20 anos da IIRSA na América do Sul: quem está comemorando agora?
No dia 31 de agosto, faz 20 anos da criação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). À primeira vista, parece uma história do passado. Uma iniciativa que, após sua criação e os “anos dourados” que se seguiram, parece ter “envelhecido mal” no atual cenário de crise política da região. No entanto, o enfraquecimento da coordenação regional por trás dos projetos da carteira da IIRSA não é sinônimo de perda de força no avanço da agenda de infraestrutura na América do Sul. Um exemplo disso é que atualmente vários governos têm apontado as grandes infraestruturas como uma das possibilidades de “reativação econômica” após as consequências da pandemia. Por ocasião do aniversário, faz sentido aproveitar a data para relembrar a história desses 20 anos do surgimento da IIRSA, analisando o que mudou e o que permanece
Origem e história da IIRSA
A ideia da IIRSA nasceu em abril de 1998, durante a cúpula da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Santiago do Chile, como uma necessidade de criar um plano de reorganização territorial que fosse funcional à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A ALCA era o plano dos Estados Unidos para transformar todo o Hemisfério Ocidental em uma imensa zona de livre comércio, inspirada no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Na ocasião, os chefes de Estado decidiram confiar ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) a formulação de um projeto, que finalmente foi apresentado por ocasião de uma nova cúpula de presidentes, desta vez apenas da América do Sul, convidados a Brasília pelo ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, em 31 de agosto de 2000. Nos planos dos países participantes, e dos gestores do BID e da Corporação Andina de Fomento, a integração da infraestrutura serviria como facilitadora, a base material do impulso comercial transnacional, permitindo baratear o custo de transporte das matérias-primas a serem exportadas da região para os mercados do Norte.
Nos cinco anos seguintes, o panorama político sul-americano foi atingido por fortes terremotos. Na Bolívia, um grande ciclo de mobilizações indígenas e populares terminou com a derrubada de governos neoliberais e a eleição de Evo Morales à presidência. Na Argentina, a crise da dívida e a revolta “piquetera” de 2001 encerraram uma década de saques e privatizações. No Equador, também houve mobilizações populares que depuseram o presidente Lucio Gutiérrez, enquanto na Venezuela as massas em Caracas reverteram um golpe contra Hugo Chávez. Naqueles anos, em muitos países da América do Sul, forças políticas de esquerda e centro-esquerda chegaram ao governo, como com as eleições do presidente Lula da Silva no Brasil em 2002 e Nestor Kirchner na Argentina em 2003. Esses eventos acabaram enfraquecendo a iniciativa norte-americana dirigida à América do Sul e possibilitou o cancelamento da ALCA na Cúpula das Américas em Mar del Plata, em novembro de 2005.
No entanto, os desenhos dos projetos IIRSA não foram alterados, nem tiveram seu escopo reduzido. Pelo contrário, a década de 2005 a 2015 foi o período de maior desenvolvimento da iniciativa, quando houve um aumento de quase 100% no número dos projetos, passando de 335 para 562 (dos quais, até hoje, 160 foram concluídos), e quando, em 2009, foi incluído no Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) da UNASUL, o novo bloco regional que veio a ser constituído sob a liderança do Brasil de Lula da Silva. Porém, para além da retórica neodesenvolvimentista e da integração soberana a ela associada, pouco ou nada mudou nos propósitos dos corredores da IIRSA, que continuaram reproduzindo lógicas de exportação de commodities minerais, energéticas e agroalimentares, levando a uma dependência cada vez mais problemática das economias regionais, não apenas em relação aos países do Norte, mas sobretudo em relação à China.
Nesse período, o papel do Brasil foi fundamental, permitindo a execução de muitos projetos vinculados ao plano. Essa liderança se deu graças a uma política de forte impulso financeiro por meio de seu banco de fomento, o BNDES, a uma nova carteira de obras nacionais (o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, criado em 2007) e a uma política de internacionalização de grandes empreiteiras brasileiras (Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutiérrez, etc.). Ao mesmo tempo em que centralizava a viabilização financeira dos projetos, o Brasil bloqueou diversas propostas de formação de uma Nova Arquitetura Financeira Regional – liderada pelos países da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) -, que visavam reduzir a dependência da região em relação ao dólar e constituir o Banco do Sul, para o financiamento dos projetos por meio de um banco regional. O banco foi criado, mas não teve suas funções consolidadas.
As obras da IIRSA se articulam em torno de 10 eixos de integração ou desenvolvimento, que atravessam toda a América do Sul de norte a sul e do Atlântico ao Pacífico. Fazendo um balanço geral de seus impactos territoriais, um estudo do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense revelou que a IIRSA afeta diretamente o modo de vida de 664 comunidades indígenas, 247 comunidades camponesas, 146 comunidades quilombolas e 139 comunidades tradicionais, além de um amplo espectro de ecossistemas de grande biodiversidade. São muitos os casos de conflitos abertos contra as obras da IIRSA, como a mobilização indígena em defesa do parque natural TIPNIS na Bolívia, a greve dos operários da construção da barragem de Jirau, na Amazônia brasileira, ou o repúdio gerado no Equador em torno do superfaturamento de obras executadas pela Odebrecht.
