Nas Américas, uma constelação sangrenta de casos isolados
Pelo enfrentamento de questões equivalentes, as conquistas recentes do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos e a sua difusão por vários países do mundo são vistas com ânimo pela luta antirracista no Brasil, pois indica possíveis mudanças favoráveis no panorama internacional
Horas após o assassinato de George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin, milhares de pessoas tomaram as ruas de Minneapolis – cidade onde Floyd residia – demandando justiça imediata para o homem afro-americano de 46 anos que teve sua vida tão casualmente retirada à beira do meio-fio. Na noite do dia 25 de maio, a cidade do meio-oeste estadunidense arderia madrugada adentro sob luto e ira irreprimíveis. Mais uma pessoa preta havia sido incorporada à mórbida estatística da violência policial e do racismo estrutural no país.
Uma semana após a morte de Floyd, não só Minneapolis, como Detroit, Chicago, Nova York, Los Angeles e virtualmente toda grande cidade norte-americana observava multidões aglutinadas em torno do imperativo “Black Lives Matter” (Vidas Pretas Importam). Esta frase, que dá nome ao movimento iniciado em 2013, passou a batizar também o conjunto dos protestos em marcha, representando o esforço de abarcar junto à memória de George Floyd as vidas de Breonna Taylor, Eric Garner e a soma das vítimas fatais da brutalidade policial. Nos últimos sete anos, quase 2 mil pessoas pretas foram assassinadas em abordagens policiais e menos de 1% dos agentes envolvidos nos homicídios foram condenados.
Para se ter ideia das proporções alcançadas pelos protestos de junho, o New York Times fez um levantamento de quatro pesquisas sobre o comparecimento da população às manifestações, apontando que, somente entre 8 e 14 de junho, 26 milhões de pessoas (cerca de 7% da população total dos Estados Unidos) estiveram nas ruas de 550 localidades diferentes — cifras superiores àquelas registradas na década de 1960, no ápice do movimento pelos direitos civis das pessoas negras. Até agora, os protestos conseguiram angariar apoio majoritário da opinião pública: 65% dos adultos norte-americanos reconhecem a legitimidade do movimento Black Lives Matter e a urgência de reformas estruturais no combate ao racismo.
E se em julho e boa parte de agosto a mobilização nas ruas pareceu perder fôlego, o caso Jacob Blake do fim de agosto desencadeia uma nova onda de revoltas, cujo epicentro é Kenocha (Wisconsin). Em cenas registradas em vídeo, um policial branco dispara sete vezes, à queima-roupa, contra o homem negro de 29 anos, quando este caminhava em direção a seu veículo. Jacob sobreviveu aos tiros e foi levado, em estado grave, para um leito de UTI onde permaneceu algemado às barras laterais por uma semana. Se a voz de sua família não tivesse alcançado os noticiários nacionais, era provável que o homem negro continuasse submetido àquela situação degradante e absurda. Seu corpo e sua dignidade dilacerados pela chaga racista.
A sequência sem fim dos casos isolados de letalidade policial nos Estados Unidos empurra o movimento Black Lives Matter para dentro das instituições políticas. As propostas defendidas pela mobilização antirracista adentraram as administrações municipais e ganharam corpo legislativo no Congresso. Por outro lado, têm sido alvos da partidarização e da guerra discursiva, cultural e eleitoral travada a fundo entre os presidenciáveis Donald Trump e Joe Biden.
Reformas no policiamento: debate às vésperas da eleição
Peça central das demandas do movimento Black Lives Matter é a remodelação do policiamento e do sistema penal nos Estados Unidos, historicamente marcados pela discriminação étnico-racial. Embora não haja consenso sobre como e quais reformas são executáveis em regime de prioridade, organizações mais bem articuladas alinhadas ao movimento BLM, como a “Campanha Zero”, despontam com a proposição de uma agenda legislativa reformista contra a brutalidade policial. Entre as medidas mais defendidas pelos ativistas, citam-se a desmilitarização da polícia, limitação do uso da força e treinamento voltado ao desarmamento de situações violentas, vigilância comunitária das abordagens policiais, independência completa da promotoria de justiça em relação ao departamento de polícia e instalação de câmeras corporais e veiculares permanentemente ligadas.
