Zona de sonho coletivo
Nossos futuros a nós pertencem. Ainda assim é preciso imaginá-los e torná-los contagiosos. Um coletivo de autores de ficção científica, ou mais ainda de “fricção científica”, escolheu criar ferramentas de libertação do imaginário e propagá-las
Em Pourquoi notre futur dépend des bibliothèques, de la lecture et de l’imagination [Por que nosso futuro depende das bibliotecas, da leitura e da imaginação] (Au Diable Vauvert, 2014), o autor de fantasia, entre outros gêneros, Neil Gaiman solicita: “Observem ao seu redor. Estou falando sério; parem um instante e observem ao seu redor o lugar em que vocês se encontram. Vou assinalar um detalhe muito evidente que tendemos a esquecer. É o seguinte: tudo o que vocês podem ver, inclusive as paredes, foi imaginado em determinado momento”. E foi assim que o grupo Zanzibar nasceu: “Apesar dos instrumentos de prospectiva e das agências de futurologia de grandes empresas, apesar da onipresença do discurso que quer que amanhã seja semelhante a hoje, a ontem, ou que não seja de modo algum, continuamos convencidos de que nossos futuros – comuns e individuais – nos pertencem e de que temos o poder de imaginá-los, de nos divertirmos, de experimentá-los e construí-los de acordo com nossa vontade. Somos um coletivo de autores de ficção científica. Imaginamos nossos textos como lugares para nos encontrarmos, onde pensarmos e começarmos a desencarcerar o futuro” (Zanzibar, Manifesto).
Constatamos que nosso futuro comum tinha uma cara daquelas coalisões em que diversos veículos são atingidos por uma mesma batida e não nos resignamos. Zanzibar não é um clube de escritores nem um movimento literário. Zanzibar espera ser como uma planta rizomática e estender sua rede subterrânea para religar os imaginários. Zanzibar agrupa Stéphane Beauverger, Alain Damasio, Catherine Dufour, Mathias Echenay, Léo Henry, Laurent Kloetzer, Sylvie Laisné, luvan, Norbert Merjagnan, Sabrina e Stuart Pluen Calvo.
Definições de Zanzibar
Laurent: Zanzibar é um meio de eu deslocar o centro de meu próprio trabalho, criar ferramentas que possam ser compartilhadas com os outros: jovens, adultos, crianças. É uma atitude diante da ficção científica. A ficção científica não é apenas um espaço onde brincar com universos pessoais: ela deve se conectar com o coletivo. O que venho buscar nele? A ressonância e a capilaridade.
Léo: Zanzibar é um lobby e, certamente, uma cobertura. Acredito que eu tenha dito tudo. O que venho buscar nele? As chaves. A inteligência. Uma tensão, não algo realizado. Zanzibar é desencarcerar o futuro; portanto, fabricar instrumentos de desencarceramento que venham a servir para todas e todos.
Sabrina: Zanzibar é para todas, todos e, se possível, para as jovens; para essas jovens que se combatem na vida política. Zanzibar é uma loucura. É afabilidade. Nele encontro dobraduras [ver mais adiante], um pouco de compreensão, uma maneira de me tranquilizar, sobretudo, uma prática poética.
Catherine: Eu diria política.
Sabrina: A poética é a prática da afabilidade e do vínculo, portanto é política. O direito à existência poética é muito importante. Uma prática poética coletiva é muito importante. O que venho buscar nele? Um lugar de inspiração. Zanzibar é o anti-Stirner,1 o antissolipsismo, anarquismos solidários.
Catherine: Zanzibar colore meus escritos e minhas intervenções. Em todos os lugares e durante o tempo todo.

As premissas do Zanzibar
Catherine: Para mim, foi pelo horror a uma profunda noite, em 2006, no festival dos Utopiales de Nantes, quando Alain me perguntou: “E se fizéssemos uma coletânea de novelas utópicas, todos e todas juntos?”. A coletânea está sempre em obra, e essa obra é Zanzibar.
Léo: De modo geral, o que se tornou Zanzibar foi aperfeiçoado à margem dos Utopiales, no inverno de 2014. Houve um almoço durante o qual as grandes ideias foram lançadas: tentar pensar outros futuros, construir instrumentos com esse sentido e compartilhá-los, agir coletivamente.
