornasse público. A redação resistiu. O escândalo explodiu. Após a decisão do Conselho de Meio Ambiente da Zâmbia, a Vedanta suspendeu temporariamente as atividades mineradoras em Chingola – ficou indignada em perder o equivalente a R$ 6 milhões. Depois os negócios foram retomados, o preço do cobre continuou a subir vertiginosamente, e a poluição a crescer.
Na estação das chuvas, uma visita (não autorizada) à gigantesca Vedanta revelou um espetáculo dantesco. A 3 km das minas, uma barragem transbordou, fazendo com que as águas cheias de cobre e de odor ácido invadissem um afluente do Kafue. “Sim, nós poluímos. Mas todas as minas poluem”, comenta um funcionário.
“Era pior na época da ZCCM. Estamos cansados de ser condenados, não podemos gerenciar uma mina sem poluir”, diz Sampa Chita, diretora do programa de “responsabilidade social” da KCM. A Vedanta é a única que possui um departamento como esse, voltado à “comunidade”. Tem um orçamento que Chita estima, hesitante, em “US$ 12 ou 13 milhões”. Suas atividades: luta contra a malária, prevenção da Aids, financiamento de orfanatos, bolsas de estudo universitárias e apoio ao clube de cricket.
Chita diz ignorar os lucros da empresa. Pressionada, reconhece apenas que seu escritório tem um orçamento muito baixo em relação às necessidades. “A ZCCM tinha uma política social. Sem dúvida muito social”, reitera. “Nós somos mais voltados aos resultados. Mas é um erro querer gerar capital?” Três meses após abocanhar 51% das ações da KCM, a Vedanta já tinha valorizado a empresa em R$ 57 milhões.
Privatização às escuras
James Lungu é autor de um estudo sobre as condições de privatização das minas de cobre.2 Orquestradas por instituições financeiras internacionais, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), as privatizações foram implementadas pelo governo do presidente Frederick Chiluba.3 “A privatização
da ZCCM foi feita às escuras, sem debate parlamentar, com contratos leoninos a que poucos tiveram acesso”, resume Lungu. “Ela jamais trouxe benefícios aos habitantes do Copperbelt. Nem ao meio ambiente.”
Essa constatação é corroborada por Edith Nawakwi, ex-ministra de Finanças da Zâmbia, encarregada de supervisionar as privatizações. “O Banco Mundial e o FMI disseram que o preço do cobre nunca subiria. Todos os estudos indicavam que não tiraríamos nada daqui nos 20 anos subsequentes. Por outro lado, se privatizássemos as empresas, a dívida externa seria aliviada. Não tínhamos alternativa a não ser aceitar.”4
Nesses últimos anos, a atenção da mídia internacional recaiu sobre a responsabilidade social das companhias chinesas implantadas no Copperbelt. Mais de 40 anos depois de construir o Tanzam, estrada de ferro que liga a Zâmbia ao porto de Dar es-Salam, na Tanzânia, o governo de Pequim voltou a investir no país. Atualmente, a China é o terceiro parceiro comercial da África Subsaariana. Em abril de 2005, uma usina chinesa de dinamite, contratada em Chambishi pela NFC África explodiu acidentalmente. Resultado: 52 mortos e um crescente sentimento antichinês. Em fevereiro de 2007, o presidente Hu Jintao, em visita oficial, foi obrigado a cancelar sua visita ao norte minerador do país.
Com baixos salários e negação de direitos sindicais, as condições de trabalho dos zambianos empregados pelos chineses são piores que as oferecidas por outras transnacionais originárias do Canadá, Suíça ou África do Sul. Mas em termos gerais, segundo a Fundação Bench Marks, na Zâmbia as “filiais de empresas extrativistas operam com exigências muito menores em termos de saúde, normas de segurança e respeito ao meio ambiente que aquelas aplicadas em suas sedes localizadas em países desenvolvidos”.5
Em janeiro de 2008, a poluição mineradora atingiu os lençóis freáticos de Mufulira, a cerca de 40 km de Chingola. Resultado: outro despejo de rejeitos ácidos. Mais de 800 pessoas da vizinha township (aglomerado urbano precário) de Mopani Copper Mine (MCM) – co-propriedade do grupo suíço Glencore e do canadense First Quantum – queixaram-se de diarréias, dores abdominais e vômitos.