Em outra frente do movimento, o slogan “defund the police” — livremente traduzido como “retire recursos da polícia” — ganhou tração entre manifestantes e figuras da ala progressista do Partido Democrata. O slogan logo se tornou destaque no debate público, gerando mudanças na forma como os poderes municipais gerenciam suas forças de segurança. Em Nova York, o conselho municipal aprovou corte de US$ 1 bilhão no orçamento, verba que agora será realocada para as áreas da educação e saúde na cidade; já Los Angeles reduziu em US$ 150 milhões os recursos para policiamento. A mudança de direção tomada pelas administrações das duas maiores cidades dos Estados Unidos é simbólica, pois marca uma possível ruptura com o modelo de repressão policial e criminalização dos bairros afro-americanos, concebido há mais de quatro décadas sob o guarda-chuva da guerra às drogas.
Já Minneapolis tem o projeto mais abrangente de transformação. Em junho, o conselho municipal votou pelo desmantelamento do departamento de polícia. A ideia é repô-lo por uma nova forma de patrulhamento coletivo, com foco na formulação de políticas públicas de prevenção à violência. A tramitação do projeto é longa e aguarda, no momento, apreciação pela comissão interna que analisa o alvará de funcionamento do novo órgão de policiamento.
Ao passo que mudanças orientadas pelo corte no orçamento possam já ser sentidas a curto prazo em algumas cidades, o avanço de uma reforma mais robusta na estrutura policial dependerá de projetos de lei formulados e aprovados em nível federal, âmbito de disputa muito mais acirrado. É em Washington D.C, precisamente, que o impasse se encontra: à beira das eleições de novembro, observa-se no cenário político um esgarçamento da polarização entre republicanos e democratas, cada qual possuindo uma das casas legislativas. Nesse contexto, parece irrealista que qualquer reforma consiga ser aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo ainda este ano.
É nessa situação que se encontra o projeto de lei “ George Floyd Justice in Policing Act”, cuja aprovação se deu no dia 12 de junho de 2020 na Câmara dos Representantes, encabeçada pela ala mais progressista do Partido Democrata e apoiada, pelo menos no discurso, pela candidata à vice-presidência Kamala Harris. A legislação é um aceno a reivindicações levantadas pelo Black Lives Matter, prevendo desde a suspensão de fornecimento de equipamento militar para os departamentos de polícia até fim da invasão policial sem mandato, situação hoje permitida para operações contra o tráfico de drogas. O projeto não deve ultrapassar a casa controlada pelos democratas, já que o Senado, de maioria republicana, se opõe com veemência ao seu conteúdo. Em adição, Trump já ameaçou vetá-lo, alegando que o texto “enfraqueceria a habilidade dos agentes da lei para combater o crime”.
Adotando uma postura de enfrentamento aberta quando se refere aos manifestantes do Black Lives Matter e a oficiais eleitos do Partido Democrata, o presidente dos Estados Unidos usa palavras como “agitadores”, “vândalos”, “anarquistas” e “membros da esquerda radical [da qual Biden supostamente faria parte] que querem abolir a polícia”. A oposição frontal de Trump ao movimento BLM é parte de sua estratégia eleitoral de se colar como candidato da “Lei e da ordem”, numa reminiscência de Nixon, o que tem atraído o apoio dos sindicatos policiais, que se veem ameaçados pelo prospecto de transformações estruturais na instituição, bem como setores ultraconservadores de sua base eleitoral.