Norbert: Eu me lembro de um sonho confuso, no balcão de um bar perto do festival, onde Léo arengava, Alain fulminava nas brasas de sua locomotiva e eu bebia, melhor modo de me calar. Catherine devia estar fazendo a única coisa pertinente dessa noite pré-Zanzibar, e não consigo me lembrar: colocar a questão do nome do coletivo?
luvan: Eu cheguei no coletivo no momento em que se escolhia um nome para ele. Eu quase saí na mesma hora, de tão complicado que aquilo era. Escrever é escolher. Palavras. Quando se escreve para muitos, sempre se escolhem suas próprias palavras. Escolher uma palavra coletiva é evidentemente terrível. É o contrário do trabalho do escritor. Uma vez vencida essa etapa, fui convencido de que éramos capazes de vencer tudo juntos, e fiquei.
Alain: O verdadeiro início, para mim, foi o encontro regado a vinho na casa de Catherine. As discussões sobre a importância de agir politicamente pela linguagem. Fomentar diversos tipos de eventos situacionistas poéticos. Em seguida, em 2017, a oportunidade da Bienal de Saint-Étienne sobre o futuro do trabalho, um assunto ultrassocial e político. As reflexões nascentes, as notícias sonorizadas por Floriane Pochon,2 o leque de nossos estilos, de nossas linguagens, a zanzibarritude explodiu como uma granada!
Para o Zanzibar, o que é criar?
Catherine: A fricção de dois ambientes diferentes que têm uma relação de força (uma aldeia de Hobbits e um senhor do mal, um carpinteiro e Deus etc.) gera naturalmente uma história. O que faço é a fricção científica.
Léo: Utilizo a estrutura para encontrar uma imagem. A imagem preexiste, é preciso eu me elucidar para chegar a ela e descrevê-la.
Sabrina: Eu começo sobretudo das palavras mal compreendidas, mal entendidas, mal escritas, potenciais que desembocam em paisagens desconhecidas. Uma vez desembaraçadas do sentido, as palavras se desenvolvem em cartografia do invisível.
Norbert: O salto. Tudo está no salto. Como uma onda elevada cuja amplitude diminui de maneira extremamente rápida e de suas profundezas é dado um impulso que a leva a bater um tanto mais longe.
Mas Zanzibar não é criar, e sim cocriar ferramentas de cocriação: os protótipos de descontração (protocool). Elaborados nos fins de semana Zanzibar
Léo: Eu gosto muito, agora, da confiança estabelecida internamente no coletivo e do aspecto “formação contínua” de nossos fins de semana de escrita: o Zanzibar voltado menos para fora, mas que tenta abrir nossas formas de trabalhar e de enriquecer o que fazemos. Ganhamos eficácia também, sabemos melhor o que cada um quer e temos menos necessidade de longas tiradas teóricas, é o que penso. Eu gosto de imaginar o possível, a impressão de estar bem no início de alguma coisa.
Alguns exemplos dos protótipos de descontração (protocools)
Protocool 1 (Tentativa de esgotamento de um lugar no espaço tempo): Entre em um bar, peça uma rodada, imagine esse bar daqui a dez anos e sua volta a ele, todos juntos. Compartilhe sua visão com os outros, depois imagine esse bar daqui a cinquenta, cem, 150 anos – sob as águas ou sob a areia, necessariamente. Não se esqueça de pagar a conta ao sair.
Protocool 2 (Dobraduras mistas): Faça um jogo em que você escreve uma palavra num papel e o dobra antes de passá-lo para o próximo jogador, que faz o mesmo, e assim por diante, para formar uma frase coletiva, leia uma a uma em voz alta, em seguida as pronuncie juntas. Registre o conjunto, misture, e pronto.
Protocool 3 (Horóscopo universal): Qual é o signo do Universo? Você tem vinte minutos. Título: “Uma forma latente de inquietação”.
Sabrina: Essas exigências são muito interessantes, permitem encontrarmos novos caminhos de liberdade e de aumentar os oásis.
Norbert: Nós perseguimos os lugares-comuns; fazemos isso para as primas [primeira posição na esgrima]. Esporte radical entre nós. E também um estratagema que se impôs muito rapidamente: não concordamos em quase nada – guerra à Tina.3
Os trabalhos Zanzibar são colocados à disposição de todo o mundo em seu site4
Léo: Quando chega o momento de difundir nossos métodos de cocriação, nós os colocamos on-line, os utilizamos em oficinas de escrita e também fazemos encontros durante os quais colocamos em prática essa busca que tentamos fazer: não falar enquanto especialistas, mas como escritores, inverter os papéis, deixar o público intervir, quebrar as relações de autoridade. Temos alguns ensaios mais ou menos conclusivos no catálogo, principalmente as ficções anônimas de 1000joursenmars…
1000joursenmars.zanzibar.zone era uma plataforma de acesso aberto, criada em março de 2016, o mês em que teve início o Nuit Debout [um movimento social francês]. O que você será no 421 de março? E no 632 de março?
