Bienal dos estrangeiros, imigrantes, refugiados, indígenas, diaspóricos, queers e outsiders
Intitulada Foreigners everywhere (Estrangeiros em todos os lugares), a mostra será composta por duas partes. Esta é a primeira vez que o evento é curado por um sulamericano. Adriano Pedrosa trouxe obras que problematizam o fenômeno contemporâneo da imigração compulsória, entre outros temas atuais
Na última quarta-feira, em uma coletiva de imprensa ocorrida na sede administrativa da Fundação Bienal de Veneza, o palácio Ca Giustinian, localizado no Canal Grande, a poucos passos da Praça São Marcos, o presidente da instituição Roberto Cicutto e o curador Adriano Pedrosa anunciaram o projeto desenvolvido para a Bienal de Arte de 2024. Esta será a 60ª edição do mais antigo evento internacional de arte do mundo.
O título da mostra, Foreigners everywhere (Estrangeiros em todos os lugares), tem inspiração em um conjunto de esculturas em neon concebido pelo duo Claire Fontaine. Formado pela italiana Fulvia Carnevale e o inglês James Thornhill, em Paris no início dos anos 2000, o coletivo trabalha com obras conceituais que unem texto e imagem a um discurso político feminista.
O nome do coletivo já define a essência do trabalho da dupla. Sobrepondo a obra icônica de Marcel Duchamp, Fontaine, a uma famosa e popular marca francesa de cadernos, Claire Fontaine explora a essência do Dadaísmo. Um objeto produzido em massa, disponível comercialmente e utilitário passa a designar uma identidade de gênero e a expressar um discurso político.
A obra que inspirou Pedrosa, por exemplo, utiliza o nome de um coletivo italiano de base anarquista, Stranieri Ovunque (Estrangeiros em todos os lugares), transformando-o em uma obra de arte que é, ao mesmo tempo, discursiva e única, mas também universal.
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O grupo anarquista do qual Claire Fontaine emprestou a expressão que nomeia a 60ª Bienal de Arte de Veneza já não existe mais e poucos são os registros de sua atuação. O coletivo se tornou conhecido pelo combate ao racismo, na primeira década do século XXI, na cidade de Turim (Itália).
Na obra Foreigners everywhere, Claire Fontaine replica a expressão em diversas línguas, sobretudo as de nações do Sul Global e de etnias indígenas. Com isso, propõe que o interlocutor alargue o próprio horizonte e problematize a quem recai, de fato, a identidade de estrangeiro.
Em sua apresentação, Adriano Pedrosa lembrou que a palavra estrangeiro (em italiano, em português, em espanhol e em francês) é etimologicamente ligada ao termo “estranho”. O mesmo vale para a palavra queer (do inglês), cuja origem também remete à ideia de “estranho”.
Se uma mostra desenvolvida a partir do olhar de uma mulher italiana já causava estranhamento como foi The Milk of the Dream (a edição de 2022 da Bienal de Veneza curada por Cecilia Alemani), parece ser ainda mais fora dos padrões canônicos da arte uma mostra estabelecida a partir do olhar de uma pessoa que se autodefine queer e que vem da periferia do capitalismo. “Teremos beleza na próxima Bienal de Arte de Veneza?”, perguntou um jornalista italiano, enquanto uma outra jornalista italiana propôs: “É a terceira Bienal que trata da questão decolonial. Essa será uma tendência para o futuro?”.
O texto Das Unheimliche (O Estranho) publicado no Brasil com o título O infamiliar, que Sigmund Freud (1856-1939) escreveu em 1919, foi a única referência bibliográfica explicitamente mencionada por Pedrosa em sua apresentação. Nesse trabalho, bem grosso modo, Freud examinou a natureza da estranheza e da inquietude que o ser humano sente diante de determinados elementos ou aspectos. Ele também notou como, muitas vezes, o familiar pode se tornar perturbador quando visto de uma perspectiva diferente ou quando algo que deveria permanecer oculto é revelado.