A repetição desse tipo de acidente aumenta a “dívida ecológica” denunciada por duas jovens pesquisadoras zambianas, a economista Nachilala Nkombo e a jurista Brenda Mofya. Para elas, as questões ambientais foram sacrificadas no altar das privatizações: “Essa dívida é muito maior do que os mais de R$ 15 bilhões que a Zâmbia devia às instituições financeiras internacionais quando foi forçada a privatizar as mineradoras”.6
É mais fácil entender o sentido dessa dívida ecológica visitando as townships da zona mineradora de Mufulira, em particular Kankoyo, com 30 mil habitantes. Esgotos a céu aberto, shacks (casinhas) castigadas, com os tetos enferrujados pela chuva ácida, postos médicos abandonados, armazéns com janelas quebradas. Kankoyo está sob a fumaça dos fornos de alta temperatura da MCM. A cada ano, cerca de 700 mil toneladas de dióxido de enxofre são lançadas ao céu. O cólera aparece regularmente. E a insegurança aumenta na mesma velocidade do desemprego.
Um ar pesado e viciado envolve a antiga enfermaria, onde o honorável Percy Chanda, deputado do distrito de Mufulira e membro da Frente Patriótica – partido de oposição –, instalou seu escritório. “Não sou contra empresas estrangeiras, precisamos delas. Mas a maneira como atuam no Copperbelt é particularmente lamentável.” Antigo minerador, Chanda conheceu os “tempos dourados” da ZCCM, quando esse verdadeiro Estado dentro do Estado cuidava dos mineradores e de suas famílias do nascimento até à morte. Manutenção da township, educação, saneamento, cursos noturnos, clubes de futebol, cricket e natação, tudo era gerenciado pela empresa que chegava até a trocar as lâmpadas queimadas das casas, ironizam os mais velhos.
Queda no preço do cobre
Na época em que a Zâmbia optou por seguir os conselhos das instituições financeiras internacionais, a tonelada do cobre girava em torno de US$ 2.500. Quando os preços do cobre começaram a subir, Chanda, deputado desde 2006, tentou negociar um aumento de salário para os mineradores. “Eles responderam que não podíamos nos beneficiar da alta dos preços, pois o cobre deles tinha sido vendido adiantado, com os preços praticados um ano antes. E agora dizem que são obrigados a demitir em razão da queda do cobre. No entanto, eles ainda vendem o produto com os preços praticados em setembro. Os mais altos. Mas é perigoso viver num território hostil, em meio aos inimigos. Um dia, vão se arrepender.”
A tempestade também chegou a Luanshya. A Luanshya Copper Mines (LCM), joint venture suíço-israelense registrada na Holanda, acaba de demitir seus 300 funcionários. “As atividades não serão retomadas até que os preços do cobre voltem a subir”, diz o diretor-geral da LCM, Derek Webbstock. Na vila mineradora, o ambiente está pesado. Cerca de 60 policiais foram enviados para vigiar o acesso ao lugar.
Até agora, as relações entre a LCM e a população eram corretas. Ao contrário de outras zonas de mineração, a estrada que leva a Luanshya está em bom estado. A cidade foi eleita a mais limpa do Copperbelt em 2008, num concurso que existe desde a época da ZCCM. Dois terços das arrecadações fiscais do município – ou seja, 1,2 bilhão de kwachas (R$ 500 mil) – provinham de impostos locais pagos pela LCM. “Recentemente, eles ainda disseram que tinham dinheiro suficiente para não fechar”, lembra Mutakela Kayonde, responsável pela planificação municipal em Luanshya. Moradores de Copperbelt, jornalistas e Kayonde se perguntam: com a queda dos preços do cobre, as empresas não estariam aproveitando a situação para chantagear a Zâmbia?