Por extensão de seu discurso belicista, Trump tem posto tropas militarizadas da Guarda Nacional e do Departamento de Segurança Interna nas ruas para reprimir os atos em curso há mais de dois meses – algo inédito na história do país. Incidentes em Seattle e Portland expuseram agentes federais não identificados realizando prisões arbitrárias contra manifestantes, assinalando uma guinada autoritária do presidente a dois meses das eleições. Tudo indica que o amplo debate acendido pelas manifestações em prol das causas antirracistas e contra a violência policial continuará presente central no meio político e pode desempenhar papel crucial para determinar quem assume a Casa Branca no dia 20 de janeiro de 2021. Salienta-se que o primeiro debate presidencial ocorre já no fim de setembro. Com a recente recuperação de Trump em estados-chave para a eleição, como Michigan, o cenário que antes parecia apontar para vitória larga de Biden volta a ser incerto; ao mesmo tempo, ainda não se sabe se os acontecimentos de Wisconsin, outro estado-chave no mapa eleitoral, irá desempenhar alguma força contrária a Trump.
Trump e Biden possuem mais similaridades do que gostariam de assumir, seja em posições convergentes sobre relações exteriores, seja na defesa de políticas econômicas neoliberais que beneficiam, em larga margem, megacorporações -americanas. Na dúzia de tópicos que divergem, é no front da reforma dos modelos de policiamento que as diferenças são mais contrastantes: com os democratas na Casa Branca e maioria no Senado, é provável que a robusta reforma prevista no “George Floyd Justice in Policing Act” possa virar lei; com a reeleição de Trump, esse horizonte se esfumaça.
No Brasil de 2020, descontrole da violência policial e paralisia institucional
No início do mês de junho, Jair Bolsonaro retuitava Donald Trump: “Os Estados Unidos irão designar a organização Antifa como terrorista”. A mensagem era uma ameaça velada à movimentação nas redes sociais que ensaiava uma volta às ruas, avessa à gestão e ao discurso chancelado pelo presidente brasileiro. A razão da mobilização era que, uma semana antes da morte de George Floyd, o menino João Pedro havia padecido da mesma causa mortis do norte-americano de 46 anos: a violência policial. A morte de João Pedro foi mais uma na série de mais de mil baixas civis na conta de incursões policiais nos últimos dois anos nas favelas do Rio de Janeiro, mas, como episódio, é uma representação de uma cultura da violência que em muito ultrapassa os limites geográficos do estado fluminense.
No Brasil, a conduta violenta das PMs não é fato novo. Estende-se de norte a sul e reclama para si casos que se sucedem em velocidade epidêmica. Nos primeiros seis meses de 2020, em São Paulo, houve 442 pessoas mortas por policiais militares, um crescimento de 21% em relação ao ano anterior. No Rio de Janeiro, a letalidade policial foi ainda maior: 741 vítimas fatais, no que é o maior número contabilizado desde 1991. Bahia, Ceará e Pernambuco também registraram aumento de abordagens policiais com mortes, como mostra a pesquisa “Racismo, motor da violência” da Rede de Observatórios da Segurança. Uma outra preocupação correlata que surge é a multiplicação de casos relatados de tortura em função da atuação policial. A pesquisa também mostra que a maioria das vítimas são pretos\as, moradores de territórios periféricos sujeitos a dezenas de vulnerabilidades diferentes. A polícia brasileira mata, cinco vezes mais que a norte-americana, e o faz segundo marcadores de etnia/cor/raça e condição social.
A letalidade das polícias militares no Brasil tornou-se objeto de exame dos organismos internacionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que compõe o Organização dos Estados Americanos (OEA), publicou, no dia 2 de agosto, nota na qual “expressa profunda preocupação com os recordes históricos de ações policiais violentas registradas durante o primeiro semestre deste ano nos estados do Brasil e o seu perfil de discriminação racial”. Embora o organismo não possua poder legal para coagir as autoridades brasileiras a tomar alguma atitude, a manifestação pode arranhar ainda mais a imagem do governo no exterior.
Enquanto isso, mesmo em face de números tão reveladores e de constrangimentos à imagem do Brasil, a resposta do poder público perante o surto de violência policial é, quando muito, simbólica — assumidas na forma de frequentes notas de pesar de lideranças políticas, que reservam brechas estratégicas para o elogio do comportamento geral das PMs (como são hoje) e defesa que aquele caso, daquela nota, é isolado, tal como os outros que vieram antes dele. O faz-de-conta das lideranças é reflexo de um ambiente político hostil, seja em nível federal ou estadual, à introdução de um debate legislativo amplo sobre reformas na instituição policial, como se tem se observado nos Estados Unidos.
