A África do Sul, enfim, enfrenta a aids
Depois dos anos infernais – quando o governo sul-africano negava tratamento à população, seiscentas pessoas, na maioria jovens, morriam a cada dia, e a esperança de vida caía de 62 anos, em 1990, para 51 anos, em 2005 −, o sentimento que domina ainda não é de alívio, pois os desafios continuam enormesPhilippe Rivière
(Garoto recebe medicação para combater o HIV em Nkosis’s Haven, sul de Johanesburgo)
É no dia das crianças na clínica de HIV de Site B, um bairro de Khayelitsha, a grande township situada na periferia da Cidade do Cabo. Nessa quarta-feira, vieram cerca de quinze delas, com um dos pais ou, no caso dos órfãos, com a avó ou o tio que ficou com a guarda. A enfermeira as pesa, verifica se nenhuma está tossindo e distribui um mês de remédios antirretrovirais (ARV).
Algumas dessas crianças têm 8, 9, 10 anos ou mais. Com a proximidade da adolescência, é hora de explicar para elas para que servem esses comprimidos que engolem todos os dias. Um grupo de crianças mais velhas se encontra em um edifício pré-fabricado; uma conselheira leva os adultos para um canto e “dá a eles os instrumentos para revelar de maneira conveniente sua situação para as crianças e levá-las a assumir a responsabilidade sobre sua própria saúde”. A idade rebelde se aproxima, a idade de correr riscos, das difíceis questões existenciais e das situações psicológicas extremas.
“Essas crianças começam a fazer perguntas, principalmente ‘posso parar agora?’”, explica Nombasa Dumile, a conselheira. “Temos um procedimento em três sessões. Na primeira falamos de micróbios, tuberculose, hábitos elementares de higiene. Para os pais, ensinamos as bases científicas do HIV. Na semana seguinte, damos explicações mais precisas sobre os vírus, as bactérias. Desenhos ilustram o papel das células CD4, marcadores da imunidade, e dos remédios antirretrovirais. Preparamos também os adultos para anunciar aos filhos que eles têm o HIV. Quando o próprio pai também é portador, é psicologicamente difícil; mas em geral ele o faz com mais seriedade e profundidade do que outra pessoa, que teria tendência a querer ficar livre logo.” A última sessão, após essa etapa, serve para responder às perguntas das crianças.
Os jovens ignoram que foram os primeiros bebês beneficiados pelas terapias ARV na África do Sul. Seu décimo aniversário coincide com o de uma luta que começou em Khayelitsha, berço da Campanha de Ação para os Tratamentos (TAC, na sigla em inglês), com o apoio da clínica dos Médicos sem Fronteiras (MSF).
Em 1998, eles eram apenas um punhado de gente vivendo com aids, mulheres que perderam os filhos por causa do HIV e militantes homossexuais. Organizados como um grupo, eles se mostraram aos olhares do mundo em julho de 2000, durante a 13ª Conferência Internacional sobre a Aids em Durban. Diante de 39 companhias farmacêuticas que abriram um processo contra o governo para bloquear um projeto de lei sobre os remédios genéricos, suas manifestações deram rosto às vítimas do regime internacional de licenças.
Azeite, alho e limão
Diante da mobilização, o lobby farmacêutico acabou desistindo. Finalmente seria possível começar a cuidar dos doentes. No entanto, para os militantes que defenderam o governo, a desilusão foi rápida e profunda: fiel ao presidente Thabo Mbeki, a ministra da Saúde Manto Tshabalala-Msimang não tinha nenhuma intenção de organizar a distribuição de ARVs no setor público de saúde. Ela argumentava que os remédios eram tóxicos e que era possível se tratar adotando um regime nutritivo à base de azeite, alho e limão.
O conflito explodiu em 2002, diante da Corte Constitucional. O governo foi condenado,1 e o hospital público ficou autorizado a administrar às mães soropositivas um comprimido de nevirapina – que reduz drasticamente o risco de a criança ser infectada durante o parto. Outros processos vieram, impondo em 2004 um início de estratégia nacional de tratamento. Mas Manto (morta em 2009) e Mbeki alimentaram a confusão, favorecendo diversos charlatões e vendedores de vitaminas, tais como as do germano-americano Mathias Rath, que apresentou suas poções como uma das muitas “escolhas” oferecidas aos doentes – dois estudos independentes estimam que ao menos 300 mil doentes morreram em decorrência disso.2 Essa obstinação pesou na expulsão de Mbeki da Presidência, depois da conferência do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês) em Polokwane, em 2007.