Léo: Para mim, o “verdadeiro” momento fundador do Zanzibar foi a bricolagem dos 1000joursenmars. Isso ocorreu em poucas horas, entre os amigos de Estrasburgo do Hackstub,5 a lista de e-mails do Zanzibar e a Place de la République. Foi um belo momento de efervescência, uma daquelas ocasiões em que tudo se encadeia, a ideia propriamente dita, sua realização, o compartilhamento, as repercussões.
Alain: A primeira sensação Zanzibar foi esse mural básico do qual as pessoas se apropriaram e no qual cada um e cada uma podia escrever sobre seu dia sonhado: 404 mars > revolution not found. Eu achei isso muito trivial, muito fácil, ao mesmo tempo anônimo e público, autoconstruído. Foi muito Jour debout.
Extrato:
555 de março: Eu acredito. Ou 556? Eu tento levar em conta, guardar viva a nossa agenda de março, eu traço barras na parede, como os prisioneiros nas histórias. Em nossos cartazes, em nossa cabeça e até nos murais luminosos agora vendidos pela Decaux, ainda é, esta manhã, o dia 1º de abril que começa. 1º de abril cada novo dia, como uma gag ruim recorrente. Eu também fiz gags, em primeiro lugar, com base em Bill Murray, umas marmotas, de Un Jour sans Fin [no Brasil, foi lançado com o título Feitiço do tempo]. Eu também acabei me cansando disso. “Muitos 1os de abril serão necessários”: há meses que a primeira página do Le Figaro não muda. Começo a sentir frio.
E, como não se trata de continuar entre nós, foram propagadas conferências em oficinas de escrita, intervenções em cursos ou em ocupações de imóveis, de Tarnac às centrais sindicais…6
Mas, enfim, por que “Zanzibar”?
Porque foram listados todos os nomes que nos vinham à cabeça e riscados os que não agradavam. Só sobrou um. Quanto ao logotipo, uns 106 foram barrados com tinta marrom porque os logotipos são as tatuagens na pele do cadáver da humanidade. Nenhum logotipo! Bem-vindo ao zanzibar.zone…
*Zanzibar é um coletivo de escritores.
1 Max Stirner (1806-1856), autor de L’Unique et sa propriété [O único e sua propriedade] (1844), frequentemente considerado o pai do anarquismo individualista.
2 Para ouvir, acesse <www.zanzibar.zone/2017/03/25/extravaillance-working-dead/>.
3 “There is no alternative” [Não há outra solução], sentença pronunciada pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1979-1990) para dizer que qualquer tentativa de saída do modelo capitalista ocidental estava condenada ao fracasso.
4 <http://zanzimooc.zanzibar.zone>, onde logo será aberto um novo mooc [Massive Online Open Cours, curso de acesso aberto e massivo on-line] de criação destinado aos jovens. O labo [laboratório] Zanzibar e o mooc Zanzibar deram origem a um livro impresso, Comme des bêtes [Como bestas], Zanzimooc 1, e a um livro sonoro, 2020 AD.
5 Hackerspace de Strasbourg, <www.shadok.strasbourg.eu/agenda/hackstub/>.
6 Em 2016, os Labloids do European Lab; em 2017, as conferências “Tous à Zanzibar” [Todos para Zanzibar], no Salão do Livro de Paris, e “Désincarcérer le futur” [Desencarcerar o futuro], na SciencesPo para o ciclo “Futurs pluriels” [Futuros plurais]; a semana “Décloisonner l’avenir” [Eliminar as barreiras do futuro], em Tarnac; em 2018, a intervenção coral “Tout le monde déteste le travail” [Todo o mundo detesta o trabalho], pela Union Syndicale Solidaires à la Bourse du Travail [União Sindical Solidários à Central dos Sindicatos], as oficinas Bright Mirror de Bluenove; em 2019, a performance e conferência “La périphérie vue par la science-fiction” [A periferia vista pela ficção científica], no Théâtre du Rond-Point (Paris) etc.