A água, os jovens e o futuro
Como em outros momentos decisivos da história, a geração mais jovem é chamada a ocupar a linha de frente neste movimento global. Mas onde estão os jovens?
O encontro com um rio pode ser uma experiência altamente definidora. Lembro-me do mergulho no Negro como um dos momentos maiores de minha vida: o corpo se deixando afundar em um ambiente cada vez mais escuro, sem saber o que iria encontrar pela frente, sem chegar jamais ao chão. Na primeira metade da década de 1990, em um Oriente Médio momentaneamente acalmado pelos acordos de Oslo, conheci o Jordão. Frustrante. Não que eu esperasse demais. Mas, para quem se acostumara à exuberância fluvial brasileira, aquele rio tão carregado de memórias e tradições, e no entanto tão raquítico diante dos olhos, não podia oferecer outro sentimento que não fosse a decepção. Sabemos, porém, que o controle desse mesmo Jordão, estreito e raso, estressado pelo consumo humano e as demandas agrícolas, constitui um item particularmente polêmico na longa pauta das disputas árabe-israelenses. É difícil pensar no fato sem evocar episódios bíblicos – como o de Moisés na terra de Madiã – nos quais populações em tudo aparentadas lutam violentamente pelo domínio de um poço. Em contraste com a abundância do Negro, o Jordão ensinou-me sobre a escassez. Nos anos subseqüentes, ouviríamos falar, com insistência cada vez maior, em possíveis guerras pela água.
Muitas águas correram desde então. A consciência ambiental cresceu em proporção geométrica. Mas não houve nenhuma redução consistente da pressão sobre os recursos naturais. E esta precisaria ser drástica para se tornar efetiva. De modo que, hoje, ao lado dos sombrios cenários suscitados pelo aquecimento global, defrontamo-nos com a pergunta sobre se haverá água para todos.
A questão – aponta nossa matéria de capa – envolve ao menos quatro variáveis: a poluição dos mananciais, o enorme desperdício durante a transmissão, o consumo excessivo e a desigualdade na apropriação. No Brasil, paraíso das águas, as perdas no abastecimento das grandes cidades alcançam o inacreditável patamar dos 45%. E a apropriação grotescamente desigual desnuda toda a iniqüidade de nossa estrutura econômico-social. Recordo-me de uma palestra proferida em meados dos anos 1970 pelo saudoso bispo de Crateús, Ceará, Dom Antônio Fragoso. Com amarga ironia, o valente religioso afirmou, então, que o problema da seca no Nordeste seria facilmente resolvido se a região fosse “virada de cabeça para baixo” e toda a água escondida nos açudes privados dos grandes latifúndios escorresse para um fundo comum. Três décadas depois, a propriedade da água continua tão escandalosamente concentrada quanto a propriedade da terra!
Os apelos genéricos ao consumo responsável – em si mesmos absolutamente válidos e oportunos – tornam-se hipócritas quando omitem esses fatos. Pedem-nos para tomar conta dos pingos das torneiras enquanto, apenas no município de São Paulo, no trajeto entre os mananciais e as residências, são perdidos 1 bilhão de litros por dia, o equivalente a 1 milhão de caixas-d’água!
O fato é que está em jogo o futuro. E esse jogo não poderá ser ganho sem um empenho multifacetado que vá da mudança dos hábitos individuais, e até mesmo das motivações mais íntimas, ao enfrentamento coletivo das grandes causas estruturais. É preciso, sim, fechar a torneira. Mas é preciso igualmente questionar os governos e também as grandes empresas privadas, que deveriam dar uma destinação mais útil à sua tão propalada “responsabilidade socioambiental”. Para tanto, devemos nos inspirar no exemplo de um Gandhi, capaz de tecer o pano da própria roupa enquanto desafiava o maior império do planeta.
Como em outros momentos decisivos da história, a geração mais jovem é chamada a ocupar a linha de frente neste movimento global. Mas onde estão os jovens? Sob que mantos de isolamento acústico abafaram os ruídos de sua buliçosa presença? Distantes das formas clássicas de mobilização consagradas nos embates dos anos 1960, descrentes dos excessos retóricos que hipnotizavam as consciências de então, eles parecem, aos ouvidos desatentos, tragicamente silenciosos e apáticos.
Porém uma pesquisa conduzida em seis países sul-americanos, objeto de importante artigo desta edição, mostra que há uma palpitação de vida por baixo de seu aparente silêncio.
Cortázar afirmou, certa vez, que as revoluções e os revolucionários eram demasiado graves e cinzentos para crer em suas próprias promessas de um mundo feliz e sem injustiças. É indispensável acreditar que seremos capazes de insuflar leveza e colorido a este sonho.
*José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.