Assim que foi nomeado presidente interino, Kgalema Mothlante mudou a ministra da Saúde. Primeira mulher branca condenada por traição pelo regime do apartheid, em 1982, Barbara Hogan virou o jogo. Com a ajuda da jurista Fatima Hassan, membro da Aids Law Project, ela instituiu um ministério totalmente novo.
“Nosso partido herdou de sua história uma concepção stalinista da política; hoje, aqueles que apoiavam Mbeki e Manto têm vergonha de reconhecer que lhes faltou coragem”, analisou um militante do ANC. Eleito presidente em maio de 2009, Jacob Zuma validou definitivamente o fim da política de negação, confiando a pasta da Saúde a um médico respeitado, Aaron Motsoaledi.
Depois dos anos infernais − em que seiscentas pessoas, na maioria jovens, morriam a cada dia, e a esperança de vida caía de 62 anos, em 1990, para 51 anos, em 2005 −, o sentimento que domina ainda não é de alívio, pois os desafios continuam enormes.
“Nesses últimos anos, a situação mudou muito”, confirma a doutora Lynne Wilkinson, que nos recebeu no escritório do MSF em Khayelitsha. “Aqui existem atualmente 20 mil residentes sob tratamento. Não se vê quase doentes chegando à clínica carregados, em estado terminal. É claro que ainda tem chão pela frente: se a confusão desapareceu, a desconfiança ainda existe. Um adulto a cada cinco está infectado; a estigmatização, mesmo que velada, ainda existe.”
A tuberculose, cada vez mais resistente aos medicamentos, espalhou-se. Complicação suplementar, 70% dos tuberculosos também são portadores do HIV: é preciso tratar duas epidemias misturadas. Não está mais na hora de projetos-piloto que visem demonstrar que podemos curar os mais pobres, mas sim da aplicação em escala nacional de técnicas aprovadas. São 3 milhões de pessoas a serem colocadas no programa ARV, de distribuição de remédios retrovirais: um objetivo excepcionalmente complexo, tanto em termos de medicina quanto de recursos humanos, orçamento, planejamento e logística.
Estamos em Johannesburgo, nas instalações da Section 27, uma ONG especializada em saúde pública. Sucessor do Aids Law Project, esse think tank jurídico pretende colocar em prática o parágrafo 27 da Constituição sul-africana, que estipula que todos os cidadãos têm direito a serviços de saúde adequados.
O caminho a percorrer continua longo
Depois de oito anos de conflito com o Estado, “os militantes estão cansados”, reconhece Mark Heywood, diretor da Section 27. Mas sua recente nomeação como codiretor do Conselho Nacional da Aids (Sanac) confirma: “Neste momento, estamos todos ‘alinhados’: governo, militantes, médicos etc. Mas quanto tempo isso vai durar? Há dois anos, [o ministro] Motsoaledi imprimiu seu ritmo na execução dos programas de saúde. A sociedade civil tem, paradoxalmente, dificuldade em acompanhar. Existem avanços inegáveis: 1,5 milhão de doentes em tratamento, o emprego da circuncisão nos adultos…3 A extensão e a melhoria dos instrumentos de prevenção da transmissão de mãe a filho permitiram diminuir as taxas de contaminação pós-parto para 3,5%.4 Não são resultados superficiais. Mas esses progressos também não estão garantidos. E o caminho a percorrer continua mais longo do que o que ficou para trás”.
Nunca o país voltará para a negação, mas Heywood aponta “um certo número de nuvens negras”. A realização de um plano de saúde nacional, ambicioso projeto do governo Zuma, vai levar muitos anos. Esse programa poderia reduzir as enormes desigualdades nessa área. Trinta por cento dos sul-africanos são tratados pelo setor privado moderno e frequentemente caro, enquanto o setor público dormente deve responder às necessidades dos demais, e principalmente dos mais pobres. “Nosso sistema de saúde só será viável se conseguirmos reduzir o abismo entre o privado e o público. Para dividir o fardo do HIV entre todo o setor, é preciso um sistema sólido. E eu gostaria de saber as razões pelas quais os preços do setor privado explodem, ao passo que seus custos não aumentaram tanto…”, acusa Heywood.
“Em 2001, tínhamos conseguido colocar a Big Pharma [indústria farmacêutica] contra a parede”, continua. “Mas o tempo que tivemos de consagrar para lutar contra nosso próprio governo permitiu que ela se reorganizasse. As corporações de remédios de marca compraram os fabricantes de genéricos. E as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) eliminaram duas ilhas que nos permitiam escapar às patentes: a Índia e a Tailândia. O movimento mundial pela saúde, que tem como objetivos claros combater as patentes e estabelecer um fundo global, encontra-se dividido e enfraquecido.”