Na primavera de 2008, o governo finalmente decidiu revisar os contratos com as mineradoras. O imposto sobre as empresas passou de 25% a 30%.7 A taxa sobre o lucro subiu de irrisórios 0,6% para 3%. O Banco Mundial foi o primeiro a apoiar a medida, forçado a reconhecer a modéstia das somas até então revertidas ao tesouro zambiano.
A exploração das minas não deixava nada no país, enquanto gerava enormes dividendos às multinacionais do ramo. Com filiais offshore, as transnacionais preservavam seus lucros de impostos. Em 2006, o cobre gerou o equivalente a R$ 300 milhões para a Zâmbia, enquanto a exportação do produto movimentou quase R$ 7 bilhões.
Em 2008, estima-se que a exploração do cobre teria rendido às mineradoras outros R$ 7 bilhões. Porém, dos R$ 975 milhões que deveriam ter entrado nos caixas zambianos, apenas R$ 600 milhões foram realmente recebidos. Apesar do peso fiscal ser um das menores da África Austral, as empresas extrativistas não deixam de contestá-lo, ameaçando levar a questão a tribunais comerciais de seus países de origem. Com o argumento da queda dos preços do cobre, o risco de demissões pode oferecer um novo pretexto para pressionar o governo zambiano.
Eleito no fim de outubro de 2008, após a morte de seu predecessor8, o presidente Rupiah Banda anunciou que seu governo estava discutindo uma flexibilização fiscal com as empresas mineradoras. “Não devemos matar a galinha dos ovos de ouro. De que serve embolsar alguns milhões de dólares de taxas suplementares se perdemos milhares de postos de trabalho?”9
Para Fred M’Membe, diretor do The Post, principal jornal de oposição zambiano, e um dos homens mais ricos e influentes do país, “o governo abriu as portas às empresas estrangeiras sem jamais cogitar a possibilidade de fechá-las”. Crítico à política econômica ditada com base em acordos firmados no passado com empresas privadas, M’Membe avalia que “as privatizações criaram uma certa forma de esperança. Agora, o filme hollywoodiano terminou. Com a crise internacional, redescobriremos o mundo real”. Ele defende o retorno do capital dessas minas ao Estado, seja em forma de cooperativas ou de nacionalização.
As jazidas de zinco e chumbo de Kabwe eram as mais ricas da África. Acabaram sendo abandonadas, quase esgotadas, em meados dos anos 1990, depois de serem exploradas durante quase um século pela gigante sul-africana Anglo American. Desde então, apesar da campanha de limpeza do local financiada pelo Banco Mundial, a cidade de 300 mil habitantes está entre as dez cidades industriais mais poluídas do mundo, de acordo com estudo do instituto americano Blacksmith Institute.10 A taxa de chumbo no sangue das crianças seria de 5 a 10 vezes superior ao limite fixado pela Agência de Proteção ao Meio Ambiente dos Estados Unidos (EPA).
Com a corrida pela economia das minas, a Zâmbia abandonou a agricultura: a fome atinge atualmente cerca de 35% da população – e 80% da população campesina continua a viver abaixo da linha de pobreza. Na casa de Peter Kapumba, antigo funcionário da ZCCM, a família de seis pessoas vive com 1,2 milhão de kwachas por mês (R$ 500). “A vida é dura”, confessa Kapumba. “Mas prefiro estar aqui a estar na cidade. Acredito que a agricultura é o futuro deste país, com a condição do governo decidir diversificar a economia. Um dia não haverá mais cobre. Restará apenas a poluição.”
Entre o final de 2008 e o início de 2009, cerca de 5 mil mineradores zambianos foram demitidos.
*Jean-Christophe Servant é jornalista.