Rearranjos geopolíticos e incertezas regionais
Desde 2015, a IIRSA vive uma situação de crescente incerteza. A queda dramática dos preços das commodities reduziu a capacidade dos bancos regionais ou nacionais de financiar a construção de infraestruturas, levando a uma maior abertura na governança da iniciativa aos atores extrarregionais e especialmente ao Banco de Desenvolvimento chinês. Por outro lado, a guinada nos governos de muitos países da região para a direita desfez o arcabouço institucional da UNASUL, enfraquecendo a coordenação regional e destruindo qualquer intenção de integração – por mais limitada que fosse. Embora todos os governos recentes tenham demonstrado dar importância à infraestrutura como possibilidade de atração de investimentos, suas políticas nos últimos anos se limitaram à privatização de ativos existentes. Por fim, a Operação Lava Jato no Brasil também afetou sobremaneira as empresas que, em grande medida, implementavam a construção da chamada “integração regional”.
Atualmente, há muitas incertezas sobre a permanência e o sentido da IIRSA. Seu site oficial não é atualizado desde 2017 e o COSIPLAN deixou de funcionar como conselho em 2019. No entanto, e para além das disputas políticas regionais, nos parece claro que o “estado de saúde” dos projetos da iniciativa vai depender da existência de capitais que possam financiá-los. Compreendendo isso, o fim do COSIPLAN não equivale à morte das obras da IIRSA. Prova disso é a validade que continuam tendo nas agendas nacionais importantes projetos da carteira da iniciativa, como o Túnel Transandino de Água Negra, entre a província argentina de San Juan e Coquimbo, no Chile, ou a rodovia BR-163 entre Sinop-MT e Itaituba-PA, no Brasil.
Estamos em um momento de crise e de rearranjo de forças geopolíticas. Apesar da renovação da aliança de vários países da região com os Estados Unidos, é provável que seja a China quem tenha capacidade e interesse para investir na infraestrutura logística da região. De fato, empresas deste país já conquistaram concessões rodoviárias, portuárias e ferroviárias em trechos estratégicos da IIRSA, como a rodovia Riberalta-Rurrenabaque, na Bolívia, e manifestaram interesse em acessar os leilões anunciados de outros empreendimentos, como a Ferrovia da Integração Oeste-Leste (Fiol) no Brasil. O Investimento Estrangeiro Direto do gigante asiático para o subcontinente está em constante aumento, enquanto países como Uruguai, Equador, Venezuela, Chile, Bolívia e Peru já aderiram ao novo programa logístico Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI), popularmente conhecido como Nova Rota da Seda. O próprio governo brasileiro, eleito usando um discurso sinofóbico e que se recusou a aderir ao programa, parece estar aberto a uma abordagem pragmática: na última Cúpula do BRICS em Brasília, em novembro de 2019, o presidente brasileiro e seu homólogo chinês (Xi Jinping) anunciaram a intenção de “alinhar” o BRI ao Programa de Parcerias de Investimento – PPI do Brasil. Diante disso, um cenário possível é que a própria IIRSA seja subsumida aos tentáculos desse gigantesco plano chinês.

Hoje, diante da pandemia de Covid-19, as discussões sobre a reativação econômica na América Latina incluem grandes projetos de construção de infraestrutura. Exemplo disso é o plano de “recuperação econômica” anunciado pelo governo de Sebastián Piñera no Chile, que conseguiu um investimento público extra de 2,89 bilhões de dólares em projetos de infraestrutura. Na mesma linha, o Pro-Brasil, iniciativa da ala militar do governo brasileiro tem por objetivo injetar novos recursos públicos na infraestrutura e que, apesar dos dogmatismos de austeridade fiscal do ministro Paulo Guedes, acaba de garantir 6,5 bilhões de reais no orçamento público para obras.
Como em outros tempos de crise econômica profunda, a infraestrutura é vista como salvação, fluxo de dinheiro em movimento, retornos financeiros lentos, mas seguros – desde que o Estado assuma os riscos dos investidores, ou seja, os riscos são públicos, os benefícios são para poucos. A justificativa de “reanimar” a economia e criar empregos buscará ser um consenso absoluto, que gere apoio transversal nas forças políticas do establishment. Porém, passados 20 anos da criação da IIRSA, vale a pena perguntar a que interesses respondem esses megaprojetos e o que significa exatamente o “progresso” que afirmam acarretar. Nessas duas décadas de forte impulso por infraestrutura, proporcionalmente, pouco foi realmente destinado à melhoria dos serviços básicos e universais (transporte urbano, estradas vicinais entre comunidades rurais, escolas, postos de saúde pública, infraestruturas menores e descentralizadas) e nada foi feito para aumentar a complementaridade produtiva da região, reduzindo a dependência da exportação de commodities. Embora muito dinheiro público tenha sido investido para conectar enclaves, portos e zonas francas, e para criar rotas ao longo das quais a fronteira da mineração e do agronegócio vai se expandindo, deixando em seu rastro espoliação, florestas derrubadas e terra arrasada.
Alessandro Peregalli, doutorando em Estudios Latinoamericanos na Universidad Nacional Autónoma do México.
Alexander Panez, Doutor em Geografia pela Universidad Federal Fluminense e pesquisador na Universidad del Bío-Bío, Chile
Diana Aguiar, Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.