Valorização da sociedade civil
E o militante se preocupa: “Agora, com a crise financeira, muitos órgãos de cooperação decidiram restringir os créditos; a primeira coisa que eles cortam é o apoio às organizações da sociedade civil. Eles não entendem que foi a sociedade civil que permitiu o progresso?”. Cortando as subvenções à TAC ou à Section 27, as políticas de saúde deverão se decidir outra vez envolvendo apenas o governo, planos de saúde e companhias farmacêuticas…
De volta a Khayelitsha, na sede da TAC, percebe-se certa desordem quando Andile Madondile evoca os dois escritórios que a organização já teve de fechar, por falta de dinheiro: “Em Khayelitsha, temos dezessete braços e abarcamos 500 mil residentes”.
Responsável pela treatment literacy– o programa-chefe da TAC, que consiste em difundir o conhecimento médico e científico aos doentes –, Madondile se questiona: “Nossos educadores vão às clínicas falar com os pacientes sobre as doenças oportunistas e a importância de seguir o tratamento regularmente. É crucial que as pessoas tenham acesso a essa informação. Por isso seremos agora obrigados a demandar subvenções governamentais”.
Diante da perspectiva de uma diminuição da ajuda internacional, a ex-ministra da Saúde Barbara Hogan declara: “É insensato! Quando decidimos propor os tratamentos antirretrovirais, tratava-se de um comprometimento a longo prazo. Esses remédios literalmente dão vida aos doentes: é preciso acompanhá-los por trinta, quarenta, até cinquenta anos. Em 2009, durante os momentos em que não havia remédios em algumas províncias, fizemos das tripas coração junto aos ingleses e norte-americanos para conseguir recuperar rapidamente os medicamentos. Em caso de fracasso, corremos o risco, no plano médico, de que o vírus desenvolva resistência, com consequências planetárias. Sem contar que a epidemia recomeçaria a crescer, pois, como foi provado recentemente, pessoas sob ARV quase não são mais contaminadoras. O tratamento do HIV/aids é um primeiro passo se quisermos atacar outros problemas: a fome, o desemprego, a violência… Sob o peso de uma nova alta da aids, o sistema de saúde afundaria. E nós perderíamos a experiência, única no mundo, que acumulamos: aconselhar, recrutar e tratar a longo prazo, nas comunidades e nesta escala”.
Fatima Hassan pondera: “O governo recebia muito pouco dinheiro do Fundo Mundial, pois Manto, por hostilidade aos ARVs, fazia deliberadamente que os dossiês de subvenção fracassassem. Graças aos Médicos sem Fronteiras, que iniciaram o trabalho em Khayelitsha, aos militantes da TAC e ao Fundo Mundial, que modificou sua própria regra do ‘principal beneficiário’ para permitir que outros agentes obtivessem incentivos, o Cabo Ocidental [única província não governada pelo partido presidencial] pôde começar a distribuição de antirretrovirais dez anos antes do resto do país. Isso mostra onde poderíamos estar hoje. Mas o tratamento de primeira linha está parando de funcionar para um número crescente de pacientes; é preciso progressivamente encaminhá-los para um tratamento mais caro, uma vez que não temos, por enquanto, genéricos para esses remédios de segunda linha. Temo que em breve tenhamos de nos levantar, como em 2000, dizendo: ‘Ah não! Estamos de novo sem remédios!’. É preciso então definir uma estratégia antes que as pessoas recomecem a morrer em massa!”.
Seis milhões de pessoas contaminadas, que precisam ser incentivadas a fazer o exame de detecção, quase 3 milhões de pacientes sob tratamento, hospitais e clínicas sobrecarregados. Cada um reconhece que a descentralização do sistema de saúde é indispensável.
Jack Lewis, diretor da série de televisão Siyayinqoba beat it!, uma sitcom semanal de uma hora que evoca todos os aspectos do HIV e da aids, declara: “Quando olhamos os Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento das Nações Unidas, a posição da África do Sul é muito ruim em três das prioridades: saúde das crianças, saúde materna e luta contra o HIV/aids. Por quê? As mulheres, claro, são especialmente vulneráveis ao HIV; a transmissão do vírus de mãe para filho, antes e depois do nascimento, ainda é um problema. Com uma taxa de desemprego de 35% a 40%, as condições sociais reforçam todas as outras vulnerabilidades na área da saúde. A alimentação dos mais pobres é frequentemente alta em gordura saturada, com riscos maiores de obesidade, diabetes, hipertensão e problemas cardíacos”.