Deslocando a “periferia” para o “centro do mundo”
Adriano Pedrosa apresentou uma lista com 332 artistas, provenientes majoritariamente de países periféricos, e que vivem ou viveram em situações marginais em decorrência da origem, da identidade de gênero e da condição de imigrante ou de refugiado. Outra característica comum a esses artistas é o fato de nunca terem participado de mostras internacionais.
O que podemos concluir é que a internacionalização e o inserimento no mercado das artes de artistas da periferia do capitalismo ainda causa incômodo ou, no mínimo, estranheza. A existência de múltiplas narrativas é inquietante para aqueles que se acomodaram à narrativa uníssona da cultura hegemônica.
Nesse sentido, o projeto curatorial de Pedrosa para a próxima Bienal de Arte de Veneza, ao deslocar para o “centro do mundo” as experiências de indivíduos historicamente marginalizados, reaproxima a dimensão cultural da socioeconômica, permitindo que as questões de gênero e as de identidade possam ser debatidas sob a perspectiva da luta de classes.
Ruptura e permanência na 60ª Bienal de Arte de Veneza
A mostra, que será composta por duas partes, dará luz a temas atuais, porém em estreita consonância com a tradição e a história da Bienal de Veneza.
A primeira parte, intitulada “Núcleo contemporâneo”, mostrará obras de artistas queers, marginais, populares e indígenas. Com forte presença dos indígenas que, como mencionado pelo curador durante sua apresentação, são considerados estrangeiros em sua própria terra. Destaque para os coletivos indígenas Mahku (formado por artistas brasileiros da etnia Huni Kuni) e Maataho (composto por mulheres neozelandesas da etnia Aotearoa). Este núcleo terá, também, um espaço dedicado especialmente ao curador e crítico de arte italiano Marco Scotini, que há quase duas décadas vem refletindo sobre as dimensões estética e de contra-narrativa dos arquivos.
A segunda parte, denominada de “Núcleo histórico”, tem como proposta uma reflexão crítica sobre as fronteiras do Modernismo em âmbito global. Centra, sobretudo, na apresentação de artistas da América Latina, África, Oriente Médio e Asia, que atuaram ao longo do século XX, e cujas obras se entrelaçam ao âmbito do Modernismo, mas que permanecem em grande parte ainda desconhecidos no mainstream da Arte Moderna e Contemporânea. Este núcleo trará, também, uma sala dedicada a obras de artistas italianos que experienciaram a diáspora durante o século XX, como, por exemplo, Lidy Prati (1921–2008) e Bona Tibertelli de Pisis (1926-2000). A expografia desta sala resgata os cavaletes de vidro e concreto desenvolvidos por Lina Bo Bardi (1914-1922) para o Masp, cumprindo o duplo papel de homenagem à arquiteta italo-brasileira e de assinatura curatorial. Foi Adriano Pedrosa o responsável por trazer de volta os cavaletes de Lina Bo Bardi às atividades do Masp.
Foreigners everywhere na contramão da cultura italiana
No atual momento, Foreigners everywhere há uma enorme relevância não apenas para a história da Bienal de Veneza, mas também para a sociedade e a cultura italiana. Para além da problematização do fenômeno contemporâneo da imigração compulsória, será a primeira vez que o evento é curado por um sulamericano e será, também, a última mostra sob a gestão de Roberto Cicutto.
Nomeado o próximo presidente da Fundação Bienal de Veneza, o jornalista Pietrangelo Buttafuoco também estava presente na apresentação de Adriano Pedrosa. Buttafuoco é um personagem público defensor de ideias de extra-direita e cumprirá um papel importante para a política de Georgia Meloni. Tem sido prática comum do atual governo o aparelhamento ideológico das instituições culturais públicas e a perseguição de gestores progressistas ou de esquerda.
A abertura da 60ª Bienal de Arte de Veneza para o público ocorrerá dia 20 abril, já sob a regência de Buttafuoco.
Fabiana Ferreira Lopes é historiadora e editora. Autora dos livros infantis A festa da taquara, Bumba-boi (ambos de 2013) e Folia de Reis (2015), publicados pela SM.