59ª Bienal de Veneza: uma Bienal dos sonhos?
Pela primeira vez, uma mulher assina a curadoria do evento, que assumiu um importante papel de evidenciar questões socioculturais nos últimos anos
No início de fevereiro, foi apresentado ao público o projeto da 59a edição da Bienal de Arte de Veneza. A mostra acontece com um ano de atraso. Desde a inauguração da Bienal de Arte de Veneza, em 1895, esta é a primeira vez que uma mulher assina a curadoria do evento.
A primeira Bienal Internacional de Arte do mundo — e que serviu de modelo para diversas mostras semelhantes, como a de São Paulo—, tradicionalmente é dividida em dois eventos que ocorrem em paralelo e que, em uma medida, se integram: a exposição principal, idealizada pelo curador da Bienal de Veneza, e as exposições nacionais, com curadorias definidas pelos países convidados ou por instituições responsáveis pelos respectivos pavilhões.
No escopo internacional da Arte Contemporânea, a mostra curada pela Bienal de Veneza funciona como um oráculo pelo qual se vê aonde vai o mercado desse segmento. São apresentadas as principais tendências intelectuais e estéticas que atravessam os ateliês dos artistas contemporâneos em todo o mundo.
Quem esteve na 58o Bienal de Veneza, em 2019, por exemplo, se deparou com um overposting de artistas afro-americanos. Um ano depois, através das telas, o mundo inteiro viu as principais cidades dos Estados Unidos em chamas após o assassinato de George Floyd por um policial branco e a explosão do movimento Black Lives Matter.
Mais do que dar respostas aos colecionadores e pensadores da Arte Contemporânea ou elevar a cotação de artistas e obras, a Bienal de Veneza acabou assumindo um importante papel ao longo dos últimos anos, que é o de evidenciar questões socioculturais que estão em debate no tempo presente.
A Bienal das mulheres
Com o título Il latte dei sogni (O leite dos sonhos), a mostra da 59a Bienal de Veneza foi concebida pela italiana Cecilia Alemani (1977- ). Ela é também diretora e curadora do “High Line Art”, o programa de arte pública de Nova York, e já tinha assinado a exposição apresentada pelo Pavilhão Itália na Bienal de 2019.

A Bienal deste ano reunirá obras de 213 artistas, sendo que 180 deles participarão da mostra pela primeira vez. Outro diferencial desta edição é a forte presença de mulheres: 80%.
Muito provavelmente, esse elevado índice de mulheres participantes levou um jornalista a perguntar para Alemani, durante a conferência de apresentação da mostra, se ela receava que a 59a edição fosse considerada a “Bienal das mulheres”. Implacável e direta, a curadora lembrou que ninguém jamais definiu o evento como a “Bienal dos homens”.
O ponto de partida para a pesquisa que norteou a mostra O leite dos sonhos foi o livro homônimo da artista surrealista Leonora Carrington (1917-2011).
Carrington, que nasceu na Inglaterra, era filha de um industrial. Estudou Artes em Florença e mais tarde, em Paris, aderiu ao Movimento Surrealista. Fez parte de um círculo de artistas formado, entre outros, por Joan Miró (1893-1983), Salvador Dalí (1904-1989) e Marx Ernst (1891-1976). Este, inclusive, acabou se tornando namorado da artista. A relação entre os dois foi interrompida pela Segunda Guerra. Com a ajuda da família, Carrington conseguiu escapar para a Espanha. O alívio de sentir-se segura longe dos bombardeios, entretanto, foi interrompido pela internação compulsória em uma clínica psiquiátrica. Incompreendida pela família, ela foi submetida a tratamentos com eletrochoques.
Anos depois, Carrington reencontrou Marx Ernst nos Estados Unidos. Mas foi no México que a artista se estabeleceu e constituiu uma carreira importante ao lado de artistas como Remedios Varo (1908-1963) e Alejandro Jodorowsky (1929-). Carrington conciliou o trabalho com a família. Foi casada com o fotógrafo Emérico Weisz (1911-2007) e mãe de dois meninos.
O livro O leite dos sonhos (ainda sem publicação no Brasil) reúne histórias de personagens fantásticos e mutantes, que Leonora Carrington desenhava nas paredes de casa enquanto brincava com os filhos.
Obras de Leonora Carrington e de Remedios Varo também estarão expostas nesta Bienal.
Além do livro de Carrington, textos da filósofa feminista italiana Silvia Federici (1949-) e da escritora italiana de origem somali Igiaba Scego (1974- ) subsidiam a linha curatorial da 59a Bienal de Arte de Veneza.
A Bienal entre a pandemia de Covid-19 e a nova ordem do mundo
No início de 2020, enquanto Cecilia Alemani desenhava a 59a Bienal de Arte, a pandemia de Covid-19 atingia o mundo, colocando em isolamento cerca de um terço da população mundial.
A Bienal de Veneza foi forçada a cancelar todos os eventos programados para aquele ano, um fato que não ocorria desde a Segunda Guerra. Em decorrência disso, houve o adiamento da 59a edição para 2022.
A emergência sanitária internacional não apenas obrigou Cecilia Alemani a conhecer os artistas que participariam da Bienal via Zoom, mas também influenciou na escolha dos temas a serem debatidos. Após as primeiras entrevistas, chamou a atenção de Alemani a recorrência de três temas nas obras dos artistas selecionados.
O primeiro deles é a representação dos corpos e de suas mutações/metamorfoses. Para dar conta deste debate, a curadora priorizou obras que questionam a representação hegemônica do corpo humano (ocidental, masculino e branco) consagrada pelos modelos iluministas e renascentistas. Daí a opção dela em privilegiar artistas mulheres e artistas não-binários.
O segundo tema é a relação entre o indivíduo e a tecnologia. A curadora selecionou, então, artistas que abordam a fragilidade do corpo humano diante de um organismo invisível e da subordinação das relações humanas às telas e às plataformas de comunicação.
O terceiro tema é a relação entre os corpos humanos e a Terra. Para contemplar esse tema, Alemani convidou artistas que, em suas obras, projetam o fim do antropocentrismo e da hierarquia entre os seres humanos e as demais formas de vida, submetendo as grandes narrativas históricas aos saberes tradicionais que dão sentido a novas políticas identitárias.

Confirmando a intenção da curadora de trazer para esta Bienal obras que simbolizam contextos socioculturais historicamente marginalizados, na mostra O leite dos sonhos, a Arte brasileira também está representada nos trabalhos de Jaider Esbell (1979-2021), Leonora de Barros (1953- ), Rosana Paulino (1967- ) e Solange Pessoa (1961- ).
E para que não haja dúvidas sobre o discurso proposto para 59a Bienal de Arte de Veneza, Alemani esclarece: “Essa exposição acontece na Itália e não nos Estados Unidos. Sei que uma exposição não muda a ordem das coisas, mas espero que possa ter um valor simbólico”.
Fabiana Ferreira Lopes é historiadora e editora. Autora dos livros infantis A festa da taquara, Bumba-boi (ambos de 2013) e Folia de Reis (2015), publicados pela SM.