Os grandes desafios que pesam sobre a saúde são: HIV e tuberculose; doenças crônicas; saúde materna e infantil; sem esquecer os traumas relacionados à criminalidade, aos acidentes em estradas ou à violência de gênero. “Nenhum programa de prevenção vai funcionar sem um olhar para a saúde primária. Cinquenta por cento do sucesso de um protocolo depende da compreensão dos pacientes a respeito do que eles terão de fazer. É preciso desenvolver o treatment literacyem escala nacional. Para isso, deve-se criar em cada distrito uma equipe de trabalhadores da saúde, supervisionada por uma enfermeira, que tenha a capacidade de acompanhar cinquenta lares: saber quem está doente, quem tosse, quem está grávida, quem está sob tratamento, quem perdeu peso… Ajudar os pacientes a cumprir o tratamento regularmente. Para cada suspeita de tuberculose, é preciso estimular as pessoas a ir até uma clínica especializada e verificar se elas fizeram mesmo o teste”, analisa Lewis.
Próximos passos
Muitos doentes esperam até o último minuto para procurar um tratamento, pesando ainda mais para o sistema se eles tiverem de ser hospitalizados em vez de tratados em ambulatório. Em 14 de setembro de 2011, o ministro Aaron Motsoaledi anunciou a “reinvenção” dos cuidados: trata-sede “acabar com o funcionamento atual, focalizado nos serviços de hospitalização curativa, em prol de um sistema de cuidados de saúde primária descentralizado nas comunidades”.5
A avaliação e a reabilitação de cerca de 4.200 centros de saúde do país está em andamento. E o ministério poderia contratar 40 mil pessoas para ir bater em todas as portas. “Seria suficiente?”, pergunta-se Lewis. “Em todo caso, o afluxo nos últimos dez anos de ONGs de saúde na África do Sul, epicentro da aids, permitiu que se constituísse um imenso acúmulo de experiência e competência − resultado obtido com o estímulo dos doadores, que exigiam ‘transparência’. Mesmo se uma minoria planeja um controle estatal direto, formou-se um consenso de que o governo deverá empregar os recursos que já existem.”
Os Médicos sem Fronteiras, por exemplo, procuram atualmente soluções para favorecer a observância – quer dizer, tomar regularmente e sem esquecimento os remédios. “As campanhas de prevenção não são mais suficientes”, estima a doutora Lynne Wilkinson. “É preciso inventar programas diários na televisão e mensagens nas rádios: ‘Não esqueça seus comprimidos’, ‘Não hesite em pedir conselhos’. É preciso um plano em escala regional, que leve em conta os grandes movimentos de migração pendulares. Na township, a população, majoritariamente [de etnia] xhosa, é muito móvel. De origem rural, ela vem procurar trabalho e volta para a aldeia para as festas. O número de pessoas que perdemos sob tratamentonesses períodos é ridiculamente alto! Acrescente-se a isso o fato de que as fórmulas prescritas não são as mesmas de um país a outro [cerca de 4 milhões de zimbabuanos residem na África do Sul], que os fornecedores fabricam pílulas de formas e cores diferentes, e que o governo sul-africano ainda não adotou as associações de doses fixas, que oferecem maior segurança e ainda são mais fáceis de engolir.” Apresentadas na forma de um único comprimido associando diversas moléculas, as associações de doses fixas estão disponíveis em países totalmente pobres, como o Malaui.
Lynne sugere a criação de um “cartão de paciente HIV, que permitiria receber diretamente os ARVs em uma farmácia, sem perder um dia na clínica. Poderíamos imaginar postos nas estradas onde as pessoas obtivessem as pílulas necessárias para a duração de sua viagem”. Localmente, os MSF organizam “clubes de observância”: “Com tantas pessoas em tratamento, não é possível fazê-los vir todo mês à clínica. Custa caro em termos de transporte, obriga a pessoa a conseguir um dia de folga (até dois, quando também é necessário fazer a consulta da tuberculose) e ficar na fila apenas para conseguir os remédios. No entanto, uma vez que o paciente está estável, o acompanhamento de sua carga viral só é feito uma vez por ano. Então, formamos grupos de cinquenta pessoas que se reúnem a cada dois meses para uma avaliação rápida (quem está tossindo, quem perdeu peso) e vão embora com os remédios. Os resultados estão aí: em Moçambique, a manutenção do tratamento em quatro anos é de 97% nos clubes, contra 87% nas clínicas”.
Em Khayelitsha, os jovens “bebês-ARV” formarão em breve seus próprios clubes de observância.