Em Brasília, a tendência tida como política central para o Executivo e a base bolsonarista no Congresso, já ilustrada pela aprovação do Pacote Anticrime, é o avanço de projetos na direção de um modelo de segurança pública cada vez mais armado, repressivo, letal, que tenta, entre outros objetivos, blindar abusos policiais de responsabilidades penais. No nível estadual, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 indica aumento do orçamento para as secretarias de segurança pública e despesas com policiamento em unidades federativas das cinco macrorregiões brasileiras, delimitando prioridades alinhadas com aquelas defendidas pelo governo federal.
O movimento de expansão do aparato policial nos estados brasileiros pode ser ilustrado, como pontua a assistente social e pesquisadora da organização Justiça Global Monique Cruz, pela criação de novas polícias dentro do guarda-chuva das secretarias de segurança pública, mas que operam “no mesmo formato com as mesmas práticas” que as existentes. É o caso da polícia penal, organizada a partir da Emenda Constitucional 104, que regulamenta e amplia a atuação disciplinar dos agentes penitenciários. Monique comenta que a polícia penal do Rio de Janeiro, na semana do dia 27 de julho, decretou a prisão, sem flagrante e sem investigação, de dois homens sob a alegação de serem responsáveis pelo homicídio de um agente penitenciário. Legalmente, a polícia penal não possuiria a prerrogativa de prender alguém.
Em face dessa estagnação dos Executivos e dos Legislativos federais e estaduais, tem restado aos movimentos, coletivos e frentes políticas que atuam pelos direitos humanos estratégias de resistência via recursos judiciais. Segundo Monique, ainda que a estratégia judicializada tenha obtido vitórias a serem comemoradas — como a recente decisão do STF de suspender operações policiais no Rio, o que causou uma queda de 70% da letalidade policial — trata-se de “trabalhar a questão da atuação das polícias de maneira isolada, deixando-se perder de vista que a atuação violenta está na gênese da polícia e que dela é esperado este comportamento”. Corrobora a análise de Monique a pesquisa Datafolha do início de 2019 que mostra que 51% da população brasileira têm medo da polícia.
Enfrentar o establishment da segurança pública brasileira é desafio enorme para especialistas e demais porções mobilizadas contra a violência policial. O debate sobre a remodelação da corporação policial brasileira corre há décadas, com posições que variam de sua abolição à desmilitarização. Outra discussão feita é com relação à função da polícia enquanto protetora, em primeiro plano, de coisas e interesses e só depois da vida de pessoas e comunidades. De uma forma ou de outra, o projeto de uma nova polícia se viabiliza na condição única de se reaver com o peso do racismo histórico-estrutural que lhe conferiu poder e legitimidade, à custa da marginalização e criminalização da população negra.
Pelo enfrentamento de questões equivalentes, as conquistas recentes do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos e a sua difusão por vários países do mundo são vistas com ânimo pela luta antirracista no Brasil, pois indica possíveis mudanças favoráveis no panorama internacional. Segundo Monique Cruz, “todas as articulações, incidências que são protagonizadas pela população negra em diáspora são importantes. A luta contra a violência policial e a militarização deve ser internacionalista”.
A pesquisadora alerta, contudo, que transplantar a realidade dos Estados Unidos ao Brasil não seria útil, uma vez que o racismo aqui possui peculiaridades oriundas do passado colonial português, da atuação estatal no apagamento e recriação da memória negra, do forjamento do mito da democracia racial e de processos institucionais que visaram o branqueamento da população. Desde então, convive no cerne da sociedade um racismo de falsa sutileza que “corrobora com a dificuldade de organização do povo negro no Brasil”, conclui Monique.
Jorge Fofano Junior é jornalista.